Antes de o ser, Baião já era sustentável

Desde que foi certificado com o selo de destino turístico sustentável, o município reformatou a linguagem, adoptou manuais de boas práticas e desatou a ouvir a natureza — e as pessoas que a moldam. “Não há aqui uma revolução fantástica, o que existe é a definição de uma filosofia.”

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“Aparentemente é a limpeza de um rio.” Nas margens do Ovil, em Ancede, junto à ponte nova — que fica precisamente sobre a ponte velha — anda uma equipa de técnicos que mais parece estar a montar uma exposição nos bastidores de um museu de arte contemporânea. Aqui e ali exibem-se pilhas geométricas de troncos como num jogo de habilidade física, feixinhos e entrelaçados de ramos cortados, grades e muros vivos e, pelo chão, alinhados alguns travessões. “Esta limpeza deixa árvores, deixa muita vida nas margens”, vai explicando Pedro Teiga, especialista em valorização de rios e ribeiras, aqui com a missão de devolver o rio às populações — para já, daqui até ao ponto em que o Ovil se reúne com o Douro, posteriormente até à nascente.

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“Aparentemente é a limpeza de um rio.” Nas margens do Ovil, em Ancede, junto à ponte nova — que fica precisamente sobre a ponte velha — anda uma equipa de técnicos que mais parece estar a montar uma exposição nos bastidores de um museu de arte contemporânea. Aqui e ali exibem-se pilhas geométricas de troncos como num jogo de habilidade física, feixinhos e entrelaçados de ramos cortados, grades e muros vivos e, pelo chão, alinhados alguns travessões. “Esta limpeza deixa árvores, deixa muita vida nas margens”, vai explicando Pedro Teiga, especialista em valorização de rios e ribeiras, aqui com a missão de devolver o rio às populações — para já, daqui até ao ponto em que o Ovil se reúne com o Douro, posteriormente até à nascente.

Limpam-se dez metros de margens para cada lado do rio — “ilha dos amores” incluída. Procede-se à contenção de invasoras, consolidam-se as margens e percebe-se “como o rio fala”. “Os nossos rios são desvalorizados, estão poluídos, obstruídos e esquecidos. Só nos lembramos dos rios em duas situações: quando há cheias (e quando há mortos ou danos) e quando não há água. ‘Não há água?! O que é que aconteceu?!'” Os ramos mortos e caídos para a linha de água, material que teria que ser deslocado, é ordenado e servirá de habitat para o lagarto-de-água ou para a salamandra-lusitânica ou simplesmente de pilha de compostagem. Alguns troncos vão ser colocados no leito para “arejar” a água e melhorar a sua capacidade de depuração.

“Muitos destes terrenos estavam abandonados. Queremos transformá-los em espaços de promoção da biodiversidade, repondo valor económico e deixando as pessoas usufruir dos espaços”, sublinha Pedro Teiga, que considera essencial o envolvimento da população local para o sucesso do projecto. Por isso, há sessões públicas regulares e há formações para colaboradores da câmara para manutenção dos espaços e serão colocados placares informativos sobre as técnicas de engenharia natural utilizadas. “Eram técnicas usadas pelos nossos avós que seguem as leis naturais. Graças a elas, o Ovil é hoje um laboratório, um local de experimentação, um trilho ecológico no domínio hídrico. As pessoas que passam por aqui serão os vigilantes e eles próprios vão exigir a qualidade deste rio.”

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Pedro Teiga: "Esta limpeza deixa muita vida nas margens" Tiago Lopes

Desde que foi certificado com o selo de destino turístico sustentável, uma distinção atribuída pelo Global Sustainable Tourism Council (Conselho Global de Turismo Sustentável), que Baião não pára. “Potencial já sabíamos que tínhamos”, diz Rui Mendes, adjunto do presidente da câmara e coordenador deste projecto estratégico. “O que nós não sabíamos é que podíamos fazer ligações num corpo coerente e numa linha comum para proceder ao desenvolvimento de ideias que permitissem que colocássemos os activos turísticos ao serviço da população”, explica, destacando a “aprendizagem” em todo o processo e a “radiografia” que têm em mãos fruto de um intensivo trabalho de campo.

