“É tempo de empatia”: os vizinhos que organizam redes solidárias

Não são bilhetes a pedir para manter a porta do prédio fechada. Antes, estes vizinhos querem dizer que a porta deles está aberta para quem precisar de uma ida às compras ou de uma palavra amiga. É só bater — e manter a distância de segurança. A ideia “já contagiou muitas pessoas, e isso é que importa”.

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Inês é a vizinha do 2.º direito, Ivo mora um andar acima. Os dois vivem em prédios erguidos em cidades diferentes, mas a designer digital e o especialista em marketing tiveram a mesma ideia. E se as portas dos dois apartamentos estão fechadas, eles querem que os vizinhos saibam que “ninguém é uma ilha” — e que as portas facilmente se abrem (respeitando todos os cuidados durante o período de isolamento social aconselhado para conter a pandemia de covid-19).

Foi esta a frase escolhida por Inês Pais, 32 anos, para terminar o bilhete escrito à mão que colou com fita-cola no prédio em Lisboa, onde vive sozinha há seis anos. “Comecei a trabalhar a partir de casa por sugestão da minha entidade patronal e como sei que há pessoas mais isoladas no meu prédio, lembrei-me que poderia ajudar, uma vez que, até prova em contrário, estou numa situação mais favorável do que eles, caso adoeça”, conta ao P3, por telefone. “Se calhar os meus vizinhos não precisam, ou não querem pedir ajuda, mas há-de haver muitos outros que talvez queiram ou precisem. Eu moro sozinha e gostava, se precisasse, que alguém o fizesse por mim também.”

No prédio de Ivo Conceição, 36 anos, “não há ninguém que esteja muito alarmado”. Depois de bater à porta dos outros moradores, “mantendo sempre o mínimo de metro de distância aconselhado”, deixou a mensagem nas paredes: “Estamos disponíveis para ajudar com a aquisição de bens de primeira necessidade (supermercado, farmácia…), uma vez que nos podemos deslocar de carro dentro da cidade. Desta forma, evitam-se deslocações desnecessárias por parte de quem tem de ficar mais resguardado”, escreveu.

Ivo já levantou dois pedidos na farmácia. Como agradecimento por um deles, recebeu “uma caixinha de chocolates”. Para “evitar trocas de dinheiro e confusões com trocos”, vai começar uma conta corrente, um modelo copiado das mercearias de bairro que, por estes dias, em Setúbal, ainda continuam abertas. “São pessoas que estão excluídas do acesso ao MB WAY e ao Paypal, por isso, enquanto posso e porque não são somas muito elevadas, facilito. Falando sempre uns com os outros, o que é muito importante. O objectivo é toda a gente estar segura e confortável”, explica.

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Os bilhetes afixados por Inês Pais, num prédio em Lisboa e por Ivo Conceição, num prédio em Setúbal.

Por agora ainda ninguém solicitou a ajuda dos 60 voluntários que João Matos reuniu (online) no Grande Porto, em menos de um dia. “Dentro de uma semana vai começar muita gente a precisar de ajuda”, acredita o produtor de vinhos que, na quinta-feira à tarde, fechou o bar de que é dono na baixa portuense, horas antes de o Governo decretar estado de alerta e avançar com medidas de contingência mais apertadas. 

A preparar esse cenário, e depois de conhecidos e desconhecidos se voluntariarem espontaneamente nos comentários de uma publicação com mais um bilhete no seu Facebook pessoal, está a formar uma rede informal de vizinhos solidários — e a ligá-los a pessoas que o contactam, preferencialmente por mensagem, com pedidos de ajuda. “Estamos a fazer isto de forma muito caseira, mas muito moderada”, assegura, acrescentando que procuram manter o distanciamento social e deixar as compras à porta.

Os bilhetes deixados nos prédios já voaram para os bairros, cidades e redes sociais. As redes informais multiplicam-se por várias partes do país. Em vez de grupos no “WhatsApp com 30 pessoas ou no Facebook com 200 mil”, Graziela Sousa está a juntar “pequenos grupos de controlo local” em cerca de 15 bairros de Lisboa. “Pode ser útil saberes que existe um contacto na tua vizinhança a quem possas pedir ajuda, ou uma palavra de incentivo. Isto é para toda a gente, porque não sabemos os efeitos do isolamento. Dar esperança é o mínimo”, acredita a gestora de projectos e professora na Faculdade de Arquitectura. “Pensei em pessoas que, como eu, vivam sozinhas e queiram sinalizar-se, por não terem muitas pessoas na rede de proximidade. Este é o momento da empatia”, resume.

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O bilhete deixado por João Ramos, no Porto

Em Aveiro, um grupo de teatro que de repente teve de reprogramar quase um ano inteiro, lançou o Porta a Porta neste fim-de-semana. Bruno dos Reis, o director artístico que apesar de muito jovem pertence a um grupo vulnerável, tinha pensado numa pequena rede por e para as pessoas do GRETUA. Mas “faz sentido abri-la”, reconsiderou. Têm cinco voluntários que ainda continuam a sair de casa para ir para os empregos e, para já, álcool e luvas para os proteger. Pedem a quem esteja em casa a recuperar ou que apresente sintomas associados à covid-19, como a tosse, febre e dificuldade respiratória para os avisar, para redobrarem os cuidados quando lhes pedirem para aviar recados. Ao mesmo tempo, começaram a gravar um podcast diário que explora a ideia de como é ser artista em tempos de pandemia.

Enquanto está em isolamento voluntário, Ivo Conceição voltou a dormir a sesta. A companheira e o filho, com quem mora, prepararam uma programação de actividades em casa com momentos de música, etudo, ioga e, à noite, festa. Mudou-se há seis meses para o apartamento dos pais que recuperou, a par das relações com os vizinhos que também “não estavam em bom estado”. “Tive logo na primeira reunião de condomínio de dizer que a minha vinda era um novo início. Eles estavam realmente cépticos”, ri-se, ao telefone, a partir do escritório improvisado onde vai trabalhar por tempo indeterminado. Talvez baste um bilhete como estes para os convencer.

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