Um ano após o confinamento de Wuhan, missão da OMS tenta desvendar mistério do coronavírus

Cientistas internacionais têm muitas limitações na sua investigação, e têm de lidar com pinças com a narrativa oficial de sucesso chinês na forma de lidar com uma nova doença que aprofunda divisões geopolíticas.

Foto
LUSA/ROMAN PILIPEY

Há um ano, os 11 milhões de habitantes da cidade chinesa de Wuhan e outras cidades próximas estavam a ser postos num estrito confinamento, por causa de um novo vírus do qual muito pouco se sabia. Apenas se suspeitava de um mercado onde se vendiam frutos do mar e animais vivos, alguns deles selvagens. Um deles poderia ter sido a origem do vírus que estava a fazer tantos doentes, e a matar pessoas. Um ano depois, há uma missão internacional de cientistas em Wuhan, enviados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), para tentar descobrir a origem do vírus. Mas estamos apenas no início da investigação.

Em vez de andarem pela cidade de Wuhan e arredores como detectives em busca de pistas, os cientistas da OMS basearão o seu trabalho sobretudo no que já foi feito, ao longo do último ano, por investigadores chineses – terão acesso a estudos e amostras que não estão a ser difundidos no Ocidente, por exemplo. Soa estranho – pode ser efeito de ver demasiadas séries e filmes de Hollywood, mas não se esperaria que os investigadores fossem espreitar o mercado, procurar locais onde homem e natureza colidem de forma perigosa para a saúde de todos, visitar o Instituto de Virologia de Wuhan, onde se estudam coronavírus de morcegos aparentados com o SARS-CoV-2?

“A forma como se vai investigar a origem do vírus foi negociada entre a China e a OMS, pelo que se tornou natural que a investigação tivesse que se basear no trabalho feito pelos cientistas chineses”, começa por explicar ao PÚBLICO Yanzhong Huang, analista do think tank norte-americano Council on Foreign Relations, e especialista em China e saúde global.

Transparência

“Por um lado, a China é um Estado-membro da OMS, e esta agência das Nações Unidas não tem poderes para fazer uma investigação independente num país, sem autorização das autoridades. E em segundo lugar, os cientistas chineses já fizeram muita investigação sobre a origem do vírus, durante o ano que passou – embora essa investigação tenha de ser aprovada, sancionada pelo Governo”, completa.

No início da pandemia, houve cientistas chineses que partilharam muito rapidamente a informação que iam conseguindo apurar sobre o vírus que estava a causar um surto preocupante em Wuhan – como o virologista Zhang Yongzhen, do Centro Clínico de Saúde Pública de Xangai, que a 11 de Janeiro disponibilizou online o genoma do SARS-CoV-2, apenas oito dias depois de ter recebido amostras.

Mas uma investigação da agência Associated Press, publicada nos últimos dias de 2020, mostra que desde então, o Governo chinês impôs um controlo apertado sobre os cientistas. Não reprimiu a investigação sobre o novo coronavírus, mas tanto a autorização para que se faça como a publicação têm de passar por um novo gabinete dependente do Presidente Xi Jinping – diz a AP, que beneficiou de uma fuga de documentos oficiais.

Foto
Esta missão da OMS é útil permite à comunidade científica internacional perceber o trabalho que tem sido feito na China

“A transparência da investigação feita na China é de facto uma questão, mas é por isso que esta missão da OMS é útil. Dá à comunidade científica internacional oportunidade para descobrir o que tem sido feito lá, a que conclusões chegaram os cientistas chineses, o que é que já sabem, de facto, sobre o novo coronavírus, e o que é que ainda precisa de ser feito”, comentou Yanzhong Huang. “Esta troca de informações vai permitir desvendar mais pistas sobre a origem animal da doença.”

Porque esse é o principal mistério: qual é o hospedeiro natural do coronavírus que está a fazer sofrer tanto a população humana (suspeita-se de morcegos-de-ferradura) e se houve, provavelmente houve, um animal intermédio, mais semelhante ao homem, onde o vírus se adaptou (o pangolim, que esteve sob suspeita, foi mais ou menos posto de parte), sofrendo mutações que lhe permitiram infectar seres humanos e tornar-se extremamente contagioso.

