A resposta europeia à pandemia: um “castelo de cartas”?

A resposta económica da Europa à pandemia não é só decepcionante: equivale a pouco mais de metade da resposta do Japão e a menos de um quarto da resposta dos EUA. Ela também é clara: cada Estado-membro está sob sua conta e risco no combate à covid-19.

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REUTERS/Dado Ruvic

Apesar das fragilidades conhecidas da Zona Euro, em Setembro do ano passado Mario Draghi declarava em entrevista ao Financial Times que os opositores do euro –​ os soberanistas – tinham sido derrotados.

Seis meses volvidos, a Zona Euro entrou na maior crise da sua existência em resultado de um vírus. A trágica realidade dá às palavras de Draghi um sentido de Teatro Kabuki, deixando a todos um travo amargo na boca.

Em artigo escrito há dias no mesmo jornal, Draghi declara agora que as medidas dos Estados para evitar o colapso dos sistemas de saúde são necessárias, apesar de acarretarem um custo económico “enorme e inevitável”.

Para “novos” males, “velhas” receitas?

Numa transposição quase fidedigna daquelas palavras, os Estados têm-se multiplicado em anúncios de medidas “extraordinárias e temporárias”, como sejam: linhas de crédito com garantias do Estado; flexibilização do pagamento de impostos ao Estado; e “lay-offs” (simplificados), que facilitam a redução de salários com o apoio do Estado.

Infelizmente, estas medidas não só são incorrectas como são ineficazes. Primeiro, baseiam-se no pressuposto de que esta é uma crise de duração curta, com uma recuperação rápida em forma de “V”, quando – como salienta muito bem Nouriel Roubini (Universidade de Nova Iorque) – a evidência é cada vez mais consistente não com uma contracção em “V”, “U” ou “L”, mas em forma de “I", ou seja, o colapso da actividade económica e dos mercados financeiros. Dada a enorme incerteza, não é pelo acesso a linhas de crédito que as empresas decidirão investir, nem é garantido que prefiram manter-se em funcionamento, quando, para muitas, o mercado, simplesmente, “desapareceu”.

Segundo, elas põem o Estado a tentar disfarçar que o tempo não corre, ao “congelar” as responsabilidades presentes das famílias e das empresas (como sejam, as moratórias de empréstimos e os alargamentos de prazos de pagamento de impostos). Com isto, o Estado está apenas a adiá-las, na medida em que desonera as famílias no presente, mas transfere as obrigações destas para o futuro. No entanto, uma instituição como o BCE enquanto “market maker” poderia assegurar o pagamento de um rendimento às famílias. Desta forma, estaria a “descongelar” as suas responsabilidades, permitindo que as famílias pudessem extinguir, efectivamente, as suas obrigações no presente e à medida que elas se vencessem no futuro, o que evitaria interrupções indesejáveis na actividade económica.

Terceiro, elas assentam, fortemente, em respostas nacionais e não europeias, quando, paradoxalmente, o Pacto Fiscal Europeu assinado em 2012 decidiu “enterrar” a virtude contracíclica das políticas orçamentais. Agora, a Comissão Europeia “ressuscita-a” por via da suspensão das regras vigentes, sem sequer fazer "mea culpa". Acresce que, apesar da insistência de que este é um “choque exógeno simétrico”, os efeitos da covid-19 têm sido até à data “devastadoramente assimétricos”. Por isso, o “Pandemic Emergency Purchase Programme (PEPP)” lançado pelo BCE elimina ataques especulativos sobre alguns Estados-membros no curto-prazo, mas não os evita no futuro.

Finalmente, elas implicam – à semelhança da crise da dívida soberana de 2010-2012 – uma enorme transferência de risco do sector privado para o sector público, sendo sabido que nem os Estados-membros gozam de soberania monetária, nem o euro foi desenhado com um credor de última instância, que deveria ser “incondicional” perante situações excepcionais de calamidade como a presente.

Seria oportuno recordar que, imediatamente antes da crise da dívida soberana, várias instituições se lançaram em apelos aos Estados para adoptarem medidas orçamentais expansionistas. E foi, precisamente, por esta sua “ingénua” irresponsabilidade que, imediatamente a seguir àquela crise, partiram das mesmas instituições “castigos” com uma austeridade draconiana para os países devedores.

