O casal Valente viaja pelo mundo com o fogão e a tenda na moto
Anabela e Jorge fizeram uma pausa sabática e abriram uma janela, que deixou entrar uma “corrente de ar de liberdade”. Viajam desde então — com o fogão e a tenda na moto. Registam o mais marcante numa bookazine.
2013, ano da pausa sabática. “A Anabela tinha mais esse bicho da viagem. E infectou-me”, conta Jorge, que já era portador de outro “vírus”, o das motas. A ideia foi “fazer um intervalo e reflectir”. “Achávamos que havia coisas que não estavam bem, que a vida não podia ser só trabalho e casa. Sentíamos que chegávamos a casa e ainda estávamos a pensar no trabalho”, explica o casal Valente, que passou seis meses a rolar na América do Sul. “Fomos pensar naquilo que queríamos. E essa viagem acabou por nos mostrar também o que não queríamos”, resume Anabela. “Queríamos ser um bocadinho mais livres e termos tempo para conhecer e fazer coisas novas.”
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2013, ano da pausa sabática. “A Anabela tinha mais esse bicho da viagem. E infectou-me”, conta Jorge, que já era portador de outro “vírus”, o das motas. A ideia foi “fazer um intervalo e reflectir”. “Achávamos que havia coisas que não estavam bem, que a vida não podia ser só trabalho e casa. Sentíamos que chegávamos a casa e ainda estávamos a pensar no trabalho”, explica o casal Valente, que passou seis meses a rolar na América do Sul. “Fomos pensar naquilo que queríamos. E essa viagem acabou por nos mostrar também o que não queríamos”, resume Anabela. “Queríamos ser um bocadinho mais livres e termos tempo para conhecer e fazer coisas novas.”
Estava lançada a semente do projecto Diaries Of - Travel Inspirations, uma revista (editada em inglês), que é um livro, que é uma revista — e que fez com que a vida deles desse uma volta, literalmente. Não se vêem como um guia tradicional. Não sugerem nem listas de hotéis nem de restaurantes. Não enumeram os monumentos a visitar, nem ignoram a existência da “muito bem servida” Internet. Exploram, vivem, compilam à volta de 14 artigos (ela escreve, ele fotografa; ela adora livros, ele colecciona revistas; ele vibra com terra batida, ela prefere o alcatrão) e procuram inspirar novos viajantes. “Costumamos dizer bookazine. É um convite”, dizem à Fugas na pausa tipo hibernação da viagem pela Ásia — a BMW 800 GS está à espera deles numa oficina, em Bichkek, na Quirguízia, país que já é o Diaries Of número nove (Cuba será o dez, Japão será o onze).
“Traduz as nossas experiências e as vivências no contexto de um determinado país. O factor marcante são as vivências com as pessoas. São essas as coisas que ficam”, diz Anabela, 45 anos, natural de Oliveira de Azeméis. “Uma das grandes aprendizagens da nossa primeira viagem foi a questão da liberdade”, aponta Jorge Valente, 39 anos, natural de Ettelbruck, no Luxemburgo, referindo-se à volta à América do Sul graças a uma licença sem vencimento. “Nas nossas sociedades, a partir do momento em que entramos na escola, tudo está programado até ao fim dos nossos dias. A viagem pelo Chile [Diaries of #1], Argentina [#2] e Peru [#6] foi como se se abrisse uma janela e sentíssemos uma corrente de ar de liberdade.”
Quando tinha oito anos, Jorge viu o seu pai perder as duas pernas num acidente de trabalho. “Pensei no tempo e na volta que, em fracções de segundos, a vida dá. A noção do tempo muda”, diz hoje o explorador, que vai repetindo as palavras “tempo” e “liberdade” enquanto folheia os seus diários de motocicleta. “Na América Latina vimos que as pessoas têm uma maneira diferente de viver o tempo. Havia sempre tempo. As pessoas arranjavam sempre tempo para acolherem estranhos. Nós, às vezes, nem para a nossa família temos tempo. Pensamos que alguma coisa estaríamos a fazer mal. A maneira como nos relacionamos com o tempo tinha que mudar.”
Em Iquique, no Chile, venderam a moto com mais de 22 mil quilómetros “sofridos”. E voltaram para o Luxemburgo, onde trabalharam mais um ano. Imprimiram a primeira revista graças a um crowdfunding ("dizem que é o financiamento dos três f (friends, family and fools), mas o certo é que 20% das pessoas que nos apoiaram eram desconhecidos") e, com o Chile na mão, tornou-se mais fácil encontrar anunciantes. “E despedimo-nos”, recorda Anabela, que estudou línguas e chegou a leccionar Inglês e Alemão. A revista, mais de 150 páginas, 15 euros preço de capa, não chega para pagar as despesas. No Luxemburgo, o casal aluga o apartamento, que ainda está a pagar ao banco. “Não vamos já para a Escandinávia...”, brinca Jorge, ainda ligado à Cruz Vermelha. O casal tem uma colaboração com a Trevl, revista “de moto pelo mundo”, e já lançou quatro (Boa Vista, Sal, Santo Antão e São Vicente) de oito guias sobre as ilhas de Cabo Verde.
Anabela e Jorge, discussões editoriais on the road, adoram “levantar a viseira” e falar com as pessoas, admiradas com a aventura em duas rodas. “Os ciclistas são os nossos heróis”, diz ela, consciente da rudeza das estradas, mas também da familiaridade e da iminência de vida real que isso acarreta. “Nas dificuldades encontra-se muita coisa positiva. Na pobreza vê-se a humanidade”, lembra ele, habituado a relativizar — pequenas quedas e pneus furados, temperaturas negativas ou comidas gordurosas. “O Jorge fica sempre muito orgulhoso quando tem um caminho difícil para fazer”, diz ela. “Um motociclista não gosta da auto-estrada. Há sempre uma solução”, responde ele, que adora contar aquela aventura no Chaco, entre o Paraguai e a Bolívia, quando acertou num dos muitos buracos da estrada “horrível”. “Estavam quarenta e muitos graus. Nem parei, mas partimos a corrente. Nada para comer. Quase sem água. ‘Estamos feitos’.” Resultado? “Há sempre uma alma que te ajuda. É uma constante.”
A ideia dos Diaries Of é ir e “provocar vontade de ir” a quem ler e a quem fixar os olhos nas fotografias que rasgam as páginas. Os seus autores não são muito dados a organizar as suas viagens. Improvisam cada vez mais. “À medida que vamos conhecendo outros viajantes ou locais, vamos mudando a rota”, indica Jorge, que só no Irão — bookazine produzida integralmente durante um mês em Bacu, no Azerbaijão — conduziu 8500 quilómetros. O conselho deles antes de folhear o Diaries Of número oito: “Abra a sua mente, deixe de lado os estereótipos e agarre num gelado (de preferência um com os sabores persa intrínsecos de açafrão, água de rosas e pistácios).”