Sara Matos: “É muito difícil uma pessoa agarrar-se à ilusão de querer agradar a toda a gente”

Protagonista em Yerma, a actriz volta a subir ao palco do Teatro Municipal Mirita Casimiro, 14 anos depois, com o Teatro Experimental de Cascais.

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A actriz considera que se deve "continuar a ir ao teatro", desde que tomadas "as devidas precauções" Daniel Rocha

Soube desde cedo o que queria ser quando fosse grande. Aos dez anos, Sara Matos já dizia que queria ser actriz, ainda que os pais só a deixassem participar num casting depois de cumprido o 12.º ano. “Não sei como é que isso passou pela cabeça dos meus pais, mas foi a melhor coisa que poderia ter feito”, confessa a actriz, hoje com 30 anos. 

Até lá, passou pela Escola Profissional de Teatro de Cascais, à qual deve as suas “bases” e onde aprendeu a não se dar “demasiada importância”. Se a porta de entrada na representação foi o teatro, foi a série Morangos Com Açúcar que a apresentou a uma geração que se lembra da personagem Margarida Bacelar.

O “percurso artístico” — e não “carreira” porque diz que lhe falta muito para isso — fê-la alternar ao longo dos anos entre o grande e o pequeno ecrã e os palcos. O Clube começa a 24 de Novembro na OPTO SIC, o canal de streaming da SIC. Mas, esta sexta-feira estreia Yerma, um texto clássico de 1934 de Federico García Lorca​, enquanto protagonista. É um “regresso a casa” com o Teatro Experimental de Cascais (TEC) e com o “mentor” e encenador Carlos Avilez. O importante, para Sara Matos, é nunca pensar que sabe tudo e manter-se disposta a aprender. E nunca perder o “nervoso miudinho”.

A peça é descrita como “uma tragédia simbolista, a meio caminho entre o teatro e a poesia, e realidade e o sonho”. Como vai ser esta interpretação de Yerma?
É incrível podermos tirar várias interpretações desta peça. É um texto clássico com quase 100 anos. É como aquelas músicas que são intemporais. É um texto grandioso em que falamos de tudo: de ciúme, traição, paixão. São emoções muito humanas, muito profundas. Acho que as pessoas vão conseguir identificar-se muito com aquilo que estão a ouvir e a ver. Principalmente porque temos tido tempo para nos apoderarmos do texto, para brincarmos com ele. Mas temos tentado respeitar ao máximo o texto de um autor incrível que também é um poeta. Por isso é que falamos muito da poesia que há dentro da própria peça. É respeitá-la ao máximo. E isso foi uma das coisas em que me foquei desde o principio. Eu quero dizer exactamente como lá está. Porque é um texto para mim tão grandioso que eu quero mesmo não passar por cima de nada.

Se neste trabalho o objectivo foi seguir à risca um texto clássico, o mesmo não acontece noutros projectos em que se envolve, por exemplo em televisão. Há aqui uma dificuldade acrescida?
Isto para mim não é uma novidade no sentido em que comecei aqui antes de fazer televisão. Estou de regresso a este palco, no TEC. Esta é a minha base. Estas são as minhas raízes. Foi aqui que me formei enquanto actriz, foi o teatro que me fez perceber “OK, é isto que eu quero fazer. Eu quero ser actriz”. Esta prioridade, esta importância que eu dou em respeitar este texto é exactamente por isso. Eu fui educada assim, fui formada pelo nosso encenador e grande professor Carlos Avilez para dar valor àquilo que estou a dizer. Pegar num texto de um autor incrível, apoderarmo-nos dele e dar-lhe vida com simplicidade, com transparência. E isso por vezes parece fácil, mas é o mais difícil.

É um regressar a casa?
É um regressar a casa...

Há quanto tempo não subia ao palco aqui em Cascais?
Acho que há 14 anos, provavelmente.

Entretanto muita coisa aconteceu...
Claro. Prefiro sempre dizer “percurso artístico” e nunca dizer “carreira”. Acho que para carreira falta muito tempo para lá chegar e se conseguir já era incrível (risos). Mas ao longo do meu percurso artístico ainda não tinha tido oportunidade de voltar [ao TEC] porque decidi explorar outros rumos. Agora, volto com outra maturidade — não digo toda porque como é óbvio estamos sempre a aprender.

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Desde sempre que sabia que queria representar?
Desde os dez anos.

