Dona Octávia é património nacional, mas pouca gente sabe isso
Temos uma ideia velha que é fazer uma volta a Portugal com amigos para provar enchidos tradicionais, ouvir histórias e fazer um ranking (dos dois assuntos). E sempre que pensamos nisso o ponto de partida é o mesmo: O Fumeiro de Dona Octávia, no Cano, Sousel. Se é para arrancar, que se arranque em grande. Na Fugas, todas as semanas, vamos conhecer Guardiães do Sabor, mestres da cultura gastronómica de Portugal.
Com 74 anos, Octávia Rebelo é uma mulher destemida nestes tempos doidos quando nos recebe. Estende as mãos, e nós fazemos o mesmo. Quando se juntam, sentimos um choque. Dona Octávia (assim é tratada) não tem mãos, tem dois blocos de gelo que comunicam com os antebraços. “Sentiu? É quase meio-dia, não é? Pois eu estou assim desde as sete de manhã, a hora em que comecei a lavar tripas.” Com caridade sugerimos, baixinho, talvez uma água menos gelada ou - quem sabe - umas luvas. Dona Octávia olha-nos com benevolência, suspira e diz: “Senhor Pacheco, venha cá que vou-lhe mostrar por que é que as tripas só podem ser lavadas com água bem fria e à mão. Luvas?! Essa agora!” E é assim que dona Octávia inicia a coreografia da produção de enchidos que, julgamos nós, são do melhor que se faz em Portugal. Na casa alentejana do Cano (Sousel), tudo é respeito pelas tradições, tudo é paixão pelo fumeiro e tudo é carregado de sabor – os enchidos, mas também as palavras que saem da boca de Octávia Rebelo.
Octávia nasceu numa casa pobre, com sete irmãos. “Aos seis anos já andava a esguichar no campo” (esguichar quer dizer trabalhar). Ainda conseguiu fazer a segunda classe, mas era preciso trabalhar no sistema de sol a sol. Aos 16 anos foi viver para a casa dos sogros. E foi com a sogra, Joana Maria Rato, que dominou o fumeiro. O marido de Octávia, António Rato Costa, nunca aprovou a aventura da Salsicharia Canense. “E, ainda hoje, por ele fechava-se isso”, refere Octávia com os olhos marejados. De resto, com o sentido de humor que só se encontra no Alentejo, diz-nos que costuma atirar ao marido que se soubesse o que sabe hoje tê-lo-ia “galado como se galava uma melancia”. Uma pessoa fica em silêncio e a tentar deslindar o verbo galar aplicado à melancia. Percebendo a nossa ignorância, remata dona Octávia: “Galar a melancia é fazer um triângulo fundo, retirá-lo e avaliar a qualidade da polpa. E, depois, comprar ou não. É provar para a gente saber com o que conta. Está a ver? Se eu soubesse...”
Agora, por que razão devemos comer os enchidos de dona Octávia? Primeiro, porque são feitos com matérias-primas puras e locais (das ervas aromáticas aos temperos, tudo é feito na casa); segundo, porque são trabalhados em modo artesanal, com um dispêndio de tempo e energia que levaria à loucura um estudante do primeiro ano de um curso de gestão (ninguém faz ideia o que é apertar à mão lombos de porco quatro ou cinco vezes durante um ciclo de fumeiro) e, terceiro, porque dona Octávia é uma guardiã da nossa história gastronómica.
Tudo o que produz tem a marca da tradição e da harmonia. Quando metemos um dos seus enchidos à boca o que sentimos é a riqueza e a delicadeza da carne de porco alentejano, com os temperos e o fumo de azinho na sua conta peso e medida. Um corte de lombo de porco tem o sabor primário da raça alentejana, uma fatia fina de papada em cima de um ovo estrelado estremece-nos, outra de paia de toucinho numa torrada é um petisco de entrada fabuloso, uma lasca de painho com grãos de pimenta preta pelo meio e metidos à mão na carne com um pau de louro é um belo pingue-pongue entre a carne e a especiaria. E a cabeça de xara – ai a cabeça de xara! – é capaz de fazer cair em tentação quem se recusa a comer porco por questões religiosas. Concentrada, sem gordura enjoativa, com notas ligeiras de cravinho e de um sortido secreto de ervas aromáticas, é algo que exige a companhia de um espumante da Bairrada. Convém.
Temos estes sabores porque Octávia é a continuação dos saberes da sogra e dos saberes de Maria Carlota, a senhora que lhe ensinou a fazer a cabeça de xara. Hoje, com os tais 74 anos e dois pacemakers, a sua arte – apesar do apoio do filho João – corre o risco de desaparecer. Até porque a margem que o negócio liberta é pequena tendo em conta o carácter artesanal, o custo das matérias-primas e a perda de peso dos enchidos no fumeiro (50 %). Num país decente, dona Octávia e todas as donas Octávias deste país seriam património nacional.
Se lhe perguntarmos quais são os temperos para este ou aquele enchido, ela diz tudo. Não esconde nada. Mas a decisão final do tempero não resulta do seguimento cego de uma ficha técnica, à semelhança do que acontece nas indústrias de enchidos. Ela prova, rectifica e volta a provar até chegar a um padrão que está na sua memória, que era a memória da sua sogra, da mãe da sua sogra ou da avó da sua sogra. Neste sentido, a dona Octávia é guardiã da receita de enchidos únicos. Sem a transmissão daquilo que só ela sabe ficaremos mais pobres. Até os exigentes técnicos da ASAE, que “frequentam” a casa, lhe dizem: “Dona Octávia, não deixe isto morrer.”
Às mãos de dona Octávia, um porco preto alentejano dá os seguintes cortes e aos respectivos preços, por quilo: peça do lombo (55€), peça do cachaço (55€) lombo com pimenta rosa em grão (55€), papada (35€), painho (29€), chouriço (20€), paio (31€), dois tipos de farinheira (10€), cabeça de xara (22€), dois tipos de morcela (12€ e 15€), cacholeira (15€), paia de toucinho (35€), dois tipos de banha (7€ e 8€) e sortido misto (cacholeira, farinheira e linguiça), a 15€.