A directiva europeia para o streaming é “o início de um caminho” — resta saber onde ele levará

A chamada “directiva Netflix”, que já foi transposta para a legislação da maioria dos Estados-membros, pretende regulamentar o investimento das grandes plataformas de streaming no audiovisual europeu. Proteger a propriedade intelectual dos produtores independentes e atenuar desigualdades entre países também serão desafios.

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Serviços como o YouTube passarão a ser abrangidos pela mesma taxa de exibição imposta à televisão por subscrição e às salas de cinema, fixada em 4%

A partir do próximo ano, empresas como a Netflix e a HBO terão de contribuir para os cofres do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e investir em produção independente europeia e de língua original portuguesa. Isto deve-se à transposição para a Lei do Cinema da directiva 2018/1808, que regulamenta, entre todos os Estados-membros da União Europeia (UE), a oferta de serviços de comunicação social audiovisual, como canais de televisão por subscrição, plataformas de partilha de vídeos (como o YouTube) e serviços audiovisuais a pedido — os chamados video on demand (VOD).

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A partir do próximo ano, empresas como a Netflix e a HBO terão de contribuir para os cofres do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e investir em produção independente europeia e de língua original portuguesa. Isto deve-se à transposição para a Lei do Cinema da directiva 2018/1808, que regulamenta, entre todos os Estados-membros da União Europeia (UE), a oferta de serviços de comunicação social audiovisual, como canais de televisão por subscrição, plataformas de partilha de vídeos (como o YouTube) e serviços audiovisuais a pedido — os chamados video on demand (VOD).

Esta directiva, que a comissão da Cultura e da Educação do Parlamento Europeu apresentou em Bruxelas pela primeira vez há pouco mais de cinco anos, surgiu para tentar responder, na forma de legislação adequada, ao avanço acelerado das tecnologias e à consolidação das plataformas de streaming, que alteraram profundamente os nossos hábitos de consumo. E tanto pretende salvaguardar a aposta no audiovisual europeu, vinculando as plataformas de VOD (desde a Netflix e a HBO à Disney+ ou à Amazon Prime Video, por exemplo) a obrigações de investimento em obras produzidas nos Estados-membros onde operam, como afastar quaisquer cenários de concorrência desleal.

Quando a nova regulamentação sair do papel, os serviços de streaming e os sites de partilha de vídeos terão de se preocupar com um conjunto de obrigações a que os intervenientes tradicionais do mercado já estavam sujeitos. Vejamos o caso português: com as alterações à Lei do Cinema, que foram publicadas em Diário da República a meio da semana passada e entram em vigor a 1 de Janeiro de 2022, serviços como o YouTube passarão a ser abrangidos pela mesma taxa de exibição imposta à televisão por subscrição e às salas de cinema, fixada em 4% sobre “qualquer forma de comunicação comercial audiovisual ou comunicação comercial audiovisual virtual” (ou seja, publicidade) que mostrem.

Já os operadores de VOD ficarão sujeitos ao pagamento de uma taxa anual de 1% sobre o total dos seus proveitos relevantes no país, sendo que uma parte das suas despesas de investimento terá ainda de recair sobre obras europeias e em língua portuguesa. Esta obrigação de investimento inexiste para plataformas cujos proveitos anuais em Portugal forem inferiores a 200 mil euros (ou cuja quota de mercado for inferior a 1%).

Estes são só os números portugueses, no entanto. Diferentes países discutiram diferentes valores e obrigações, sendo que a França, um dos Estados-membros com maior poder negocial neste contexto, terá conseguido o acordo mais robusto: segundo o decreto-lei publicado no fim de Junho pelo Governo presidido por Emmanuel Macron, as plataformas de streaming terão de começar a investir em produções locais o montante correspondente a pelo menos 20% (e até 25%) dos seus proveitos anuais nesse país.

Estas percentagens podem menorizar a transposição portuguesa, aprovada um mês após o prazo inicialmente fixado pelo Parlamento Europeu — embora poucos tenham sido os Estados-membros que votaram a aprovação da directiva atempadamente —, mas há quem acredite que ele representa uma vitória, em grande parte porque a proposta de lei inicial do Governo não incluía a cobrança da taxa anual de 1%, referenciando apenas as obrigações de investimento dos operadores. A missiva “O Governo Português anuncia a morte do Cinema Português”, assinada em Outubro do ano passado por mais de 800 profissionais do sector — e escrita no mesmo fim-de-semana que a carta aberta “Ganhar uma oportunidade histórica para o cinema e audiovisual português convergir com a Europa”, que defendia o valor da transposição e teve metade dos signatários —, acentuou um debate que levou o grupo parlamentar do PS a apresentar, no mesmo mês, uma alteração à proposta de lei, alteração essa que colocou a taxa de 1% em cima da mesa.

Luís Urbano, produtor cinematográfico, foi um dos signatários da carta aberta “O Governo Português anuncia a morte do Cinema Português”. “Na altura, fui bastante crítico da pressa [com que o Governo estava a querer alterar a Lei do Cinema] por uma razão muito simples: países com enorme poder negocial, como a França, [ainda] estavam a discutir o processo; teríamos tudo a ganhar se esperássemos que chegassem a uma conclusão e não nos adiantássemos”, afirma ao PÚBLICO no início de uma conversa sobre a directiva com Manuel Pizarro, eurodeputado do PS que integra a comissão da Cultura e da Educação do Parlamento Europeu enquanto membro suplente.

