Um fotógrafo lisboeta no Aleixo, o “bairro condenado” do Porto onde nunca teve medo
Da vida comum e comunitária ao tráfico, David Gonçalves mostra os últimos tempos do bairro portuense. O livro Aleixo quer virar preconceitos do avesso e gerar o debate. O seu fim tem uma explicação, diz o fotógrafo: “especulação imobiliária”
Ao aproximar-se das torres do Aleixo, a sensação de entrada numa “espécie de twilight zone” acentuava-se. David Gonçalves aguçava há muito a curiosidade pelo bairro portuense situado em zona privilegiada da cidade e com vistas majestosas para o Douro. Interessava-lhe compreender “as dinâmicas” em torno do “bairro condenado”: “Era um espaço fechado em si mesmo, com uma espécie de distanciamento sociológico perante a comunidade, o que criava dinâmicas próprias”, comentou em conversa com o PÚBLICO no dia em que apresentou o foto livro Aleixo, um retrato da vida do bairro desde 2018 até à saída dos últimos moradores, em Maio de 2019.
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Ao aproximar-se das torres do Aleixo, a sensação de entrada numa “espécie de twilight zone” acentuava-se. David Gonçalves aguçava há muito a curiosidade pelo bairro portuense situado em zona privilegiada da cidade e com vistas majestosas para o Douro. Interessava-lhe compreender “as dinâmicas” em torno do “bairro condenado”: “Era um espaço fechado em si mesmo, com uma espécie de distanciamento sociológico perante a comunidade, o que criava dinâmicas próprias”, comentou em conversa com o PÚBLICO no dia em que apresentou o foto livro Aleixo, um retrato da vida do bairro desde 2018 até à saída dos últimos moradores, em Maio de 2019.
David Gonçalves foi de Lisboa ao Porto para o fazer. Com a ajuda de Julinho Silva, nome artístico Buster, um rapper que morava numa das torres, o fotógrafo teve via verde para entrar. E medo foi coisa que nunca sentiu: “Integraram-me na comunidade, nunca me senti inseguro”, garante. Não havia, à partida, uma narrativa definida na cabeça de David Gonçalves. A estrutura arquitectónica das torres de 13 pisos e galerias interiores era cativante, mas a única premissa era mesmo captar os últimos dias: “Desde o estado das torres até às pessoas que por ali passavam, com toda a discrição, dos moradores aos consumidores e tráfico”, conta.
Nas imagens, ia encontrando “uma espécie de código” existente entre quem habitava o espaço, como nas frases escritas nas paredes, algumas reveladoras de um sentimento de posse e identidade (“o Aleixo é nosso”) ou nas cumplicidades dos miúdos que partilhavam o campo de futebol, entalado entre as torres um e dois. “Fui compreendendo o bairro aos poucos”, recorda. “Percebi, por exemplo, que os números dos andares dentro das torres eram trocados para confundir a polícia. Cada imagem levava a outra, num processo de descoberta.”
Pouco a pouco, David Gonçalves, 30 anos, foi construindo convicções. E nessas nem imprensa nem poderes central e local ficam bem na fotografia: “Pintaram sempre o bairro de forma muito sensacionalista. Obviamente havia problemas sociais muito grandes, mas havia um outro lado da narrativa também.” Nesse outro lado, reduzir o Aleixo ao “supermercado de droga”, como tantas vezes foi dito por políticos e em páginas de jornais, era “injusto e redutor”. O que conduziu o Aleixo ao corredor da morte foi outra coisa: “Havia consumo e tráfico, mas o problema foi sempre a especulação imobiliária. Isso levou ao estigma do Aleixo, reduziu-se o bairro a muito pouco”, lamenta.
Para o fotógrafo, actualmente a frequentar um doutoramento em Ciências da Arte, na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, o Porto pós-Aleixo que se vaticinou como uma cidade mais segura tornou-se exactamente o oposto disso. “Há maior insegurança, o consumo é mais visível”, comenta. “O Aleixo era um tampão e com ele caiu uma espécie de código de conduta entre traficantes e consumidores. O que se passa é uma consequência da demolição.” A urgência é pensar “os portuenses pensarem que cidade querem” e “a Câmara do Porto, que até tem uma folga financeira, explicar o que pretende fazer do ponto de vista social”, afirma, sem poupar críticas a algumas posições do autarca Rui Moreira, que tem pedido maior reforço policial e já defendeu a criminalização do consumo ao ar livre.
O processo de demolição do bairro iniciou-se em 2011, com Rui Rio como presidente da Câmara do Porto, e terminou em 2019, com ordens de Rui Moreira. Os moradores foram entretanto espalhados por vários bairros da cidade, enquanto o Fundo Imobiliário Invesurb, a quem serão entregues os terrenos, continua a construir as casas que serão dadas, em troca, à autarquia.
Fotografar é, por si só, uma tomada de posição. “É ter consciência política e atitude crítica sempre”, sublinha. E o livro Aleixo, tomo a preto e branco, já uma marca de identidade do fotógrafo, não esconde essa leitura de quem viu a vida do bairro por dentro e recusou ideias preconcebidas. Se conseguir “gerar reflexão”, David Gonçalves diz ter a missão maior cumprida.