Educação em emergência pandémica: é possível não deixar nenhum aluno para trás?
Cada um daqueles alunos incontactáveis que não regresse à escola significa regredir quase todo o caminho que desde há 15 ou 20 anos, coletivamente, a sociedade portuguesa avançou para que em educação cada vez menos pessoas fiquem para trás.
Mais de metade dos professores inquiridos numa auscultação recente não conseguiu contactar uma parte indeterminada de crianças e jovens seus alunos, pelo menos durante as primeiras semanas de educação de emergência, à distância. Podemos, com certa segurança, assumir que, naquela fração de estudantes, se contam cerca de 50.000 que não disporiam de ligação à Internet, bem como aqueles que, mercê de múltiplas barreiras, têm uma mais frágil participação na aprendizagem e na escola.
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Mais de metade dos professores inquiridos numa auscultação recente não conseguiu contactar uma parte indeterminada de crianças e jovens seus alunos, pelo menos durante as primeiras semanas de educação de emergência, à distância. Podemos, com certa segurança, assumir que, naquela fração de estudantes, se contam cerca de 50.000 que não disporiam de ligação à Internet, bem como aqueles que, mercê de múltiplas barreiras, têm uma mais frágil participação na aprendizagem e na escola.
Podemos ainda admitir que boa parte desses alunos incontactáveis, há 10 ou 15 anos, viriam a integrar as estatísticas do abandono escolar precoce; se em fevereiro tal não aconteceria é porque foram sendo (re)mobilizados para a aprendizagem e para a escola pela ação coletiva organizada de professores e outros técnicos, em coligação com famílias e demais intervenientes na escola e na comunidade. As bases desta ação com jovens, famílias e comunidades estão hoje fragilizadas e reduzidas as possibilidades que iam permitindo mitigar barreiras à participação na aprendizagem enfrentadas por esses alunos.
Estudos recentes exploratórios e provisórios [1] sugerem que a aprendizagem, nesta educação remota de emergência em casa, aparenta depender dos meios de acesso à interação pedagógica, da capacidade de estudar autonomamente e do apoio doméstico com que o estudante pode contar; igualmente sabemos há décadas que quanto mais a aprendizagem dos alunos depender dos recursos e apoio familiares, mais se ampliam as desigualdades educativas. Assim, é expectável que a educação de emergência à distância, acentuando a influência do contexto familiar e reduzindo o leque e a efetividade de oportunidades institucionais para aprender, aprofunde desproporcionadamente o fosso da progressão nas aprendizagens.
Neste momento de preparação do próximo ano letivo, as crianças e os jovens incontactáveis e as barreiras que nessa condição os colocaram, bem como as pronunciadas desigualdades nas aprendizagens resultantes, terão de estar necessariamente no topo das prioridades que definem opções, meios e recursos para organizar o serviço da educação pública de emergência que não deixe nenhum aluno para trás. Como em muitas outras situações, serão a política e a pedagogia a alicerçar os contextos de interação em que a aprendizagem e a educação de emergência vão ser materializadas.
Porque os reportórios de ação pedagógica dos professores podem ser alargados e a ação organizada da escola para superar velhas e novas barreiras à participação de crianças e jovens na aprendizagem depende de condições e opções políticas que lhe sejam favoráveis. E, neste sentido, as políticas económicas e orçamentais para a educação são tão decisivas quanto outras opções nessa matéria: os custos sociais tendem a elevar-se desmesuradamente, sobretudo para os mais frágeis, quando a escolha fica determinada pela política educativa mais barata.
Hoje, parece indispensável um forte investimento nas condições humanas e materiais de acesso à participação na aprendizagem, garantindo que nenhum estudante é excluído; na constituição de turmas promotoras de condições e oportunidades acrescidas de aprendizagem junto de alunos que enfrentam severas barreiras a essa participação; na organização da escola para criar modalidades de apoio adicional, individual e em pequenos grupos, a crianças e jovens academicamente mais frágeis; no reforço da formação para ampliar o reportório de ação pedagógica dos professores em situação de educação de emergência.
Por aqui passará a contenção do sofrimento e de outros custos individuais, coletivos e sociais da pandemia. Porque cada um daqueles alunos incontactáveis que não regresse à escola significa regredir quase todo o caminho que desde há 15 ou 20 anos, coletivamente, a sociedade portuguesa avançou para que em educação cada vez menos pessoas fiquem para trás.
[1] Carl Cullinane e Rebecca Montacute (2020). Covid-19 and Social Mobility Impact Brief #1: School Shutdown (research brief); Lisa-Maria Müller e Gemma Goldenberg (2020). Education in times of crisis. The potential implications of school closures for teachers and students.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico