“É um trabalho que dá trabalho”: elas vendem conteúdo erótico online e querem respeito

A partilha de imagens ou vídeos explícitos pagos na Internet é hoje um negócio em crescimento, que começa a ganhar terreno também em Portugal. Apesar de ser uma fonte de rendimentos aliciante e promissora para muitos, é ainda uma indústria manchada pelo preconceito social e pelos perigos associados ao online, como o roubo e a partilha de conteúdos sem consentimento.

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nadia_bormotova/Getty Images

Onlyfans, AVN STARS, ManyVids, Twitter, Reddit. São vários os ciberespaços que não censuram conteúdos NSFW (not safe for work) ou de cariz sexual, servindo assim de palco para trabalhadores sexuais, que produzem, editam e gerem autonomamente as suas páginas. Para aceder às mesmas, é necessário pagar uma subscrição mensal que pode ir dos quatro aos 40 euros, ou ainda mais. Só em Março de 2020, a plataforma Onlyfans ganhou mais 3,5 milhões de inscrições, contando ainda com os cerca de 700 mil criadores de conteúdo inscritos, espalhados um pouco por todo o mundo, incluindo Portugal.

Deadly Raquel, com 21 anos, dedica-se a tempo inteiro à área, desde que ganhou coragem, e em 2019 começou a produzir material erótico online. Hoje em dia, conta com 14,2 mil gostos na página Onlyfans e mais de 50 mil seguidores no Twitter. Com os 800 a 900 euros que geralmente recebe, conseguiu sair de casa e ajudar a sua família, apesar de a mãe da jovem ser a única familiar que realmente sabe a origem do rendimento de Raquel. 

“É suficiente para mim. Consigo pagar a minha renda e investir mais em mim mesma, ir ao ginásio e comprar materiais para filmar conteúdo”, diz. Mas Raquel reforça que o valor nunca é certo e pode oscilar bastante: “O primeiro mês pode correr muito bem, porque és uma cara nova, um corpo novo e o pessoal gosta disso. Há quem faça logo dois mil euros, mas depois dos primeiros meses, os clientes começam a pedir coisas novas, inovadoras.”

Entre nudes, vídeos e conteúdos personalizados, Raquel não faz nada que a deixe desconfortável, apesar de receber muitos pedidos. “Quando me pedem para fazer coisas exageradas ou encenadas – ‘geme assim, geme assado’ –, digo logo que não. O que faço é tudo muito natural”, afirma a jovem, contando ainda que o pedido mais estranho que já recebeu foi que se gravasse a defecar.

Muitas vezes encarada como uma forma fácil de ganhar dinheiro, há toda uma preparação e organização atrás das câmaras que passam despercebidas. Responder às exigências da procura e diversificar o material são alguns dos desafios a superar. “Há tantas pessoas, tantos fetiches, que tens de pensar sempre fora da caixa”, reforça.

“É um trabalho que dá trabalho” 

Guiduxa é o alter ego de Guida, outra jovem que também integrou a plataforma Onlyfans em 2019. Começou porque queria fazer um “pé-de-meia” para viajar e “ganhar uns trocos”, mas agora vê-se a produzir conteúdos explícitos digitais até acabar o mestrado. “Não é um trabalho das nove às cinco e não recebo só ao final do mês. É mais prático, porque organizo as minhas próprias contas, os meus próprios horários, e é uma coisa que consigo conciliar com a faculdade.”

Apesar de oferecer uma maior flexibilidade, não deixa de ser uma actividade que exige dedicação e investimento, ressalva Guida, ao concordar com a pressão que há para apresentar conteúdo novo regularmente. “É como um youtuber. É preciso actualização das redes sociais, ter novas ideias para vídeos, estar a par das novas plataformas e gastar dinheiro nisto, porque a qualidade de câmara faz diferença”, confessa, “não é só tirar uma foto em roupa interior, como se fosse para mandar ao namorado”. “É um trabalho que dá trabalho”, conclui.

“Envolve muita paciência para nos arranjarmos, nos maquilharmos, nos vestirmos com esta ou aquela lingerie ou fantasia”, acrescenta Eva (nome fictício), que há cerca de três anos se estreou na promoção de fotos explícitas no Twitter e, mais tarde, se juntou igualmente à plataforma Onlyfans. Para além das publicações, existe todo um cuidado em responder aos clientes e em mantê-los interessados – “É preciso falar com toda a gente e existe muito mais interacção do que publicação de conteúdos. Até acho que é mais por isso que as pessoas pagam, não é para verem as nossas fotos ou vídeos, é para interagirem connosco.”

Com 24 anos, Eva deixou recentemente de publicar conteúdo erótico online porque se apercebeu de que estava a ficar mais ansiosa e até paranóica. “Havia meses em que atingia os mil euros e eu sempre tentei fazer com que esse rendimento fosse regulamentado. Mas não havia nenhuma maneira de abrir actividade, então tinha sempre medo que as Finanças me batessem à porta e de pagar uma multa gigante”, confessa. Em Portugal, esta actividade ainda não é oficialmente reconhecida, por isso as trabalhadoras ou criadores de conteúdo não conseguem declarar os rendimentos explicitamente ao seu abrigo. Ao contrário dos Estados Unidos, por exemplo, onde há já um formulário próprio de IRS destinado a registar rendimentos oriundos de forma independente e que já enquadra esta actividade.

A falta de privacidade e a propagação de informações mais pessoais na Internet também fizeram com que Eva desistisse de continuar no Onlyfans. “Tive um colega de curso, que já nem sequer andava na minha faculdade e estava a trabalhar lá fora, a mandar-me mensagem a perguntar se precisava de dinheiro”, conta. “E eu não percebia como é que isto tinha chegado a ele e como é que ele sabia quem eu era e onde estudava.” Foi nesse momento que decidiu controlar melhor tudo aquilo que publicava online. Apagou todos os seus seguidores e tornou as suas redes privadas. “Eu não gosto que as pessoas conheçam a minha vida e saibam o que estou a fazer ou assumam alguma coisa sobre mim.”

A exposição que por vezes se torna excessiva, os insultos que constantemente inundam as mensagens ou a forma como os homens assediam as mulheres neste meio foram também razões suficientes para que Guiduxa já fizesse várias pausas na actividade. “Isto tem mesmo um impacto mental nas pessoas. Eu não conseguia olhar para o sexo oposto da mesma maneira e tive problemas em relacionar-me com outros, porque percebemos a forma como certas pessoas te tratam e olham para ti como um objecto”, confessa Guida.

A iminência dos leaks  

O roubo e a divulgação de conteúdos sem consentimento em fóruns, chats ou grupos são um problema comum, dado a pouca ou nenhuma protecção de dados proporcionada pelas próprias plataformas. O Onlyfans, por exemplo, afirma nos seus Termos e Condições que condena rigorosamente “a redistribuição de conteúdo alheio do site”, mas as utilizadoras asseguram que a resposta da plataforma ao furto de fotos ou vídeos é demasiada lenta ou, por vezes, inexistente. “Há um ficheiro de um gigabyte de conteúdo meu a rodar na Internet e sei que vai estar sempre a circular. Houve uma altura em que estava muito em cima disso e denunciava tudo, mas isso não levava a lado nenhum. Agora prefiro manter a minha saúde mental do que estar a preocupar-me”, admite Guida.

Deadly Raquel também já foi vítima de uma situação idêntica e afirma que a única protecção a que pode recorrer é ao pagar um serviço de protecção de direitos de autor, baseado na lei americana DMCA (Digital Millennium Copyright Act), especialmente desenhada para actuar sobre meios digitais. Custa-lhe cerca de cem euros por ano, mas prontamente obriga os sites a deitarem o conteúdo abaixo. “Apesar de as plataformas nos dizerem que nos dão essa protecção, é mentira, e ainda temos de pagar para nos protegerem.”

A lei portuguesa não tem ainda uma regulamentação específica para agir sobre estes casos, mas podem ser encarados como “um furto de conteúdos digitais”, recaindo assim no campo dos direitos autorais e intelectuais, tal como explica Pedro Freitas, professor de Direito Penal na Universidade Católica Portuguesa e investigador em criminalidade informática. “Estamos a falar de um produto artístico ou obra, produzido por uma pessoa, que tem um exclusivo de divulgação e da sua rentabilização. Havendo outros que divulgam sem consentimento, naturalmente estão a praticar um crime, relacionado com a propriedade intelectual, mas não com a intimidade da vida privada das pessoas”, esclarece.

Pedro Freitas reconhece ainda o atraso da legislação portuguesa, bem como da maioria dos países, em relação aos fenómenos do universo online, e admite que as poucas leis que se possam aplicar a estes casos geralmente servem de pouco, já que, “uma vez que o produto é digital, facilmente vai ocorrer a divulgação do mesmo e o direito aí já vai chegar tarde demais”.

As criadoras de conteúdo denunciam também a própria mentalidade retrógrada da sociedade e, por consequência, das próprias autoridades, que desvalorizam os pedidos de ajuda. “Se formos à polícia fazer uma queixa porque as minhas nudes foram publicadas aqui ou ali, eles riem-se na nossa cara”, garante Eva. Raquel conta mesmo que fez uma denúncia em Janeiro por ter tido conteúdo seu roubado e até hoje está à espera de uma resposta.

“Se eu faço isto, sou uma puta e estou a vender-me” 

A discriminação para com a indústria sexual é ainda uma realidade em Portugal e esta nova forma de produção de conteúdos eróticos não está também livre de julgamentos. Guiduxa, que não mostra a identidade nas páginas por medo de represálias no seu futuro profissional, afirma que as trabalhadoras sexuais são vistas como meros objectos – “eu sou uma rapariga que está por detrás disto, com a minha vida pessoal e os meus problemas”, relembra.

O respeito é a “chave” e é preciso saber distinguir que se trata, no final das contas, de um serviço entre um profissional e um cliente e, por consequência, estritamente formal. “Há muitos homens que acham que realmente os queremos. As pessoas têm de perceber que isto é tudo uma fantasia e que não somos amigos, nem vamos tomar café juntos”, continua Guida. 

Apesar de não ser criminalizado legalmente, o trabalho sexual não é visto como uma actividade profissional como as outras. Raquel acredita que há ainda a tendência para considerar que um trabalho só é digno quando se “dá o litro” e se é explorado, acabando por nem sequer corresponder na maioria das vezes à ocupação que realmente se deseja ou para a qual se estuda. “Se eu faço isto, sou uma puta e estou a vender-me. O pessoal das obras vende o corpo; os psicólogos vendem a sua energia”, argumenta a jovem. “Toda a gente vende alguma coisa quando trabalha. Há sempre, no fundo, uma troca de serviços.”

* Trabalho de Bruna Alexandra Ferreira, desenvolvido para uma disciplina do mestrado em Jornalismo da Nova-FCSH

Texto editado por Amanda Ribeiro