Mas esta missão deve ser apenas o início dessa investigação. Os cientistas da OMS vão ter pouco tempo para investigar. Chegaram a Wuhan a 14 de Janeiro e têm de ficar em quarentena duas semanas. Só nos 15 dias seguintes poderão ir para o terreno. E sairão da China na altura do Ano Novo Lunar (12 de Fevereiro), quando milhões de chineses têm férias e viajam, para se reencontrarem com a sua família.

Quando se luta para conter uma doença infecciosa, um vírus que se transmite através de aerossóis, esta grande migração anual na China, como lhe chamam alguns autores, é um enorme pesadelo. Talvez por isso tenha havido tantos problemas com a atribuição de vistos a alguns dos cientistas da missão. “Tenho a certeza de que o calendário foi discutido pela OMS com o Governo chinês, mas parece ter havido alguns problemas de coordenação. Isto sugere que a China não estava muito entusiasmada com a perspectiva de receber a missão da OMS nesta altura”, comentou Yanzhong Huang.

O peso da narrativa

Entre os obstáculos que os cientistas da OMS terão pela frente está a narrativa imposta pelo Estado chinês sobre a origem da pandemia. Tem havido poucas notícias nos media estatais sobre a missão, apenas sobre os problemas com os vistos – que levaram a OMS a criticar a atitude de Pequim –, e serviram para difundir uma mensagem distorcida. “A agência noticiosa Xinhua noticiou, mas disse que esta missão científica seria parte de uma investigação global em vários países sobre a origem do vírus, que outros países se seguiriam em breve à China”, explicou o analista do Council on Foreign Relations.

Num clima politicamente polarizado, desde o início, com os Estados Unidos de Trump a quererem atribuir culpas pela pandemia – o vírus “chinês”, lembram-se? –, na China ocorre o reverso da medalha, tenta-se demonstrar que o SARS-CoV-2 terá surgido noutro país. Na Índia, por exemplo, ou até em Itália, onde alguns estudos o parecem ter detectado já no Outono de 2019. Ou em importações de alimentos congelados – só na China surgem notícias de que o vírus foi detectado em peixe congelado importado da Europa, por exemplo.

Foto
O Presidente chinês, Xi Jinping, quando visitou Wuhan, a 10 de Março, com a situação já controlada na cidade Xie Huanchi/Xinhua via REUTERS

“Há todo o tipo de teorias da conspiração, rumores. O Ministério dos Negócios Estrangeiros fala de ‘múltiplos surtos’ desde o início da pandemia. Isto tornou-se parte da narrativa oficial sobre a origem do vírus”, sublinha Yanzhong Huang.

“A narrativa oficial pode ser encontrada no livro branco que o Governo de Pequim publicou sobre como a China lidou com a pandemia. Basicamente, retrata um país que foi eficaz e cooperante a lidar com a pandemia. A má gestão inicial, a nível local e nacional, é omitida”, frisa o especialista em saúde global e China. Mas curiosamente, o grupo independente criado pela OMS para avaliar a resposta à emergência da covid-19, que emitiu o primeiro relatório esta semana, critica a resposta das autoridades chinesas. “Perderam-se oportunidades de aplicar medidas básicas de saúde pública”, diz o documento do grupo, liderado pela ex-Presidente da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf, e pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, Helen Clark.

Apesar de na altura do confinamento de Wuhan ter havido denúncias e um clima inédito de contestação, o cidadão comum chinês aceita essa narrativa: “A maioria das pessoas concorda que o Governo agiu a tempo, foi eficaz, e que a sua acção deve ser encarada como um modelo para que todos os países sigam. Também aceitam as teorias do Governo sobre a origem da pandemia”, diz.

“Há uma espécie de discrepância cognitiva entre o mundo ocidental e a China sobre a gestão chinesa da pandemia”, concluiu Yanzhong Huang, embora note que a actuação do Estado chinês é encarada no Ocidente com uma certa ambivalência: “É um misto de admiração e crítica”, por ter controlado os contágios, mas tê-lo feito de uma forma com a qual os ocidentais não concordam.