Consórcio português cria um teste para imunidade à covid-19

Cinco institutos científicos estão a criar um teste que detecte anticorpos contra o novo coronavírus. Têm já um protótipo. O objectivo é ver que pessoas já tiveram contacto com este vírus e se isso lhes deu imunidade, protegendo-as de uma nova infecção. Informação que é crucial para o controlo da pandemia e o regresso à normalidade.

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Se um de nós já esteve em contacto com o vírus da covid-19, mesmo não o sabendo, esse encontro deixou marcas no nosso sistema imunitário, que reagiu produzindo anticorpos específicos contra o coronavírus SARS-CoV-2. Tal contacto pode ser denunciado com testes (serológicos) que procurem esses anticorpos no soro sanguíneo de uma pessoa. Sendo o SARS-CoV-2 totalmente novo para nós, pelo mundo estão a desenvolver-se testes serológicos que respondam a uma série de incógnitas sobre o vírus. Quem já esteve infectado sem nunca ter tido sintomas? Será que o vírus desencadeia a produção de anticorpos capazes de fornecer imunidade? E esta protecção é sazonal ou de longa duração? Cinco instituições científicas portuguesas avançaram, juntas em consórcio, para o desenvolvimento de um teste serológico a aplicar na população portuguesa e ajudar, ao mesmo tempo, a esclarecer estes grandes enigmas.

Eis as cinco instituições do consórcio Serology4Covid: o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC); o Instituto de Medicina Molecular (IMM) da Universidade de Lisboa; o Centro de Estudos de Doenças Crónicas (Cedoc) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; o Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) da Universidade Nova de Lisboa; e o Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica (IBET).

O consórcio já tem o protótipo do teste e já o testou em dezenas de amostras de sangue de pessoas que tiveram covid-19 e de sangue antigo (colhido antes do aparecimento do vírus, que serve de controlo). “Até ao final desta semana, esperamos ter analisado 100 amostras para ter o teste validado”, informa o imunologista Bruno Silva-Santos, vice-director do IMM, esclarecendo que daqui a uma ou duas semanas a fase de desenvolvimento do teste deverá estar terminada.

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Mónica Bettencourt-Dias, directora do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras Daniel Rocha

“A ideia é ter um teste que possa ser feito em larga escala e que possa medir se as pessoas têm anticorpos contra o SARS-CoV-2 – se já viram essa infecção, porque há pessoas assintomáticas que não sabem que tiveram a doença. Se estão imunes, se têm de ser vacinadas e quão longa pode ser essa imunidade”, assinala também Mónica Bettencourt-Dias, directora do IGC, em Oeiras. Estas questões são importantes, contextualiza a investigadora, para gerir a pandemia no futuro, até porque 80% dos casos detectados de covid-19 têm sintomas leves ou moderados e cerca de 25% dos casos nem sequer têm qualquer sintoma, ainda que possam propagar a infecção.

Os passos seguintes do consórcio passam por encontrar um parceiro na indústria biotecnológica que produza o teste serológico em massa, bem como a articulação com as autoridades de saúde quanto à sua aplicação na população portuguesa. “A visão do consórcio é produzir um teste que só tenha associado o preço de custo para ser aplicado facilmente à escala nacional, em coordenação com o Ministério da Saúde, a Direcção-Geral da Saúde e o Insa [Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge]”, frisa Bruno Silva-Santos.

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Bruno Silva-Santos, vice-director do Instituto de Medicina Molecular de Lisboa DR

Vamos por partes em relação aos testes. Há os testes moleculares e os testes serológicos. Os que têm estado a ser aplicados em Portugal no diagnóstico da covid-19 são os moleculares: detectam a presença do próprio material genético do vírus (a molécula de ARN) nos doentes, em amostras colhidas no nariz ou na garganta. Ao permitirem ver quem está infectado nesse instante, possibilitam a detecção do vírus durante a infecção.

Já os testes serológicos detectam no soro sanguíneo os anticorpos desenvolvidos pelo sistema imunitário em resposta à infecção. No caso do novo coronavírus, os anticorpos começam a surgir apenas na segunda semana após o início da infecção. Por isso, embora possam ser usados no diagnóstico, testes serológicos não são os mais indicados para detectar precocemente a infecção e evitar o contágio. Dizem “apenas” que a pessoa esteve em contacto com esse agente patogénico. Pode ainda estar infectada, mas também pode já nem estar e ter ficado a memória dessa infecção através dos anticorpos. No entanto, numa fase posterior os testes serológicos são valiosos para avaliar a imunidade adquirida a nível individual e, depois de muitos de nós termos tido contacto com o vírus, a imunidade como grupo populacional protegendo-nos uns aos outros, sobretudo perante um vírus desconhecido até há poucos meses como o SARS-CoV-2.

