O Alento senta uma arquitecta e uma fotógrafa à mesa de pessoas anónimas — que lhes dão comida a provar
A ideia é “democratizar” a cozinha: afinal, não são só os chefs que têm receitas dignas de serem partilhadas. Matilde Viegas e Mafalda Salgueiro criaram o Alento, um site que mostra como são os encontros que fazem na casa de pessoas anónimas, mas também receitas e ensaios sobre “a emoção, a ligação e o carinho” que se constroem entre panelas.
Quando Mafalda e Matilde visitaram Maria Emília, a convite da sua neta, já a mulher de 85 anos levava uma semana a aperfeiçoar a antiga receita de pataniscas, um prato que faz “há anos e anos”. Não queria desiludir as convidadas. No dia do encontro, vestiu-se a preceito e abriu a porta a uma arquitecta e uma fotógrafa, que trouxeram, além da câmara, vontade de comer.
Foi assim que, mais do que provar as pataniscas, acabaram por “criar um evento na vida desta família e deixar um registo para ser partilhado com os outros”. E esta foi uma das primeiras visitas que fizeram no âmbito do Alento, o projecto que quer mostrar (ou lembrar?) como “a comida pode ser uma forma de conforto para as pessoas”.
“O Alento tem como slogan ser um projecto sobre comida e as relações estabelecidas em redor da mesa”, apresentam Matilde Viegas e Mafalda Salgueiro ao P3. Nasceu de um interesse da primeira por comida, “não só como uma coisa muito saborosa, mas também como manifestação de ligação, carinho, intimidade e relações interpessoais”, e tornou-se num site e numa página de Instagram que gravita à volta de mesas.
E Mafalda, que no início ia a estas reuniões “um bocado colada” a Matilde, acabou por acrescentar “o seu interesse no registo etnográfico, na documentação de costumes, hábitos e cultura”. “Esta combinação — de um lado mais emocional e do outro mais metódico, cria uma abordagem muito abrangente deste assunto que é a comida, muitas vezes reduzido a papéis muito estereotipados, como a mulher na cozinha, os livros de culinária ou um chef mediático”, enquadra Matilde.
É, no fundo, “uma democratização deste acto de cozinhar”: “Eu e a Mafalda vamos sentindo que há esta hierarquia das pessoas famosas que publicam livros e só àquelas pessoas é atribuído algum valor criativo. Quando, na verdade, toda a gente tem receitas especiais ou momentos especiais associados à comida”, refere Matilde.
A primeira parte do projecto, os gatherings, consiste nestes encontros como o que aconteceu na casa de Maria Emília: deslocar-se à casa de alguém, provar o que lhes dão, escrever sobre o dia e, como um bónus, partilhar uma receita. Entretanto, com a pandemia, deixaram de ser possíveis, mas ambas mantiveram a vontade de ouvir as pessoas, principalmente num momento em que cozinhar se tornou na terapia perfeita para passar o tempo de confinamento.
“Sempre que pudermos, iremos dar preferência a esses encontros, sobre os quais a Matilde escreve e fotografa”, explica Mafalda. “Mas, não podendo ter contacto físico, deixamos de ter fotografia e passamos a ter ilustração. As pessoas enviam-nos imagens do que cozinham e algo que possa transmiti-lo (ou não) e eu ilustro. Como não estamos a experienciar o momento, pedimos à pessoa que escreva o porquê daquela receita”, continua. No final, “não são receitas por si só, há sempre uma razão” — a tal emoção, ligação e carinho —, e são anexadas no arquivo do site: como a receita das pataniscas de Maria Emília, bacalhau à Gomes de Sá de Cristiana Felgueiras ou bolachas com pepitas de chocolate de Orlando Lovell.
Além destas duas vertentes, o site do Alento reúne ainda ensaios relacionados de alguma forma com a comida. Em suma, integra tudo o que possa ser “documentação de uma memória associada a um determinado prato, seja através do registo presencial ou do ensaio”.
Procuram incluir no projecto “pessoas que tenham relações fortes com a comida”, refere Mafalda. “Profissionais ou meramente pessoais”, completa Matilde. E os contactos (e convites) surgem de uma forma bastante informal: através do Instagram perguntam se alguém está disposto a recebê-las para uma refeição. Aceitam o convite e já está.
A vontade, dizem, é desenvolver o projecto para algo “mais complexo, mas mantendo a base”. A investigação deverá ganhar outro peso: “Criar correlações entre hábitos, países, ou dentro do próprio país.” E, embora agora tenham “apenas” uma plataforma digital, a ideia é passar para “um suporte físico”.
“A questão do acesso é muito importante para nós”, garantem. Ao falarem “com as pessoas que enviam as receitas ou as famílias” que visitam, tornou-se evidente “que são também os avós, os pais, as pessoas mais velhas, que ficam entusiasmadas com esta oportunidade de terem um registo” da experiência. Mas, na altura de verem o que foi publicado, dependem dos netos ou dos familiares mais jovens para lhes mostrarem.
Apesar de o Alento ter nascido no final de 2017, foi no início da pandemia que o transformaram num site. Agora, este projecto “sempre em crescimento” quer ir mais além: para concretizarem totalmente a ideia de democratização, querem fazer o conteúdo chegar a todos através de um livro ou uma revista.
Além de tudo isto, Alento é também “tornar lento”. E ainda que não tenham uma visão “romancista” do confinamento, admitem que talvez este período tenha ajudado a “olhar um pouco mais para casa, para a família e para quem está mais presente”. E talvez a entrar um bocadinho mais naquele que é o objectivo do projecto: “Reconhecer que podemos dar atenção a momentos mundanos, anteriormente descartados como inúteis”, resume Matilde.
No Natal, quando desafiaram os seguidores a enviarem receitas natalícias e um pequeno texto a acompanhá-las, receberam muitos agradecimentos por terem proporcionado, acima de tudo, um momento de reflexão. “Quando apontamos para estes momentos muito comuns de outra forma é quando os repensamos e lhes damos mais valor.” Vontade de saltar para a cozinha?