Portanto, “quando a esmola é grande, até o Estado deveria desconfiar!”

O que deveria estar a ser feito, mas não está!

Antes de mais nada, esta é uma crise de saúde pública. Assim, na ausência de uma vacina, as medidas de distanciamento social e “lockdown selectivo” são um mal menor, mas necessário. É, por isso, que a crise de saúde pública acaba por gerar uma recessão económica.

Mas sendo um “acontecimento raro” – uma espécie de desastre natural muito específico –, tal recessão não é “convencional”. Daí que a estratégia de combate não possa passar por medidas de estímulo monetário ou orçamental que “disparam em todas as direcções”.

Pelo contrário, dado que os recursos nacionais não são infinitos, urgem medidas de política económica desenhadas de forma cirúrgica e com objectivos particularmente bem definidos.

Do ponto de vista económico, a crise actual resulta de um choque negativo do lado da oferta, com a suspensão temporária de parte da produção e a perturbação das cadeias de valor global.

No entanto, ela também resulta de uma queda da procura, aparentemente, maior do que o choque da oferta, como refere, e bem, Paul Krugman (Prémio Nobel da Economia em 2008). Assim, as medidas de política económica deveriam evitar o aumento do desemprego ou a redução do rendimento dos trabalhadores resultantes daquela queda, protegendo-os ao máximo.

No contexto Europeu, as autoridades supra-nacionais, em coordenação com os governos nacionais, deveriam estar a implementar duas medidas complementares e ajustáveis, de carácter excepcional e confinadas à duração da pandemia, a saber:

1) os Estados-membros deveriam proceder à emissão de dívida pública com a maturidade de 100 anos à taxa de juro de 0%, a qual seria adquirida pelo BCE, e há formas de o fazer. Esta dívida financiaria, exclusivamente, a despesa de saúde dos Estados destinada a combater a crise de saúde pública. Tendo um valor presente líquido relativamente pequeno – devido à sua longa maturidade –, tal dívida não representaria qualquer estrangulamento financeiro para aqueles.

2) o BCE deveria criar nova moeda – “helicopter money” –, que seria creditada, em última instância, nas contas das famílias. Tal medida deveria ter como único objectivo financiar a despesa das famílias afectadas pela doença ou pela suspensão “forçada” da actividade da empresa. Em termos microeconómicos, ao passar um cheque às famílias, o banco central não está só a proteger o rendimento destas; está também a atenuar a queda da procura dos bens produzidos pelas empresas, reduzindo, automaticamente, o incentivo que estas têm para encerrar em definitivo. Por isso, deveriam manter-se os postos de trabalho e a relação contratual entre a empresa e o trabalhador. Do ponto de vista macroeconómico, ela evitaria uma “depressão económica” sem precedentes e o risco de deflação que lhe está associado.

Em momento algum se pode falar em “risco moral” nestas duas medidas: nenhum Estado-membro é responsável pela crise de saúde pública; ninguém pode ser acusado de se querer infectar, intencionalmente, com o intuito de receber um cheque do banco central; e nenhuma empresa ganha mais com a suspensão temporária da actividade do que com o seu normal funcionamento.

Assim, a estratégia de combate à pandemia deve desonerar os Estados de qualquer assunção de risco, que seria transferido para o BCE. Tão pouco pode sujeitá-los a condicionalidades. Não havendo “risco moral”, o que se espera da Europa é uma verdadeira partilha de risco.

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O presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, após anunciar nesta quinta-feira o acordo sobre um pacote de 500 mil milhões de euros para responder à pandemia EPA/PATRICIA DE MELO MOREIRA

Ausência de solidariedade “sem precedentes": como se resolve o problema dos Estados? Com mais dívida!

Já após termos concluído este artigo, foi anunciado um acordo do Eurogrupo sobre um pacote de 500 mil milhões de euros, que traduz a resposta económica da Europa à pandemia.

Esta resposta não é só decepcionante: equivale a pouco mais de metade da resposta do Japão e menos de um quarto da resposta dos EUA. Ela também é clara: cada Estado-membro está sob sua conta e risco no combate à covid-19.