“Como todos os outros vírus, este também induz uma resposta no hospedeiro. Claramente, há anticorpos na população humana que neutralizam este vírus”, explica Bruno Silva-Santos. “Não sabemos é se os anticorpos de cada pessoa a protegem da entrada do vírus na célula. A dúvida é se, em todas as pessoas que têm anticorpos, eles bloqueiem a entrada do vírus. Quem é que, tendo anticorpos, está realmente protegido?”

Da China para os EUA

Perante esta nova ameaça global, os cientistas têm-se apressado por todo o lado a desenvolver protótipos de testes serológicos para o SARS-CoV-2. Porém, este é um terreno totalmente novo que se está a desbravar. Muitos destes testes, além de caros para aplicar em massa, ainda têm uma percentagem elevada de resultados que são falsos negativos e falsos positivos. Países como Espanha e o Reino Unido já se confrontaram com esse problema em testes encomendados.

Atingindo de rompante a espécie humana como uma forma estranha de pneumonia no final de Dezembro de 2019, na cidade chinesa de Wuhan, o vírus foi rapidamente isolado e o seu genoma sequenciado por cientistas chineses. A 10 Janeiro, tornavam esses dados públicos.

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Florian Krammer, virologista da Escola de Medicina Icahn do Hospital do Monte Sinai, Nova Iorque DR

Pegando na sequenciação genética do vírus, nos Estados Unidos a equipa de Florian Krammer, da Escola de Medicina Icahn do Hospital do Monte Sinai (Nova Iorque), isolou as sequências do gene envolvidas na codificação de uma proteína viral muito importante. Essa proteína, que é um pico à superfície do vírus, é a espícula, ou spike. O vírus usa a espícula para entrar nas células humanas, em particular usa uma parte da proteína a que se chama o “domínio de ligação ao receptor”. O receptor, esse, encontra-se à superfície das nossas células. A espícula é a chave com que o SARS-CoV-2 abre a porta das células humanas, ligando-se ao tal receptor, e depois entra e replica-se aí.

Em seguida, a equipa de Florian Krammer pegou nas sequências genéticas da proteína inteira da espícula, bem como só da parte do domínio de ligação ao receptor, e colocou-as dentro de um plasmídeo. Os plasmídeos são fragmentos de ADN de forma circular, geralmente bacterianos. Como podem ser modificados ao juntarem-se-lhes novos fragmentos de ADN, são uma ferramenta muito útil para inserir material genético em células-alvo.

Foi assim que a equipa de Florian Krammer introduziu, em células humanas, a sequência genética da proteína inteira da espícula do novo coronavírus e só da parte do domínio de ligação ao receptor. As células passaram então a fabricar esses pedacinhos do vírus. Por fim, a equipa revelou o protocolo seguido, passo a passo, num artigo científico disponibilizado no repositório medRxiv, para que o processo de produção desses pedaços do vírus pudesse ser repetido em qualquer sítio do mundo. Informação que é preciosa para desenvolver testes serológicos.

E porquê esta proteína? Porque, neste caso, o nosso sistema imunitário também a reconhece como um agente estranho que nos pode prejudicar. E procura atacá-la. Uma das formas de ataque é através da produção dos tais anticorpos dirigidos concretamente a um agente patogénico, neste caso a esta partícula viral. Feitos à medida, esses anticorpos encaixam na perfeição no antigénio desse agente patogénico específico, bloqueando a sua entrada nas células. Um teste serológico socorre-se assim dos dois lados desta mesma moeda. No kit está o antigénio do vírus e na amostra de soro sanguíneo de uma pessoa poderão estar (ou não) os anticorpos. Ao colocar-se o soro no kit, o antigénio funciona como isco dos anticorpos.

Por correio até Portugal

No seu artigo científico, Florian Krammer dizia que os plasmídeos que desenvolveram estariam disponíveis para quem os quisesse, de forma a poder produzir-se a proteína inteira do vírus ou parte dela. O mundo ouviu-o e os seus materiais e protocolo estão a ser usados por todo o lado como base para desenvolver testes serológicos. Igualmente, foi o que fez o consórcio português.

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Paula Alves, directora do Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica, em Oeiras DR

No início deste mês, o consórcio estava a receber dos Estados Unidos um papel de feltro laboratorial embebido com gotinhas dos plasmídeos, conta a engenheira bioquímica Paula Alves, directora do IBET, em Oeiras. “Pegámos no material enviado dos Estados Unidos e produzimos as proteínas em quantidade para dar aos nossos colegas [do consórcio].”

