Into the White”: o mercado do branqueamento da pele em Lisboa

Alcançar um ideal de beleza é, para muitas mulheres, uma atitude que comporta riscos para a sua saúde. Uma investigação em Lisboa no mercado de produtos e tratamentos para aclarar tonalidades de pele, consideradas desvalorizantes segundo certos padrões de beleza, ajuda-nos a compreender como são construídas as imagens de um corpo “ideal”. E até onde as pessoas estão dispostas a ir para o conseguir.

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Poderíamos pensar que os padrões de beleza estão a redefinir-se, tornando-se mais inclusivos e abrangentes, deixando de lado critérios de beleza que definem o tamanho do corpo, o formato do rosto, a cor da pele, a textura do cabelo. Mas então por que é que encontrarmos perguntas “Como clarear a pele”, “alisar os cabelos” ou “afinar o nariz” entre as principais pesquisas no Google relacionadas com a beleza?

Apesar de nos últimos anos terem aparecido nas redes sociais novas tendências como a “kardashianização” das mulheres ou o “blackfishing” (o fenómeno de pessoas brancas que se fingem negras no Instagram), o corpo-norma das capas de revista continua a promover a beleza “branca” como ícone de sofisticação e sucesso. Como é que estes padrões influenciam a autoestima das mulheres que não se encaixam ou reconhecem neste ideal restritivo e exclusivo? E como é que a população não branca reage a um ideal de beleza que promove pele clara, cabelos longos e lisos, nariz pequeno e olhos azuis?

O projeto Excel Em Busca da Excelência. Biotecnologias, enhancement e capital corpóreo em Portugal, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, analisa, desde 2017, as condições históricas e socioculturais do crescimento deste mercado, as dimensões biopolíticas da beleza associadas à valorização da aparência “europeia”, as consequências sociais e os dilemas éticos associados à indústria estética definida como “étnica”. Procurando consumos dirigidos a essa beleza ideal, encontramos no centro de Lisboa a existência de um amplo mercado de produtos e tratamentos destinados à despigmentação da pele.

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O corpo-norma das capas de revista continua a promover a beleza “branca” como ícone de sofisticação e sucesso DR

Entender o branqueamento da pele

O uso cosmético de substâncias de branqueamento da pele é uma prática muito antiga e atualmente espalhada pelo mundo, transversal do ponto de vista da classe social, idade, género, situação económica, nível de escolaridade ou profissão. A pele escura foi durante séculos, também na Europa, associada à pobreza e ao trabalho rural, e a palidez, pelo contrário, associada a nobreza e alta classe social. Quase todo o fabrico de produtos cosméticos a partir do século XVI na Europa era direcionado ao branqueamento do rosto: desde a aplicação de pigmentos à base de carbonato de chumbo à utilização de pó de arroz, o objetivo era conseguir uma pele de porcelana, símbolo de virtude, pureza e requinte.

Embora as motivações, as histórias e as experiências possam ser diferentes, em sociedades marcadas por hierarquias rígidas, distinções de classe ou castas ou ainda pela colonização europeia, a ideia de “branquitude” está associada a valores morais positivos e a múltiplos privilégios estruturais. Estudos internacionais dedicados à análise da relação entre cor da pele, mobilidade social e profissional e sucesso no mercado matrimonial (por exemplo, os estudos da socióloga Margaret Hunter) reforçam que ainda hoje — por causa da persistência de preconceitos e práticas discriminatórias baseados na cor da pele — pessoas mais claras conseguem ter acesso a empregos melhores, são consideradas mais atraentes, sofisticadas e até mais educadas.

Qual a relação entre “colorismo” (discriminação pela cor da pele), “pigmentocracia” (o privilégio da pele clara em relação à escura no que toca às oportunidades de mobilidade social), discriminação étnico-racial, exclusão social e práticas de branqueamento? Qual a influência de celebridades como Beyoncé, Rihanna ou as atrizes de Bollywood na construção de ideais de beleza, estilo e glamour híbridos e plurais? Quais as esperanças e as ambições de quem compra e utiliza substâncias para aclarar a pele, hoje, em Lisboa?