Sejamos claros, as medidas aí designadas como “redes de segurança” mais não são do que linhas de crédito (empréstimos): (i) financiadas, em primeira instância, com o recurso a garantias nacionais; (ii) inegavelmente, sujeitas a condicionalidades; e (iii), em larga medida, já existentes

Assim, a “rede de segurança” de apoio aos trabalhadores da Comissão Europeia – o programa “SURE” – mais não é do que uma linha de empréstimos de 100 mil milhões de euros. Não tem chave de distribuição, tem uma base voluntária de contribuição para o Orçamento Comunitário e só pode ser operacional se os Estados disponibilizarem, em primeiro lugar, 25 mil milhões de euros de garantias com recursos nacionais. Ou seja, o Estado tem de dar para poder receber. Trata-se de um instrumento de resposta ao crescimento da despesa pública com as medidas de protecção ao emprego (e.g. regime de lay-off), medidas essas que a própria Comissão Europeia promoveu.

A “rede de segurança” de apoio às empresas é, também, uma linha de empréstimos – de 200 mil milhões de euros junto do Banco de Europeu de Investimentos (BEI) e dirigidos às pequenas e médias empresas. Tenha-se presente que tais operações de financiamento já existem: só em 2019 o BEI apoiou 230 mil milhões de euros de investimento e Portugal é um accionista da instituição, colocando, por isso, recursos na mesma. Nada de novo, portanto! Só que, desta feita, o propósito não é financiar investimentos, sendo dúbia qualquer rentabilidade da operação.

Finalmente, a “rede de segurança” de apoio aos Estados – isto é, a linha de crédito cautelar do Mecanismo Europeu de Estabilidade (no montante de aproximadamente 240 mil milhões de euros, não obstante a capacidade de financiamento ainda disponível de 410 mil milhões de euros da instituição) também já existe. O limite de 2% do PIB no recurso de cada Estado-membro a esta linha também tinha sido anunciado previamente e manteve-se. Às condicionalidades que a mesma já prevê, adicionou-se outra: a utilização exclusiva para financiar custos de saúde.

Em suma, a resposta económica revela a arte do “ilusionismo” na Europa: uma mão vazia, outra cheia de nada e a terceira é invisível.

Uma austeridade “quase permanente” que aí vem...

As medidas que têm vindo a ser anunciadas terão custos enormes, que poderiam ser evitados. Não são credíveis na protecção dos trabalhadores, sendo expectável um aumento em massa do desemprego e da precariedade das condições laborais sem paralelo.

São complacentes com a eliminação de um grande número de pequenas e médias empresas, garantindo apenas a sobrevivência daquelas que, por via de relações privilegiadas com o poder político ou com o sector financeiro, acabarão por concentrar grande parte dos recursos do país.

Pecam, inexplicavelmente, pela transferência de toda a responsabilidade para os Estados que, como o nosso, se verão a braços com uma situação de insustentabilidade das finanças públicas, pondo em causa as suas funções mais basilares de assistência social, de promoção da equidade e de prestação de serviços de educação, de justiça e de saúde.

Tudo isto poderia ser evitado se existisse solidariedade europeia. Por isso, é natural que os cidadãos se inquietem em relação às vantagens do projecto europeu. As escolhas do presente limitarão as opções futuras dos Estados, forçando-os à inevitabilidade de uma austeridade “quase permanente” e exacerbando as clivagens já existentes no “clube de credores e devedores” da Zona Euro.

Não surpreende, pois tal solidariedade tem vivido de discursos moralistas sobre o “bom comportamento” dos países devedores, que seria premiado com a promessa utópica de confiança dos países credores. Como se constata, essa solidariedade esfuma-se perante situações de crise.

Se, numa altura tão crítica, é o salve-se quem puder e se compelem os Estados a saltar para cima de “baralhos de cartas” prestes a desabar, para que serve a Zona Euro?

Ricardo Cabral é Professor Auxiliar do ISEG, Universidade de Lisboa. Ricardo Sousa é Professor Associado da EEG, Universidade do Minho