Para aumentar a quantidade de proteínas virais, agora de produção portuguesa, os plasmídeos foram igualmente introduzidos em células humanas. “As células humanas são usadas como fábricas: com elas conseguimos produzir a proteína o mais próximo possível da realidade do vírus quando ele infecta as células.” Portanto, são elas que vão fabricar para nós os antigénios do novo coronavírus. Como são células humanas, os anticorpos no soro humano poderão reconhecê-las mais facilmente. “Na China, há antigénios à venda e podemos comprá-los, mas não foram produzidos em células humanas. Podem não funcionar muito bem. Um dos problemas [dos testes serológicos para este vírus] são os falsos negativos e falsos positivos.”

Como o mundo está em correria a criar protótipos de testes serológicos para o novo coronavírus, alguns já em células humanas, não tardarão a aparecer no mercado testes bastante fiáveis. Porquê então este esforço em Portugal? “Porque podemos ter testes serológicos completamente feitos em Portugal sem estar dependentes de cadeias de fornecimento. Como se viu com as máscaras, ficavam pelo caminho. O que queremos é ser auto-suficientes”, responde Paula Alves. Bruno Silva-Santos partilha dessa visão, até porque, como os testes serológicos para a covid-19 estão a entrar em grande acção no mundo no combate à pandemia, a sua procura é muita. “Queremos ter um teste para aplicação em Portugal em larga escala, para isso tem de ser barato, e não queremos ter restrições de acesso aos kits”, acrescenta Bruno Silva-Santos.

“Enquanto não houver uma vacina, temos de seguir o estado imunológico da população portuguesa com testes em larga escala, para perceber como a infecção está a progredir e ajudar o Governo a tomar a decisão de reabertura da sociedade para controlar a densidade de pessoas em contacto umas com as outras”, completa o imunologista. “A vacina é uma forma de induzir a imunidade de grupo. Não tendo a vacina, as pessoas só adquirem imunidade através da infecção.”

Mas não é claro ainda se a infecção pelo SARS-CoV-2 depois se traduz de facto em protecção, se essa protecção é para a vida como no sarampo, se é sazonal como na gripe, ou até se pode voltar a ser-se infectado ao fim de pouco tempo da doença. “A presença de anticorpos é um indicador do potencial de imunidade à partida, mas isso tem de ser validado depois. Temos de ver se a pessoa ficou protegida”, resume Bruno Silva-Santos. “E depois, com a vacina, a única forma de saber se ela é eficaz é ver quantas pessoas desenvolverem anticorpos e estão protegidas.”

Helena Soares, investigadora do Cedoc citada em comunicado, acrescenta que este teste permitirá também “quantificar possíveis diferenças na produção de anticorpos entre portadores assintomáticos, casos ligeiros e casos mais graves, com importantes repercussões a nível da saúde individual e pública”.

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Instalações do Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica (Oeiras), onde se fabricaram pedaços do novo coronavírus para desenvolver o teste serológico DR

Regressando ao IBET, a proteína do vírus que foi aí fabricada seguiu depois até aos outros quatro parceiros do consórcio. A cada um coube desenvolver o resto do teste serológico e validá-lo em amostras de soro sanguíneo, para evitar “falsos positivos” e “falsos negativos”. Fixaram a proteína em placas de plástico e começaram a inocular-se aí o soro de quem teve covid-19 e de quem nunca poderia ter tido. “Tem de detectar quem tem muito poucos anticorpos. É o busílis da questão”, exemplifica Bruno Silva-Santos. “Essa ligação é detectada por um reagente que emite luz. Se houver anticorpos, há emissão de uma luz amarela, que é medida num detector. Quando é muito amarela, há muitos anticorpos.”

O Insa, que é laboratório nacional de referência nestas questões, terá ainda de certificar este teste serológico. Aliás, o Insa vai começar em Maio um estudo-piloto serológico numa amostra de 1700 pessoas representativas da população portuguesa. Os testes, neste caso, são comerciais e a sua real eficácia está em avaliação pelo Insa.

Já o teste desenvolvido pelo consórcio português terá os seus protocolos experimentais divulgados de forma totalmente aberta à comunidade científica. Mas, para poder chegar à população portuguesa em grande escala, falta ainda encontrar uma empresa de biotecnologia que o fabrique a preço de custo. E decidir em que moldes será fabricado – se como uma placa laboratorial (com resultados mais lentos, mas mais rigorosos), se num dispositivo individual à semelhança de um teste de gravidez (mais rápido, mas menos informativo). Mónica Bettencourt-Dias diz que o consórcio está a falar com a indústria nesse sentido, além de se ir articular com o Governo para ver onde, quando e a quem aplicar os testes.

Nesse dia, esta história ter-se-á tornado um dos exemplos do esforço global dos cientistas no combate à pandemia, com impacto imediato nas nossas vidas.