Produzimos bem, mas são os franceses que ficam com os louros das ostras
A história de Portugal como produtor de alimentos é um disco riscado. No mel, no azeite, no porco preto alentejano, nos cogumelos silvestres e na ostricultura a sina repete-se: produzir a granel para que empresas de outros países acrescentem valor ao que foi feito por cá.
Os valores variam consoante as fontes, mas acredita-se que mais de 80% do que é criado em Portugal vai para França, país líder no consumo e na exportação de ostras na Europa. Como os produtores nacionais só podem comprar ostras de semente da espécie Crassostrea Gigas a maternidades em França – país que tem o monopólio nesta e noutras tecnologias – , ficam dependentes dos operadores franceses. Estes, a troco da tecnologia, contratualizam a compra das produções que são vitais para a alimentação de um negócio que, só nas exportações, rende à França 88,5 milhões de euros por ano.
Esta necessidade de matéria-prima fez com que operadores franceses corressem à compra de concessões de exploração de amêijoa na ilha da Culatra (ria Formosa) para as transformarem em ostriculturas. Ciente de que tal estratégia seria nefasta para o equilíbrio ambiental e social da ilha, Sílvia Padinha, a carismática presidente da Associação dos Amigos da Ilha da Culatra, convenceu dezenas de jovens a manterem as concessões familiares para a produção de amêijoa boa e, também, de ostras. Hoje há jovens empenhados num negócio que promete rendimentos interessantes (ver Fugas de 22 de Maio de 2021).
Mas, apesar de tudo, há dois problemas de difícil solução: o preço pago pelos operadores franceses (a média estará nos 3€ por quilo) e a ausência da origem da ostra nas embalagens que chegam ao consumidor final em França e ao resto do mundo. Como saem de Portugal sem serem depuradas e, em tese, sofrem um processo de afinação nas rias francesas, as ostras viajarão para todo o mundo como ostras francesas porque foram depuradas em França. Meia dúzia de marés e lá mudaram de nacionalidade.
Um quilo destas ostras especiais algarvias sairá dos armazéns franceses entre os 9€ e os 10€ quilo. Numa brasserie parisiense atingirão os valores que a especulação recomenda.
Abençoada natureza
Se no caso do mel, do azeite, do porco preto ou dos cogumelos silvestres Portugal só se pode diferenciar pela qualidade organoléptica dos produtos (coisa que dá jeito para melhorar bases de inferior qualidade), no caso da produção de ostras as coisas são diferentes. E por isto: enquanto um produtor francês necessita, em média, de três anos para criar uma ostra e um irlandês cerca de dois anos, nós, por cá – nalguma coisa a natureza haveria de ser amiga –, conseguimos produzir ostras de qualidade em 18 meses e, muitas vezes, em menos tempo. Num país em que o crescimento e a distribuição do rendimento per capita é o que se sabe porque a produtividade é baixa (com causas diferentes consoante a ideologia de quem discute o assunto), aqui temos um caso que dá que pensar. Produzimos depressa e bem, mas vendemos a granel e a baixo preço para que outros fiquem com as mais-valias.
As zonas estuarinas nacionais são, por diferentes razões, uma espécie de santuário para a produção de ostras. E porquê? Em primeiro lugar, o Atlântico fornece fitoplâncton muito rico para qualquer bivalve; em segundo, as temperaturas que se registam em Portugal – em particular no Inverno – fazem com que o crescimento da ostra seja uniforme ao longo do ano (ao contrário de outras regiões frias que impõem uma espécie de dormência da ostra); em terceiro, a ausência de matéria em suspensão (algas) e a renovação constante das águas por via das marés reforça o alimento das ostras; e, em quarto lugar, a ausência de produções superintensivas em territórios frágeis impede a competição das ostras por alimento.
Perante este cenário, seria de esperar que o país criasse um cluster no universo das ostras, mas, pelos vistos, o sector não está para aí virado. Ou, como defende Rui Moreira (presidente da Associação Portuguesa da Aquacultores), “Portugal não tem, por enquanto, condições para se afirmar como uma marca nos mercados externos porque não tem dimensão e organização produtiva à altura das necessidades”. E continua. “Factores de produção competitivos temos, e excelentes, mas não temos capacidade de garantir consistência e entregas regulares nos mercados externos ao longo do ano. Nesta matéria, para a criação de uma marca de ostra portuguesa – uma ostra do Sado ou uma ostra do Algarve, por exemplo – temos que, desde logo, aumentar significativamente os quantitativos de produção. Sem isso, nada feito.”
Nuno Leonardo é produtor e comerciante de ostras para intermediários franceses de quase todos os ostricultores da ilha da Culatra. Nem quer ouvir falar da questão de criação de marca porque “enquanto o consumo nacional rondar as 100 toneladas nem vale a pena o esforço”. “E imaginar que podemos chegar a França ou a outro país e impormo-nos com uma marca portuguesa é não fazer a mínima ideia de quanto dinheiro teríamos que investir num mercado que é uma espécie de selva.”
Para este empresário que se afirma como “produtor responsável” (as densidades da sua produção respeitam o ecossistema da ria Formosa), “o problema não é sermos produtores de linha branca para operadores franceses”. “O maior problema são os entraves administrativos que inúmeras entidades oficiais impõem aos produtores da Culatra. Nós trabalhamos em condições miseráveis porque o Parque Natural da Ria Formosa e a Agência Portuguesa do Ambiente não autorizam a criação de estruturas de apoio para o manuseamento e expedição das ostras. Não nos deixam ter um armazém de lavagem, triagem e acondicionamento de ostras. Temos que trabalhar num pontão, com cinco ou seis metros quadrados cada, a céu aberto e protegidos por um chapéu de sol. Acha que, com estas condições, podemos criar marca? Sabe como classifico os produtores de ostras? Gladiadores. Trabalham de sol a sol. São uns heróis”.
O caso Aquanostra: a ciência com processos naturais
Embora compreenda o ponto de vista de Rui Moreira, Hugo Castillo, responsável pelo desenho da estratégia empresarial da Aquanostra (única empresa produtora que possui depuradora própria), está noutro comprimento de onda, no sentido em que o seu objectivo, no curto e médio prazo, é “chegar aos mercados externos mais exigentes com uma ostra com identidade portuguesa”. Isso significa vender ostra Aquanostra em França? “Claramente. Não é fácil, sabemos disso, mas se fosse não teria piada. Já vendemos em Espanha e Itália. E estamos a trabalhar para chegar a mais mercados exigentes. Temos excelentes condições naturais e já temos uma ostra com muita qualidade. Com os investimentos que estamos a realizar num método de produção pioneiro e em marketing queremos que os consumidores internacionais associem a marca Aquanostra a uma ostra premium portuguesa”. Neste momento, a Aquanostra trabalha no mercado Horeca, mas também envia em menos de 24 horas um quilo de ostras de calibre especial para qualquer consumidor, em qualquer ponto do país, por 19€ (ostras, faca e limão)
Apesar das tais condições excepcionais de produção, existem problemas melindrosos que, por vezes, provocam mortalidades elevadas nas explorações, valores na ordem dos 70, 80 ou 90%. Vírus, contaminações de diferentes ordens (bactérias ou microalgas nocivas), ausência momentânea de alimento ou alterações bruscas de temperaturas são os factores que estão na origem das mortalidades. E que fazem com que o negócio da produção de ostras seja instável. Um produtor pode ganhar dinheiro durante um ou dois anos e perder quase toda a produção no ano seguinte, só porque está sujeito às condições naturais do meio ambiente.
Ora, a Aquanostra, que tem como um dos sócios fundadores o biólogo António Correia, está neste momento a construir um sistema de produção que tem como objectivo eliminar ao máximo os factores aleatórios que provocam a mortalidade da espécie e, em consequência, produzir com consistência e regularidade ostras premium.
Utilizando métodos naturais, este sistema de produção que foi desenvolvido na Nova Zelândia (grande produtor de ostras) consiste, grosso modo, e através de um conjunto de tanques nas margens do Sado, na eliminação do vírus da água do rio, na gestão e controlo da alimentação das ostras (eliminação de microalgas nefastas) e na exposição correcta das ostras ao ar, condição necessária para a intensidade de sabor da ostra. “No fundo, com tecnologias que não usam outra coisa que não seja a água do rio e fitoplâncton, tudo é natural. Estamos só a criar um sistema fechado para controlar os factores de risco”, diz-nos António Correia.
Significa isto que vai haver uma aceleração na produção de ostras? “Vejamos, nós pretendemos com este sistema produzir uma ostra em 12 meses, mas é preciso ter em conta que, apesar de as nossas condições serem excelentes em termos de alimentação e temperatura, uma ostra criada a grande velocidade não é uma ostra de qualidade. Para fazermos uma ostra premium temos de desenvolver processos de manipulação das ostras na água e fora dela para que esta tenha uma concha bem formada, um miolo com volume e rico em glicogénio - o responsável pela sensação doce que sentimos quando comemos uma ostra. O glicogénio são as reservas alimentares que a ostra acumula quando está fora da água, quando está em stress. Isso acontece naturalmente quando a maré baixa, mas como, por vezes, as marés baixam em alturas de muito calor, isso prejudica as ostras. Com o novo sistema vamos expô-las ao ar nas melhores condições possíveis.”
As primeiras ostras bebés vão entrar nos novos tanques já em Outubro, de maneira que em Outubro de 2022 poderemos avaliar os resultados desta nova tecnologia de produção. Talvez Rui Moreira tenha razão quando defende que estamos longe de ter condições para criar nos mercados externos uma marca de ostra portuguesa, mas algum caminho temos de seguir. Para começar, se calhar não seria má ideia desenvolvermos estratégias para aumentar o consumo interno. É que enquanto um francês consome 2kg de ostras por ano, nós, por cá, andamos nos 0,01kg. Somos mesmo fraquinhos.