O rio Pasig é o coração de uma cidade que se tornou a sua vergonha
As fotografias de Mário Cruz são um mergulho nas águas entulhadas do rio Pasig, cujas margens são a casa de milhões de filipinos. As imagens de um rio morto coberto de plástico valeram-lhe mais um prémio do World Press Photo. Na próxima semana chegam uma exposição (Algés) e um livro. O P2 mostra imagens deste ensaio em primeira mão.
O chão é apenas gravilha. As paredes são despidas de qualquer vida. O sofá é o único conforto de Nolito que, aos 21 anos, vive preso às duas grandes botijas de oxigénio que o ajudam a lutar contra uma doença crónica que lhe entope os pulmões. Foi isso que o esteiro de um rio de águas negras lhe valeu, depois de anos a recolher lixo do seu leito e a respirar os vapores tóxicos que dali são libertados. Foi assim desde que Nolito Abano tinha três anos, quando começou a ir buscar lixo às margens do rio Pasig. Naquele que outrora fora o centro económico da capital das Filipinas, Manila, estava o sustento de uma população que ainda vive da recolha e reciclagem do lixo que produz.
Quando o fotojornalista Mário Cruz chegou a Manila percebeu que as notícias que lera não conseguiam retratar a realidade com que se deparou. Eram linhas e linhas sobre “ondas que traziam lixo até à porta das pessoas nas margens”. As notícias que davam conta de que esta situação ocorria apenas na época das monções eram falsas. “Estas pessoas têm este problema todos os dias do ano, há várias gerações”, assegura o repórter da Agência Lusa.
Os pais de Nolito, um dos rapazes-respigadores que Mário Cruz fotografou, venderam tudo o que tinham para conseguir assegurar ao filho alguns dos cuidados de que precisa para combater a sua condição. “Entrei na casa e a única coisa que essa família tinha na sala era um sofá onde o rapaz dormia. Já não tinham chão nem tapetes”, descreve o fotojornalista. “O chão são pedras. Um sofá e duas botijas de oxigénio ao lado. É assim a vida destas pessoas.” A viver entre aquilo que ficou para trás.
Lixo como moeda de troca
O rio que liga a Laguna de Bay à Baía de Manila, estende-se por 25 quilómetros, dividindo a cidade em dois eixos. Este estuário é agora o reflexo de uma sociedade desigual, em que 21,6% da população vive abaixo do limiar de pobreza, lutando todos os dias contra a poluição. Actualmente, a paisagem desta parte de Manila é pautada por construções improvisadas, erguidas com materiais encontrados nas margens.
Para Mário Cruz, era urgente ir à capital filipina documentar a vida das comunidades que habitam as margens do Pasig. O rio, considerado biologicamente morto nos anos 1990, é a casa de milhões de filipinos que, desesperados por encontrar trabalho, viram em Manila a oportunidade para uma vida melhor. Muitos acabaram a viver em construções ilegais nas margens do rio. O desperdício doméstico e os despejos industriais transformaram o Pasig num esgoto a céu aberto. A certa altura, a vida destas comunidades passou a girar em torno do lixo. O rendimento chega-lhes através dos detritos que produzem e que, mais tarde, recolhem do interior do rio.
“Muitas daquelas pessoas só conseguem sobreviver devido ao lixo que elas próprias produzem. Atiram o lixo para o rio e depois vão apanhá-lo para reciclá-lo e ter dinheiro para comprar comida, e poderem voltar a atirá-lo para o rio. Isto acontece constantemente. É uma das poucas formas de rendimento que essas famílias têm.”
O trabalho escasseia
É um círculo vicioso. A poluição acaba por ser a moeda de troca para obter alimento e rendimento, prendendo estas comunidades a um lugar que não deveria ser habitado. Para enfrentar o problema, o Governo filipino criou, em 1999, a Comissão de Reabilitação do Rio Pasig (PRRC). Este esforço conjunto de várias agências nacionais, unidades dos governos locais e organizações não-governamentais — que 20 anos depois se mantém — tenta reabilitar o rio e criar condições para que a vida aquática se volte a instalar nele. Para isso, é preciso realojar a população, desenvolver os transportes e sensibilizar os habitantes daquela zona para a defesa do rio.