Para além disso, este título de sustentabilidade permite a esta Green Team composta por quatro elementos (que faz a ponte entre os diversos serviços na câmara) ter acesso a exemplos internacionais de “muito boas práticas” que o município pode aplicar no seu território. “Estamos a iniciar uma caminhada de um projecto de desenvolvimento para as populações e que assenta em quatro pilares: ambiente, economia, sociedade e cultura. Tivemos que reformatar a nossa linguagem. Quando falávamos de sustentabilidade, falávamos de ambiente. Mas os quatro dependem uns dos outros e os quatros têm que convergir para um objectivo único: o bem-estar.”

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Regularmente, e há já três anos, Baião lança numa plataforma largas dezenas de indicadores (e envia evidências desses dados) que permitem ao município ter “um retrato fiel do território que antes não tinha”. Existe um relatório de 61 páginas, existem 17 metas — um prazo de três meses para corrigir as inconformidades maiores e de um ano para as menores —, visitas técnicas ao terreno e auditorias anuais. Área verde, área protegida, desemprego, segurança, resíduos, energia, etc, etc. “O facto de termos que recolher estes indicadores todos com esta especificidade obriga-nos a olhar para o território de outra forma. Agora temos valores e podemos estipular metas para melhorarmos, para definirmos medidas concretas que nos ajudem a melhorar os indicadores onde não estamos tão bem”, aponta Sandra Mendes, da Green Team (juntamente com Aida Ribeiro e Dora Pinto). “Como costuma dizer o auditor: ‘know your numbers'”.

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Ricardo Magalhães: "O facto de darmos a conhecer este território, traz-nos outros desafios" Tiago Lopes

A cidade e as serras

Subimos à serra da Aboboreira, em fase de classificação de Área de Paisagem Protegida, terra de fronteiras diluídas partilhada por três municípios. “Não é Marco, nem Amarante, nem é Baião. É Aboboreira”, diz Ricardo Magalhães, Secretário-Geral da Associação de Municípios do Baixo Tâmega, entidade responsável pela gestão do projecto. Assim se procura casar o património natural com o cultural, a vegetação resiliente e os penedos e dólmenes espetados nos planaltos, os canastros de Almofrela na “serra dos mortos”. “Há aqui muita coisa enterrada”, lembra. “O facto de darmos a conhecer este território traz-nos outros desafios. Quem o conhecer vai preservá-lo muito melhor, vai-se apaixonar e senti-lo como seu. São esses os embaixadores e defensores desse património.”

A cidade e as serras. À nossa frente a serra do Castelo. A norte, o Marão. A sul, a serra de Montemuro. Ao fundo, o Ovil e o carvalhal de Reixela. “As pessoas aqui são muito ciosas do seu território”, diz Rui Mendes, técnico da câmara, envolvida num processo de aquisição de terrenos abandonados nas cumeadas dos montes numa zona muito dada a “incêndios gravíssimos”. “As pessoas têm muito orgulho de serem a maior mancha verde do distrito do Porto. Não há aqui uma revolução fantástica, o que existe é a definição de uma linha condutora, de uma filosofia. E objectivos. E são objectivos abertos. Não é a câmara que os vai impor. Se for só da nossa parte, o processo vai falhar.”

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Tiago Lopes

Vai-se regulamentar a circulação de veículos motorizados, substituir as infestantes por carvalho autóctone e criar mecanismos de rentabilização de outro tipo de vegetação. “Fazer as coisas de uma maneira limpa, manter a autenticidade sem fundamentalismos.” Tony Smith explica bem esse conceito aplicado aos vinhos biológicos (com “muito pouca intervenção humana") da sua Quinta de Covela — que já pertenceu à família de Manoel de Oliveira —, que soma distinções nos vinhos e que não tem mãos a medir para tantos de pedidos de limões e de laranjas desde que se passou a tentar outros cuidados com o que coloca na terra. “Esta quinta reflecte a natureza que aqui temos em Baião, um sítio muito especial de baixa densidade populacional e por isso de uma natureza intocada”. Quando aqui chegou, há mais ou menos uma década, uma amiga portuguesa disse-lhe que finalmente ia viver “num sítio onde os tomates sabem a tomates”. Hoje, Tony é o primeiro a dizer que por aqui os restaurantes sabem de onde vêm os produtos que colocam à mesa. “Aqui em Baião ninguém olha para isso de uma forma estranha. É natural nas pessoas.”

O selo de destino turístico sustentável é complexo e ao mesmo tempo simples. Antes de o ser já o era — num território de transição, de territórios antagónicos, de bens ao luar, de vinho verde e de Avesso em terra de maduros e generosos, de granitos aqui e xisto acolá, dos 50 aos 1416 metros de altitude da Senhora do Marão (com paragem em Mafômedes, a aldeia mais alta da serra de arquitectura vernacular, levadas de água fresca e corte dos animais no rés-do-chão).