“O máximo que poderíamos ter recebido se tivéssemos sido ágeis na transposição era uma medalha de honra por sermos os mais rápidos”, continua. “Mas eu não vou colocar essa medalha ao peito, porque aquilo que me interessa como profissional nesta área é ter um sistema que salvaguarde a nossa existência como produtores independentes.”

A propriedade intelectual e as dificuldades de fiscalização

Uma das reservas do produtor, que faz parte do European Producers Club — associação que publicou recentemente no seu site o “Código de práticas justas para serviços de VOD ao comissionarem novos trabalhos de produtores independentes” —, prende-se fundamentalmente com “a filosofia de trabalho de plataformas como a Netflix ou a HBO Max”. Estas empresas, observa, têm uma “tendência para investir em produtos exclusivos” — e quando o fazem, diz, costumam querer ficar com “todos os direitos de autor e conexos relacionados com a obra”. Isto é uma forma de as plataformas “transformarem os produtores nacionais nos produtores executivos das obras que elas pretendem produzir”, argumenta Luís Urbano, defendendo que as questões relacionadas com direitos autorais terão de continuar a ser protegidas no futuro.

Mas a directiva levanta outros problemas, como a da conhecida opacidade das plataformas de streaming, sobre as quais é escassa a informação pública no que à sua parcela de mercado diz respeito, por exemplo. A “digitalização da actividade económica”, explica Manuel Pizarro, faz com que seja “muito difícil cobrar-se [aos operadores] a sua quota-parte de impostos, que têm de ser cobrados para que possa haver equidade”. “Vamos ter de encontrar [o melhor modo de monitorizar] a forma como as empresas de streaming prestam contas”, diz o eurodeputado, avançando que “a Comissão Europeia está a trabalhar na montagem de um sistema de recolha dessa informação”. “A aplicação da directiva exige dados confiáveis e desagregados que [nos] permitam perceber o que está a acontecer”, frisa.

Em Portugal, os operadores terão de pagar uma penalização no valor de um milhão de euros caso o ICA, que será responsável por fiscalizar o cumprimento das suas obrigações, não consiga apurar o valor dos seus proveitos relevantes. Luís Urbano diz não ser improvável que as plataformas de streaming façam, anualmente, uma espécie de jogo matemático: “Ou vêem que o dinheiro da taxa de 1% é maior do que um milhão de euros e não reportam [os seus proveitos, pagando a penalização], ou vêem que afinal o valor dos proveitos relevantes é mais pequeno do que a penalização e reportam.”

Pode ser que estejamos perante um buraco legal. Mas o produtor prefere não ir por aí. “Temos de fazer um esforço cívico. Não podemos colocar-nos do lado de cá e pôr os executores da política pública do lado de lá”, aponta. “Estas coisas têm de ser feitas com diálogo. A tarefa não é fácil. E, não sendo fácil, não [se resolve] com o estalar de um dedo. Há que dar ao tempo às coisas e perceber como é que elas funcionam”, refere, sugerindo que muitas arestas serão limadas nos primeiros anos de implementação das novas regras.

Uma visão da qual Manuel Pizarro partilha. Quando convidado a comentar o facto de a França ter conseguido acordar com os operadores de VOD taxas e obrigações de investimento mais vantajosas do que Portugal, o eurodeputado diz que “encontrar soluções legislativas no plano europeu” é difícil sobretudo devido à “necessidade de as adaptar a realidades nacionais que são muito distintas”. “Não é a directiva europeia que cria uma desigualdade entre Estados-membros, ela reduz essa desigualdade. As circunstâncias eram muito piores antes dela. A transposição é o início de um caminho, não o caminho inteiro. Vamos precisar de avaliar os resultados da implementação para, daqui a dois ou três anos, pensarmos como se pode ir mais longe.”

Se a França conseguiu as condições mais impressionantes — além dos números já citados, deve ser referido que as plataformas de streaming terão de investir em filmes que serão exibidos nas salas de cinema tradicionais antes de chegarem ao online e, ainda, que 66% do dinheiro investido pelos operadores de VOD para a produção de séries francesas terá de ir para produtores independentes, que terão a totalidade dos direitos autorais do seu trabalho 36 meses após a estreia da obra em questão —, outros países conseguiram os números possíveis dada a sua escala.

Em Estados-membros como a Croácia, a Dinamarca, os Países Baixos (onde o novo decreto-lei já está em vigor, bem como na Áustria e no Reino Unido) e a Polónia, espera-se que os serviços de VOD tenham de destinar 6% do seu investimento anual a obras locais. Em Espanha, os operadores investirão o equivalente a 5% dos seus proveitos no território. “O Governo espanhol quer manter a Netflix feliz porque o ‘efeito Netflix’ tem sido muito, muito positivo aqui”, disse recentemente Alvaro Longoria, realizador que produz filmes para várias distribuidoras (como a Cinema Libre e a Morena Films), citado pela Variety. “Não é uma questão de alterar a maneira como eles fazem as coisas, porque já estão a investir aqui. É uma questão de regular os procedimentos, para que toda a gente saiba quais são as regras.”