Para melhor perceber estas práticas temos que considerar o valor da “pele branca” e escutar as vozes, as narrativas individuais e as experiências subjetivas de quem constrói performativamente o próprio corpo usando produtos de aclaramento, assim como outros alisam o cabelo, usam extensões ou pestanas postiças, por exemplo.

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O aclaramento da pele como estratégia social

Apesar de existirem nas mercearias, nos estabelecimentos comerciais, nos salões de beleza e cabeleireiros africanos, chineses e indianos do Martim Moniz e da Avenida Almirante Reis produtos de aclaramento de pele especificamente destinados ao público masculino, é entre as mulheres que esta prática tem maior expressão. A maior parte das mulheres que entrevistámos afirmou que foram introduzidas à prática pela própria mãe ou por membros próximos da família ou do grupo restrito de amigas. Cresceram a ver mulheres cuidar do corpo, com os mesmos produtos e gestos; viram que quem conseguia uma pele mais clara e uniforme recebia mais elogios e tinha mais sucesso. O aclaramento, muitas vezes definido como “tonalização” da pele, não é, para elas, apenas uma questão estética, mas uma forma de aumentar a mobilidade profissional, o sucesso no encontro de parceiros e de obter mais aprovação social. 

Daniela fala-nos do aclaramento como estratégia: “A beleza é poder. Se eu não tivesse mudado um pouco a minha aparência, não estaria a trabalhar aqui [famosa loja de cosméticos e perfumaria]. Se queres representar uma marca, tens que ter a aparência que os clientes valorizam. E os portugueses gostam de mulheres mais magras, com a pele não tão escura, com um toque ‘exótico’ como as trancinhas compridas ou um grande ‘afro’.”

Paula reporta como a confrontaram com perguntas sobre o seu corpo e as suas origens: “As pessoas perguntam-me sempre: ‘De onde vens realmente?’ E eu respondo: ‘De Oeiras.’ Com esta pergunta estão a dizer-te que és diferente, que não és como os outros.” Foi a mãe que lhe mostrou o aclaramento da pele: “Ainda me lembro do cheiro destes produtos em criança... Comecei para remover umas manchas e umas marcas de acne. Começas a ficar mais clarinha e a gostar de ser assim, como Beyoncé ou Rihanna. Todos queremos ser apreciados, não é? Na escola eu não era ‘a rapariga linda’. No máximo, era ‘a sexy’. É bem diferente.”

As consumidoras dificilmente admitem o emprego destas substâncias. Todavia, mesmo que exista um certo pudor ou receio em confessar o recurso a estes cosméticos, os produtos de aclaramento da pele são extremamente comuns, económicos e de fácil acesso. São provenientes da Índia, da China ou da África Ocidental e podem ser comprados em qualquer loja do comércio dito “étnico” no centro de Lisboa, sem qualquer tipo de farmacovigilância, autorização ou monitorização do ponto de vista da segurança dos componentes. Nas montras destacam-se produtos como o famoso Fair & Lovely, com a sua embalagem branca e rosa; o Caro White e o Caro Light, com as modelos africanas de pele claríssima ou ainda o best-seller Whitenicious com o slogan publicitário “white means pure” (“branco significa puro”). As embalagens exibem rostos sorridentes de mulheres de pele clara e imagens que contrastam uma face feminina escura e triste e a sua transformação numa mulher confiante e feliz com o aclarar de pele.

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Quase todo o fabrico de produtos cosméticos a partir do século XVI na Europa era direcionado ao branqueamento do rosto DR

Além dos cremes, que dominam o mercado, estão também disponíveis loções, comprimidos, supositórios e injeções. Aqui começamos a entrar num campo cada vez mais problemático, pois é conhecido o efeito nefasto destas substâncias na saúde. Produtos feitos a partir de soluções caseiras com ingredientes de fácil acesso são também potencialmente nocivos, ou verdadeiramente tóxicos, tais como lixívia, pasta de dentes, relaxantes capilares ou detergentes de limpeza.

