Nomadland é o Leão de Ouro de Veneza no ano em que Ana Rocha de Sousa chorou duas vezes: Leão do Futuro e Prémio do Júri da secção Horizontes por Listen
O filme protagonizado por Frances McDormand era o favorito. A grande surpresa foi a cineasta portuguesa de 41 anos ter sido premiada duas vezes pela sua primeira longa-metragem, exibida numa secção paralela. Chorou duas vezes.
Nomadland, de Chloé Zhao, acaba de receber, como era esperado, o Leão de Ouro de Veneza, atribuído por um júri presidido pela actriz Cate Blanchett. Foi um projecto iniciado pela actriz Frances McDormand, que, com a realizadora de origem chinesa Chloe Zhao, durante cinco meses atravessaram sete estados americanos e, ao ritmo de quem encontravam, filmaram a paisagem americana nos rostos de quem, sem emprego fixo, procura o seu sonho americano vivendo em caravanas. Como se cada um deles fosse, disse um dos elementos do júri, um Tom Joad de As Vinhas da Ira.
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Nomadland, de Chloé Zhao, acaba de receber, como era esperado, o Leão de Ouro de Veneza, atribuído por um júri presidido pela actriz Cate Blanchett. Foi um projecto iniciado pela actriz Frances McDormand, que, com a realizadora de origem chinesa Chloe Zhao, durante cinco meses atravessaram sete estados americanos e, ao ritmo de quem encontravam, filmaram a paisagem americana nos rostos de quem, sem emprego fixo, procura o seu sonho americano vivendo em caravanas. Como se cada um deles fosse, disse um dos elementos do júri, um Tom Joad de As Vinhas da Ira.
Numa edição, a primeira de um grande festival a realizar-se em pandemia, a ausência das produções dos grandes estúdios americanos, e obviamente de estrelas, fez recear um festival em perda. Para quem se preocupa com o glamour. Pois não só não foi assim, como Veneza 2020 acaba de premiar de novo um filme americano, que embora “independente” fará certamente a partir daqui a sua caminhada como acontecimento do ano. Foi, à sua dimensão, o hit deste ano, como Joker no ano passado.
Mas esta foi uma edição em que uma portuguesa chorou duas vezes: Listen valeu a Ana Rocha de Sousa, 41 anos, o Leão do Futuro, prémio que pretende revelar uma promessa, e ainda o Prémio do Júri da secção paralela Horizontes, presidido pela cineasta Claire Denis. A realizadora dedicou o filme, que “não é só um filme de expressão pessoal”, às pessoas que “passam por maus tempos”. Muito emocionada, dedicou-o também à filha. Listen é a história de um casal de imigrantes portugueses a quem os serviços sociais retiram os filhos, por suspeitarem que há riscos na sua coabitação com os pais. Co-produção entre a Bando à Parte de Rodrigo Areias e a Pinball London, com Lúcia Moniz e Ruben Garcia, é a primeira longa da cineasta que um dia deixou a sua carreira de actriz e a sua aprendizagem em Belas Artes para contar as suas histórias.
Ana confirmou o que queria enquanto realizadora quando, na London Film School onde se formou, Mike Leigh um dia apresentou e elogiou uma curta documental que ela tinha feito, um filme sobre uma lavandaria na zona Este de Londres. Em entrevista ao PÚBLICO, dizia o que reafirmou em Veneza: fazer cinema “não é só coisa de ser artista” e “andar a expressar” a sua arte. “Não quero que seja, nesse sentido, algo de egoísta. Quero que alguém saia do meu filme diferente”. A estreia de Listen em Portugal está agendada para 2021.
Na secção Horizontes competia ainda outro filme português, a curta The Shift, de Laura Carreira, que se formou em cinema em Edimburgo, na Escócia (é uma interessante combinação britânica que trazem estes dois filmes). O júri da secção Horizontes atribui-lhe uma menção, nomeando-o para o European Film Awards 2020, tal como aconteceu o ano passado com Cães que Ladram aos Pássaros, de Leonor Teles.
Menos entertainment e mais cinema
Podia ter sido um festival distópico, por causa da pandemia, e foi um festival de cinema como os festivais de cinema já não são: sem ruído, com menos indústria do entertainment e com mais cinema e com mais espaço para os filmes. Provou-se que é possível. A cerimónia começou logo com a emoção em ponto de rebuçado, evocando a Terra, essa força potente que nos castiga como a meninos mal comportados, proibindo-nos de dar abraços e beijos. Mas “chegámos aqui, todos”, ao final, e com uma selecção que se não foi trepidante, convidava a conversar com os filmes, alguns deles intrigantes e arriscados.
Muitas vezes, em festivais de lume demasiado brando, os júris conseguem, com as suas escolhas, mostrar o fogo onde ele esteve. Ou seja, muitas vezes o melhor filme é mesmo o palmarés. Desta vez não havia muito para estragar, mas o júri foi, é preciso dizê-lo, pouco corajoso. É uma surpresa, por exemplo, a ausência de dois dos melhores títulos italianos do palmarés, Notturno, de Gianfranco Rosi, e Le Sorelle Macaluso, de Emma Dante, e a escolha de Pierfrancesco Favino como melhor actor em Padrenostro, o pior italiano e um Pierfrancesco mais inexpressivo do que o de Traidor, de Bellochio. A razão talvez seja o facto de esses filmes lidarem com o social e com o político de forma muito ínvia, e obviamente Blanchett e os actores Matt Dillon e Ludivine Sagnier, os cineastas Veronika Franz, Joanna Hogg e Christian Petzold e o argumentista Nicola Lagioia, pensaram mais em termos de cânone, de actualidade, do ar do tempo. É isso o Leão de Ouro, Nomadland, ou o Leão de Prata, Grande Prémio do Júri a Nuevo Orden, a Michel Franco (as desigualdades sociais... um Parasitas mexicano?). Depois, é misterioso o Leão de Prata para a Melhor Realização a Kiyoshi Kurosawa, por Wife of a Spy, um filme absolutamente académico.
Mas enfim, olharam para Konchalovsky, que aos 83 anos mostrou ser um daqueles veteranos com a sabedoria da concisão e da economia, património eternamente jovem. E não esqueceram o filme máximo da competição, The Disciple, de Chaitanya Tamhane (deram-lhe o prémio para Melhor Argumento que foi uma forma de o incluir, mas sem coragem para mais). E distinguiram a presença mais perturbante do festival, a angulosa resistência de Vanessa Kirby em Pieces of a Woman.
É isto, chegámos todos aqui. Passem a palavra: é possível.
É este o palmarés oficial da 77ª edição:
Prémio Especial do Júri: Dear Comrades, de Andrei Konchalovsky
Prémio para Melhor Argumento: The Disciple, de Chaitanya Tamhane
Colpa Volpi, melhor interpretação masculina: Pierfrancesco Favino, em Padrenostro
Colpa Volpi, melhor interpretação feminina: Vanessa Kirby, em Pieces of a Woman
Leão de Prata para a Melhor Realização: Kiyoshi Kurosawa, por Wife of a Spy
Leão de Prata, Grande Prémio do Júri: Nuevo Orden, de Michel Franco
Leão de Ouro: Nomadland, de Chloé Zhao