Já contou que a sua mãe lhe disse que o primeiro casting seria depois de completar o 12.º ano. Quando olha para trás, como vê essa “regra”?
Os meus pais sempre aceitaram que eu seguisse esta área. Tanto que fiz o ensino secundário na Escola Profissional de Teatro de Cascais. Só pude fazer o primeiro casting depois dos 18 anos, exactamente quando acabei a escola. Não teve a ver com a idade, mas sim com ter algumas bases. Foi a melhor coisa que poderia ter feito. Ajudou-me a formar-me enquanto actriz e também enquanto pessoa. Deu-me desde cedo muita disciplina. Isso porque nós tínhamos as aulas normais e, como acréscimo, aulas de voz, de corpo, de interpretação, ou seja, uma carga horária bastante relevante. 

Como é que se gere isso desde tão cedo?
Acho que se gere sabendo muito bem aquilo que se quer. Acho que esse é um dos principais obstáculos que os jovens de hoje em dia enfrentam. Não saberem o que é que querem ser. E isso é legítimo. Muitas vezes têm de decidir aos 14 anos que área é que querem seguir. Eu tive a felicidade de saber muito bem. 

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Há actores que na mente do público acabam por ficar extremamente ligados a um personagem que já interpretaram. Talvez muita gente ainda associe a Sara Matos a ser uma “moranguita”. Sente esse rótulo?
Isso existe, sem dúvida, mas não tenho sentido na pele. Tenho conseguido fazer algum teatro à medida que vou fazendo televisão. Não tem sido muito porque, felizmente, assim que me iniciei na televisão, foram-me atribuídas muitas personagens. Felizmente também tenho uma estação que sempre me acarinhou e que me propõe papéis relevantes e diferentes, pelo que tenho estado bastante ocupada. Não faço tanto teatro como televisão, mas tenho conseguido fazer. Então não sinto tanto esse rótulo. Tanto que quando recebi este convite do Carlos [Avilez] não foi uma surpresa. O teatro é a minha formação.

Fazer teatro durante a pandemia é mais complicado?
Não é um problema, é um desafio. Obviamente que estamos todos muito entusiasmados e com muita vontade de demonstrar o trabalho que temos vindo a fazer. Mas sim, é um desafio. É um receio. Nunca sabemos o amanhã. Se vamos estrear ou não. Mas a verdade é que o presente é o mais importante. É dar tudo em cada ensaio. Temos de ter a certeza que as pessoas não podem sair deste espectáculo indiferentes. Porque senão não somos actores. Há outra coisa muito importante que às vezes falta sublinhar: Nós focamo-nos muitas vezes no resultado. A verdade é que a parte mais divertida para mim é a dos ensaios. Aprende-se sempre mais alguma coisa em todos os ensaios. Na contracena, na comunicação que temos uns com os outros. Estamos sempre a aprender. Já sabemos que temos alguns bilhetes comprados, por isso se tivermos cinco pessoas [na sala], não tem mal, já podemos representar (risos).

Sendo que a cultura foi como um escape para muita gente ao longo dos períodos mais duros da pandemia.
A cultura é sempre importante, havendo ou não uma pandemia. A cultura e a educação fazem-nos ir mais longe, querer explorar mais e evoluir. Claro que numa altura de pandemia, as pessoas têm de se resguardar ao máximo, até porque não podemos pensar só em nós. Temos de pensar nos outros. Mas tomando as devidas precauções, acho que devemos continuar a ir ao teatro. Até ao dia em que nos digam que já não é possível. Aí temos de respeitar, parar um bocadinho e deixar para quando for possível.

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Ao mesmo tempo que prepara este projecto, também está nos planos uma série na plataforma de streaming da SIC. Este modelo faz parte do futuro?
Eu acho que sim. Digo isso porque gosto sempre de me meter na pele do telespectador. Eu sei que o meu trabalho é ser actriz e dar tudo por tudo. Estou a fazer uma série que vai ser espectacular. É uma personagem completamente diferente de tudo o que já fiz. É muito forte em termos de emoção e intensa.

Como é que viveu o período de confinamento e todos estes meses de pandemia, também tendo em conta que tem uma profissão que requer contacto presencial com os outros?
É um desafio, tudo é diferente. Para mim já não seria normal sequer pensar em dar dois beijinhos a uma pessoa a cumprimentá-la. Mas isso passa-se com toda a gente. Como nunca deixei de trabalhar a não ser quando houve o confinamento obrigatório, tenho tentado fazer quase tudo o que fazia. Mas sou um bocadinho bicho-do-mato, e acho que todos nós devíamos ser. Ou seja, saio para trabalhar e faço muito pouco além disso. Também pela responsabilidade de estar em dois projectos ao mesmo tempo, não posso sequer pensar em colocar em risco outra pessoa. Acho que todos nós temos de pensar nisso, mas com dois projectos em cima da mesa, um quase a estrear e outro que sai daqui a umas semanas, tenho tido todos os cuidados e mais alguns. Quando não estou a trabalhar, estou dentro de casa, sempre.

O facto de ser uma figura pública coloca-lhe uma pressão acrescida no que toca ao cumprir permanentemente todas as indicações?
Eu não sofro dessa ansiedade porque acho que isso é em relação a tudo. As críticas fazem parte. Não sinto isso nem mais nem menos desde o início da pandemia. Sempre foi assim. É muito difícil uma pessoa agarrar-se à ilusão de querer agradar a toda a gente. Temos de ser fiéis a nós próprios. Obviamente que como figura pública tenho de ter algum sentido de responsabilidade, mas não é um peso, não é uma pressão. 

Por exemplo, eu estou realmente muito motivada quando falo desta peça. Mas não estou a dizer com isso que as pessoas todas vão adorar esta peça nem vivo nessa ilusão. Não podemos agradar a todos. Mas essa paixão tem de vir de mim. Eu tenho de acreditar em mim própria.

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Como é o processo até se mentalizar disso?
Esta escola não me ensinou só em termos técnicos. Ensinou-me a minha maneira de estar perante esta profissão. Ensinou-nos a não nos darmos demasiada importância. Isto tem a ver com as personagens que nos são atribuídas. Muito cedo percebi que o importante não era ter a personagem mais relevante, mas sim dar valor à personagem que tinha. Nós podemos fazer de uma personagem pequenina uma grande personagem se acreditarmos nela, se nos identificarmos, se nos relacionarmos com ela. Isso é-nos ensinado na escola e é isso que faz toda a diferença. Eu não sabia isso. Tem a ver com a energia e com a paixão que depositamos naquele trabalho. Depende muito de nós. Depende da nossa humildade, simplicidade. 

Vou ter defazer uma pequena declaração de amor: cada vez que o Carlos Avilez entra aqui emociono-me. Como é que não me hei-de emocionar quando vejo uma pessoa que está aqui há tanto tempo e que entra com os mesmos olhos a brilhar? Às vezes as coisas correm mais ou menos bem, mas a curiosidade que ele tem no olhar faz-me lembrar uma criança de dez anos. Isso para mim é inacreditável e é uma aprendizagem. O mais importante é sermos humildes no nosso trabalho, sermos simples, estarmos acordados, estarmos disponíveis para ouvir o outro.

Mas ser humilde, ser simples, é mais difícil quando alguém se torna tão conhecida e mediática numa idade mais jovem como aconteceu com a Sara?
Para mim não tem sido um desafio. Isso passa muito pela educação da pessoa. Isso parece-me tão fácil de perceber. Se eu alguma vez achar que já sei alguma coisa, ou que já cheguei a algum lado, não tenho mais nada para aprender... E isso é triste. Se eu souber que tenho tudo para aprender, que ainda não sei nada, percebo que tenho tudo por explorar e vou continuar sempre com curiosidade no meu olhar. E é isso que eu quero para a minha vida. A sensação que tenho é que em quantos mais projectos me envolver, mais experiência. Podem dar-me algum reconhecimento público, mas não me dão mais talento. 

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Nunca pode afectar o empenho que se coloca...
Acho que não. A ideia principal aqui é mantermo-nos fieis a nós próprios e sempre com um olhar de princípio. Mantermos os nossos valores de humildade, de simplicidade, de serenidade. Eu gosto de saber que estou com 30 anos, estou a uma semana de estrear uma peça e ainda não estou nervosa. Foi isso que a experiência me trouxe. Saber que os nervos vão aparecer, mas, se calhar, vou tentar que venham só no dia anterior. Isso sim, dá-nos a experiência. Eu sei o que é pisar um palco e sei o que é ter a responsabilidade de acompanhar uma peça do princípio ao fim, mas não é isso que me vai dar certezas de que vai correr bem e que vai ser um grande peça. É só pôr as coisas no devido lugar. Mas nunca passar pelo deslumbramento de achar que sei alguma coisa. Muito pelo contrário. Ainda não sei nada. Tenho tudo por aprender.

As borboletas no estômago nunca desaparecem?
Não, não podem. Isso é impossível. Nem no dia da estreia nem nos outros dias. Isso nunca pode acontecer, pelo menos para mim. Obviamente que tem de haver segurança técnica, e isso eu sinto que vou construindo à medida que o tempo passa, mas isso é que é a magia das coisas. O milagre de representar. De termos ali um público que pagou aquele bilhete para nos ver e para se identificar connosco e não pode sair dali vazio. Para isso tem de haver aquele nervoso miudinho.