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Os produtos de aclaramento da pele podem ser comprados em qualquer loja do comércio dito “étnico” no centro de Lisboa, sem qualquer tipo de farmacovigilância, autorização ou monitorização DR

Segundo Miguel Peres Correia, presidente da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia, os dermatologistas e em geral os profissionais de saúde em Lisboa desconhecem a abrangência desta prática em Portugal, assim como a existência do mercado ilegal de cremes aclarantes. A maior parte dos consumidores, por outro lado, desconhece os riscos de saúde associados ao emprego constante de cremes branqueadores, e em nenhuma das lojas que visitámos existe qualquer tipo de advertência sobre o assunto.

As substâncias contidas nestes produtos (hidroquinona, corticoides, mercúrio, ácido salicílico, entre outros) em elevadas concentrações são altamente tóxicas. A hidroquinona pode provocar hiperpigmentação, queimaduras, acne severo, lesões e perda de elasticidade cutânea. Os corticoides podem propiciar infeções cutâneas, glaucoma, cataratas, hipertensão, diabetes e infertilidade. O uso de mercúrio de forma prolongada causa problemas renais, hepáticos e neurológicos. Usados não somente na face e em áreas expostas, mas também nas axilas, virilhas e região genital, em casos mais extremos as consequências da sua utilização excessiva podem ser fatais. O emprego destes produtos é prejudicial para o desenvolvimento das crianças e para grávidas, podendo até causar malformações do feto.

Como descolonizar a beleza?

Uma reflexão histórica crítica sobre o colonialismo e as ideologias que o sustentaram é fundamental para compreender hoje as políticas racializantes da beleza. No entanto, se estamos realmente interessados num trabalho de “descolonização” da beleza, devemos estar dispostos a entender corpos e estética além da questão do eurocentrismo, para discutir como as mulheres negoceiam ativamente as suas expectativas e cultivam desejos que envolvem nacionalidade, identificações racializadas, género, classe e muito mais.

A nossa pesquisa evidencia que as mulheres que se autodefinem como “brancas” também usam com assiduidade produtos e tratamentos médicos de aclaramento para efeitos de iluminação e rejuvenescimento da pele. Nas principais farmácias e perfumarias da cidade os produtos de despigmentação são numerosos e posicionados nos expositores mais visíveis, ao nível dos olhos das consumidoras. É suficiente uma leitura rápida dos nomes dos produtos das mais famosas marcas para reparar na hipervalorização da brancura: a pele branca é “pura”, “angelical”, “excelente”, “elegante”, “melhor”, “perfeita”, “limpa”, “saudável”, “divina”, “mágica”, um verdadeiro “milagre”. Os elementos associados à pele branca são preciosos ou puros como “neve”, “diamantes”, “pérolas” ou “porcelana”.

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Apesar de existirem muitos produtos de clareamento para homens, é entre as mulheres que esta prática tem maior expressão Creative Touch Imaging Ltd./NurPhoto via Getty Images

O modelo de beleza e de feminilidade “pura e angelical” proposto torna-se instrumental para práticas de exclusão e discriminação dos corpos que não se assemelhem ao “ideal” desejado. A diversidade dos “outros corpos” – não brancos, neste caso — torna-se um “defeito” que é preciso corrigir. Que a busca da “beleza a qualquer custo” possa comportar severos riscos para a saúde, ninguém duvida. O mercado do branqueamento evidencia uma biopolítica reprodutora de modelos eurocêntricos de beleza branca. As dimensões afetivas, íntimas e viscerais da beleza impõem um repensamento crítico que nos ajude a identificar as relações históricas, sociais e económicas envolvidas e os imaginários e desejos sobre o corpo ideal. Entender a articulação entre políticas do corpo e género, estética do branqueamento e racialização da beleza significa, em primeiro lugar, assumir a herança histórica racializada e reconhecer que ela se perpetuou no presente. Em segundo lugar, significa ouvir as experiências das pessoas implicadas, compreender as suas escolhas estéticas, nos seus próprios termos, para começar um processo de descolonização — neste caso, dos padrões de beleza e das formas com as quais olhamos para o nosso corpo.


Antropólogas, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa 
(As autoras seguem o acordo ortográfico)