A noite cheia de Common e a tarde pouco concorrida do Iminente
Sexta-feira foi o segundo dia do Festival Iminente de Vhils, que decorre no Panorâmico de Monsanto, em Lisboa.
Mesmo que não haja muito público a ver, há muito mais no Iminente do que apenas arte de rua e música, os dois focos mais óbvios do festival co-criado por Vhils. É compreensível, tanto em termos de dimensão quanto do facto de acontecerem no horário laboral.
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Mesmo que não haja muito público a ver, há muito mais no Iminente do que apenas arte de rua e música, os dois focos mais óbvios do festival co-criado por Vhils. É compreensível, tanto em termos de dimensão quanto do facto de acontecerem no horário laboral.
No meio de uma sala do Panorâmico de Monsanto, em Lisboa, podia ouvir-se uma conversa do projecto de jornalismo independente Fumaça sobre o PrEP e o VIH ao início da tarde de sexta-feira, o segundo dia do festival, que tinha lotação esgotada mas ainda sem muitas pessoas. Passada uma hora, do outro lado da sala, Melissa Rodrigues apresentava, sentada numa mesa cheia de artefactos como uma caixa da Cevada Delícia Negra, que mantém ainda hoje uma imagem estereotipada e infantilizada de uma figura negra, a performance De submisso ao político: o lugar do corpo negro na cultura visual. É, como o nome indica, uma reflexão sobre a forma como, ao longo dos anos, os corpos negros têm sido representados internacionalmente, partindo de frases que diziam à autora em pequena, como “não gosto de pretos, mas gosto de ti, não és igual aos outros pretos”, e acabando com várias imagens poderosas, como a de uma mulher negra exibida na 1.ª Exposição Colonial Portuguesa em 1934, coladas atrás dela na parede.
A música essa, arrancou às 16h no Palco Cave, literalmente o que o nome indica, numa sala que à entrada tem, entre outros, uma instalação de três televisões a retratarem os últimos dias do bairro Pedreira dos Húngaros, da autoria de António Brito Guterres e João Melo. Fez-se ao som dos JIBÓIA do guitarrista Óscar Silva, acompanhado desta feita apenas pela portentosa bateria de Ricardo Martins, já que o terceiro elemento estava fora.
No palco principal, após a performance de Melissa Rodrigues, podia ouvir-se a música cigana de La Familia Gitana, um grupo do Bairro do Fim do Mundo, em Cascais, com duas guitarras, dois cajóns e duas vozes. Do lado direito do palco, um outdoor de Herberto Smith, que nasceu na Guiné-Bissau e vive em Lisboa, pergunta: “Sabes kual é a xenxaxão de naxer e estudar na tuga? É a mesma de abrires um album de fotos da tua familia e tu ñ estares lá...” (sic). Por esse palco, ainda antes da enchente da noite, passaram também nomes como Pedro Mafama ou a a pop iemenita moderna das irmãs israelitas A-WA, que são três e têm como apelido Haim — nada a ver com as Haim, a banda norte-americana de três irmãs filhas de pai israelita cujo apelido é Haim.
No Cave actuou o lendário produtor de rap Large Professor, como rapper, num concerto extremamente respeitável e competente que fez esquecer a má prestação do seu colaborador frequente Kool G. Rap na edição do ano passado do festival. Antes disso, por esse palco, ouviu-se Praso, o rapper de Sines, e o agressivamente gaiense David Bruno, o produtor e ocasional rapper do Conjunto Corona lançado a solo em modo “romântico como o Marante”. Este último apresentou, acompanhado pela guitarra frequentemente psicadélica de Marco Duarte, o seu novo Miramar Confidencial, um vídeo-álbum saído nesse mesmo dia com muita inspiração dos anos 1980 e com um conceito vagamente orientado por um conjunto de escritos nas paredes de Gaia que dizem “Adriano Malheiro caloteiro”.
Mas a noite, marcada pela chuva ocasional, foi de Common, o rapper de Chicago que se estreou em Portugal no palco principal, acompanhado pela sua banda. Músicos a trabalharem com rappers que fazem música a partir de samples e tentam reproduzir aquilo que está em disco pode ser complicado. Os arranjos podem mesmo ficar aquém do esperado. Foi o que aconteceu por vezes com esta banda, especialmente no que toca aos teclados. Acabou por não fazer diferença. A força da voz do rapper, com cada sílaba a perceber-se, algo que é por vezes complicado neste tipo de concertos, foi o suficiente para esquecer isso. O alinhamento teve algum enfoque em Be, o — excelente — disco de 2005 que viu o rapper a voltar a um som mais tradicional após o fracasso comercial do experimental Electric Circus. Nota-se que sabe que é esse o seu disco mais sólido e prazeroso, que as pessoas mais querem ouvir.
Houve também espaço para exaltar Chicago e os rappers de lá saídos, como o colaborador frequente Kanye West — ironicamente, mencionado pouco depois de Common atacar Trump —, Chance the Rapper ou Noname. E, ainda, muita sedução. A meio de Come Close, originalmente um dueto com Mary J. Blige que é, a par de The Light, que se ouviu depois, a melhor canção de amor do rapper, para um freestyle extremamente galanteador para uma mulher entre o público que foi chamada ao palco, no caso, a rapper angolana Telma Tvon.
Ainda no palco principal, a fechar a noite, a cantora cabo-verdiana Mayra Andrade, que lançou Manga no início do ano, em estado de graça, seguida de Shaka Lion, o nome que Raul Windson, um dos responsáveis pela selecção musical do festival, usa como DJ, para um formato especial com percussão e dançarina. Na cave, DJ Firmeza punha os muitos corpos que queriam dançar ou fugir da chuva, mais agressiva de madrugada, a mexer. O festival continua até este domingo.