Portugal não é racista e Lisboa não é capital
O que é então um país que criminaliza o racismo mas não o condena? O que se chama a um país em que há centenas de queixas por racismo contra as forças de segurança e nenhuma resulta em condenação?
António Barreto descobriu que Portugal não é racista. O sociólogo olhou para o país e constatou que “na legislação, nos tribunais, nos sistemas de saúde e educação, em nenhum dispositivo legal há conteúdos racistas e de segregação racial objectiva”, que “a legislação e a Constituição proíbem as manifestações de racismo” – logo, que Portugal não pode ser racista.
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António Barreto descobriu que Portugal não é racista. O sociólogo olhou para o país e constatou que “na legislação, nos tribunais, nos sistemas de saúde e educação, em nenhum dispositivo legal há conteúdos racistas e de segregação racial objectiva”, que “a legislação e a Constituição proíbem as manifestações de racismo” – logo, que Portugal não pode ser racista.
É um diagnóstico e pêras, não só porque arruma um dos mais vivos debates dos últimos tempos, como também abala os alicerces epistemológicos da análise social. Toda a metodologia terá de ser revista daqui para a frente: defina-se o problema e encontre-se a resposta na legislação vigente. Assunto arrumado.
Mas, por atrevimento, admita-se duas outras hipóteses. A primeira, elementar, é que há aqui uma distância entre o sociólogo e o colunista, e que é o colunista António Barreto que olha para a legislação e que sentencia que “Portugal não é um país racista”, tal como foi o colunista António Barreto que sentenciou um dia em entrevista ao semanário Sol que “Portugal é um país muito anticlerical”, apesar de a Constituição proclamar que “a liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável”.
A segunda hipótese, complementar, é a de que há aqui um problema metodológico, que não basta olhar para a legislação de um país para concluir que a experiência vivida dos seus cidadãos existe ou não. É que também não é o carácter nominalmente laico do Estado português que faz com que Portugal deixe de ser um país católico, que celebra feriados católicos e que tem o catolicismo como forte traço cultural e social. É que a legislação proíbe e pune a discriminação de género, mas Portugal continua a ser um país machista onde as mulheres portuguesas lutam contra a subalternização económica e social e continuam a morrer em número intolerável às mãos dos homens. É que, por cúmulo, a Constituição também não designa Lisboa como capital de Portugal, mas a capital de Portugal é Lisboa, para todos os efeitos.
É evidente que não basta olhar para a legislação portuguesa. Olhe-se antes para a forma como a lei é aplicada. No caso do racismo, a situação em Portugal é de descriminalização oficiosa. Em nove anos, de 2009 a 2018, o Ministério da Justiça não registou qualquer condenação por racismo em Portugal.
Nenhum agente da polícia portuguesa foi igualmente condenado por racismo de 2006 a 2016, apesar de as forças de segurança serem visadas em cerca de metade das 878 queixas que a Comissão pela Igualdade e Contra a Discriminação Racial recebeu nesse período, e apesar de as Nações Unidas terem repetidamente expressado preocupação com a violência das autoridades portuguesas contra minorias étnicas e com a investigação inadequada destes casos pela justiça.
O que é então um país que criminaliza o racismo mas não o condena? O que se chama a um país em que há centenas de queixas por racismo contra as forças de segurança e nenhuma resulta em condenação? Como qualificar um país que incumpre reiteradamente a sua parte do contrato social relativamente aos seus cidadãos não brancos?
Perante isto, o máximo que se arranca a alguns autores é a transformação da questão num debate semântico: Portugal não é racista, Portugal é um país onde há racismo. Combata-se o racismo, mas respeite-se o bom nome de Portugal.
Admita-se essa possibilidade. O problema é que nada é racismo em Portugal. Tudo tem outra explicação qualquer e seguimos alegres para o caso seguinte. O homicídio de Bruno Candé? Houve outro motivo qualquer, sabemos lá. A agressão a Cláudia Simões? A mulher era complicada. Os insultos a Moussa Marega? É a emotividade própria do futebol. Nelson Évora é barrado à porta de uma discoteca? Ora, já aconteceu a toda a gente. A preferência dos senhorios por inquilinos brancos? É o mercado a funcionar, deixem-no estar. Uma justiça para negros e outros para brancos? Isso não é bem assim. E corremos atrás de uma excepção que nos absolva a todos: o António Costa, a Francisca Van Dunem, o Ricardo Quaresma! No final de contas, e pelo crivo de boa parte da opinião publicada e da opinião pública, o racismo em Portugal é um fenómeno mais elusivo que o lince-ibérico, pelo que não merece grande preocupação.
Esta visão é depois partilhada por boa parte da classe política. Uma parte da direita decidiu que o racismo é um fenómeno empolado pela esquerda, pelo que não o discute. Em vez de apresentar uma proposta de direita para o problema do racismo, em defesa da liberdade e da dignidade humana perante um Estado que é frequentemente o agressor, por exemplo, demite-se de mais um dos grandes debates do nosso tempo, como tem feito em relação a qualquer coisa que não encaixe numa estreitíssima agenda de liberdade económica. Outra parte da esquerda comete o mesmo erro, entendendo que é um problema de somenos importância perante a luta de classes, ignorando que um negro pobre ou um cigano rico serão sempre tratados de forma diferente de um branco pobre e um branco rico, e que nem os regimes socialistas escaparam à violência étnica e racial.
Se não queremos dizer que Portugal é racista, reconheça-se pelo menos que Portugal não é anti-racista, que não está a fazer o suficiente para combater o racismo. Não basta não falar do assunto. A justiça tem de se sobrepor a sensibilidades alheias.