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Rui Mendes: O projecto é feito de "pequenas coisas" e de "grandes ideias" Tiago Lopes

Mostrar que a terra nos pode dar de comer

Fala-se de sustentabilidade quando se projecta a recuperação dos seis moinhos de água que um dia, de uma forma natural, aproveitavam sinergias no Ovil. Fala-se de sustentabilidade à luz de lamparina no restaurante museu rural e etnográfico A Casa do Lavrador (à mesa com cebola rachada com sal, boroa frita, uma caneca de verde tinto, creme de água e filhoses recheados de chila). Fala-se de sustentabilidade em Tresouras, numa das antigas escolas primárias de um concelho com 550 lugares hoje transformada em Centro de Relação de Comunidade, um pólo de combate ao isolamento e de promoção do envelhecimento activo onde se pretende fazer uma recolha gradual de histórias e de modos de vida. “Todos estão habituados a fazer poupança de água, por exemplo. A experiência deles conta. Pode ser muito boa para nós”, anota Rui Mendes. Volta a pensar-se nas margens do Douro (para um centro náutico, como pólo importante do desporto escolar ou até, quem sabe, para um palco flutuante para um festival de música). São “estas pequenas coisas e “muitas ideias” que resultam em acções — como os projectos com a Universidade do Minho para monitorização e combate a incêndios e estudo do impacto da perda e de tempos de recuperação da vegetação.

Incluída na zona protegida está o carvalhal de Reixela, uma mancha autóctone resistente de carvalho alvarinho e negral com apontamentos de árvores adultas de azevinho. “Se a temos”, diz Carla Pinto, da Associação Ambiental Ecosimbioses, “temos que a agarrar com uma atenção especial”. “Temos que olhar para estas zonas com um olhar especial e muito atento. E mostrá-las. As pessoas preservam aquilo que conhecem. Queremos passar isso a gerações que aí vêm. É um ecossistema muito sensível. O não se mexer é o ideal. Vai-se gerir por si própria.” As actuais proprietárias desta mata com muitas árvores centenárias são duas irmãs, Arlinda e Ilda, de 92 e de 89 anos. “E não querem mexer. Têm esse espírito, não deitar nada abaixo. Têm muito amor por este sítio.”

Mais, os carvalhos são espécies resilientes em termos de incêndios florestais. “Só estamos a tentar reverter aquilo que fizemos durante os últimos anos. Isto tudo que aqui vêem eram carvalhos. A natureza e os carvalhos estão sempre a tentar voltar. Se se permitir que eles cresçam, eles daqui a uns anos estão como esta árvore”. Enormes.

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Tiago Lopes

No Mosteiro de Santo André de Ancede (apesar de se desconhecer a data da sua fundação, sabe-se que em 1120 já pertencia à Diocese do Porto), agora sob tutela da Câmara Municipal de Baião, poderá estar o melhor exemplo de utilização de recursos, cruzando todos os pilares fundamentais desta estratégia de sustentabilidade. Para além do Centro Interpretativo da Vinha e do Vinho, do núcleo de arte sacra, da capela octogonal do Senhor do Bom Despacho e de todo o edificado com recuperação assinada por Siza Vieira que pretende ser um pólo dinamizador de artes, os terrenos envolventes, vinhas e pomares, também estão a ser aproveitados.

“Estamos a cultivar tudo o que a terra produz”, diz-nos José Lima, vereador para os assuntos económicos. A grande parte dos produtos são utilizados na cantina da câmara municipal e todos os funcionários recebem alertas com os produtos da época. Já agora, o estrume aqui utilizado vem directamente do Centro Hípico. Esta área, que em breve vai receber um lar de cavalos em fim de vida, inclui 500 pés de castas antigas de vinho para que não se perca o “património genético”. “Só na região há cerca de 50 castas”, explica o enólogo António Sousa. “Procuramos manter a genética que pode desaparecer, variedades em que nunca ninguém reparou. Se estas castas resistiram estes séculos todos, era pena que desaparecessem agora.” “A Câmara Municipal não procura lucro. O que se fizer, reinveste-se aqui”, conclui José Lima. “Vamos mostrar às pessoas que a terra nos pode dar de comer”.