No entanto, apesar dos esforços, o problema subsiste. Até ao momento, foram realojadas perto de 20 mil famílias que viviam ao longo das margens do rio e dos seus afluentes. Mas a adaptação a uma casa com saneamento básico, a uma nova comunidade, nem sempre é fácil. Sem o lixo, não há fonte de rendimento — o Estado também não assegura nenhuma —, e o trabalho na cidade escasseia.
“É estranho pensar que, quando há oportunidade de se mudarem para um sítio melhor, digam que não”, nota o fotógrafo. Mas mudarem estas pessoas para “um sítio em que passam a ter quatro paredes de cimento e tijolo, em vez de paredes de bocados de madeira e plástico, por si só, não resolve os seus problemas”. A questão é terem dinheiro para sobreviver. Os locais para onde são realojados, muitas vezes, também “estão de portas fechadas”. “Há um problema social muito grave nesta questão do realojamento. Não se pode realojar por realojar”, defende.
As dificuldades de integração e a falta de trabalho acabam por fazer com que estas pessoas regressem aos esteiros do Pasig.
Mário Cruz decidiu rumar a Manila quando percebeu quão “negligente” o Estado filipino fora, deixando o rio atingir aquele ponto. Desde 2012, a Comissão de Reabilitação do Rio Pasig recolheu mais de 27 mil toneladas de resíduos que se encontravam no seu leito e afluentes, mas, como hoje explicitamente se percebe, ainda não foi o suficiente. Contudo, foi também este esforço continuado para tentar reverter a situação que levou o repórter português a decidir avançar com o trabalho.
Dos primeiros contactos com a comissão de reabilitação do Pasig surgiu a certeza de que para mudar alguma coisa de forma substancial era preciso mais “meios, força e atenção”. “Acho que a fotografia tem um papel muito forte nisso”, acredita. “E foi o que tentei fazer”. Esta tentativa de denúncia à escala global já deu os primeiros frutos, através do reconhecimento com um dos três primeiros prémios do World Press Photo, na categoria de Ambiente.
Quando a solução é o problema
A população da região metropolitana de Manila ronda os 13 milhões de habitantes, ainda que, até 2020, deva crescer um milhão. Há legislação ambiental para tentar combater o problema da poluição, mas a sua aplicação é bastante diminuta. A explosão demográfica das últimas décadas e a falta de planeamento urbano, e a consequente má gestão de resíduos urbanos, contribuíram para que o Pasig se transformasse numa lixeira de grande escala.
Este rio é um dos 20 cursos de água mais poluídos do mundo. Por ano, são retiradas dos oceanos cerca de 63.700 toneladas de plástico oriundas do rio da capital filipina. “É dramático quando a solução é o problema. Os esteiros deixaram de ser estuários para passarem a ser bairros de habitação. O Esteiro de Madalegna, como é conhecido entre os habitantes, foi um dos locais que mais marcou o fotógrafo. “Parece que não estamos no planeta Terra. É difícil de descrever o sentimento — a cada curva que fazia, sentia-me perdido”, relembra Mário Cruz a propósito da temporada (Outubro de 2018) que passou a fotografar na capital filipina.
Grande parte das pessoas que vivem nestas casas improvisadas saíram do interior à procura de trabalho. “Apesar de o trabalho estar concentrado na capital, não há oferta para toda a gente e isso levou a que muitos construíssem as suas casas de forma ilegal”, explica.
Esta realidade de subsistência muito precária em que vivem milhões de pessoas nos arredores de Manila desenrola-se há vários anos. Ao mesmo tempo, em 2017, o Banco Mundial classificou as Filipinas como um dos três países asiáticos com maior crescimento económico, sendo apenas suplantado pela China e pelo Vietname. De acordo com dados de 2015, a UNICEF estima que existam 25 milhões de pessoas sem acesso a saneamento básico nas Filipinas. Muitas dessas pessoas habitam os esteiros de Manila, pensados para combater as cheias do rio, mas que são agora a casa de muitas famílias.
“É um labirinto muito denso, de construção feita por necessidade e por uma urgência em sobreviver”, descreve Mário Cruz. São casas sustentadas por meras estacas de madeira e peças de plástico, onde vivem famílias de seis e sete pessoas num espaço em que mal caberia uma pessoa.
Os dias em que percorreu de ponta a ponta os diferentes caminhos nas margens do rio fizeram-no perceber quão difícil é mudar a forma de pensar daquelas pessoas. Ao mesmo tempo que anseiam por melhores condições de vida, estão presas àqueles sítios. “A preocupação destas famílias é chegar ao dia seguinte. É difícil para pessoas que vivem em locais destes almejarem sair dali.”
Mário Cruz fotografou o oposto daquilo que as pessoas idealizam ao pensarem nas Filipinas. Na sua opinião, faltava fotografar este país para lá das suas “praias paradisíacas”. “É quando me irrito com o jornalismo que mais quero fotografar”, confessa.
O fotógrafo, que já viu o seu trabalho reconhecido internacionalmente por duas vezes no concurso World Press Photo, acredita que os temas que escolhe documentar “requerem atenção”. E é por esse motivo que os fotografa “em estado de alerta”, no momento em que as feridas estão mais abertas. “Eu estou a alertar, a gritar através da minha fotografia.”
O que ficou para trás
Em Living Among What’s Left Behind (Viver Entre o Que é Deixado para Trás), que será publicado em formato de livro e que estará em exposição a partir do dia 6 de Abril, no Palácio Anjos, em Algés, o foco está naquelas pessoas amontoadas nas margens do rio. “Muitas vezes, vê-se o rio neste trabalho. Mas as comunidades que lá vivem aparecem muito mais.”
A par de que está atento ao que se passa à sua volta, Mário Cruz sentiu a necessidade de encontrar uma nova maneira de transmitir a sua fotografia. Pela primeira vez, decidiu fotografar em diferentes formatos. “Tanto utilizei a fotografia digital, como a fotografia instantânea, e isso foi uma pausa necessária na narrativa”. Foi também a primeira vez que recorreu ao uso da cor e do preto e branco em simultâneo, conferindo ao trabalho “um espectro visual completamente diferente dos anteriores”.
O retrato assumiu uma importância maior, um género que os seus anteriores trabalhos não procuraram. Para isso, fotografou os habitantes do Pasig com recurso a uma câmara instantânea. A plasticidade do formato e a imediatez com que se visualizava a imagem estabelecia uma relação mais próxima com a realidade das pessoas que Mário fotografava.
“Procurei muito a dignidade das pessoas que vivem nas comunidades”, aponta. “Foi muito curioso perceber que a reacção mudava quando lhes mostrava o resultado final.” Toda a postura que assumiam, o endireitar das costas e a escolha de outra posição. O olhar que mudava. “E foi exactamente isso que procurei nestes retratos”, detalha. No seu trabalho anterior, Talibés – Modern Day Slaves, os retratos haviam sido feitos em linha com as restantes imagens, menos centradas na pose. Agora, a quebra é intencional, para saltar à vista e destoar do restante corpo de trabalho.
Para Mário Cruz, a cor ajuda a “transmitir a dimensão do problema” sobre o qual decidiu espoletar uma reflexão. Mas também o incomodou que pudesse “tornar tudo numa coisa muito banal e artificial”, porque, por vezes, “distrai do que é essencial”. Procurou então um equilíbrio fotografando a cores tudo o que lhe interessava “em termos de dimensão”. O resto foi captado a preto e branco.
No livro, cujas capas foram produzidas a partir de 160 quilos de plástico recolhido dos oceanos, todas as fotografias a cores — excepto as em formato instantâneo — estão escondidas para criar “uma ligação de descoberta, própria do momento em que uma pessoa constata a verdadeira dimensão do problema.”
Mário Cruz pretende que o livro seja “uma memória obrigatória”, ao mesmo tempo que responsabiliza quem o folheia. “Não é algo que nos transporta para uma viagem agradável.”
O fotojornalista espera que o seu trabalho cause desconforto, faça agir. “Com este trabalho quero aproveitar o facto de alguma atenção já estar a ser prestada ao tema e marcar um ponto. Quero alertar para um caso extremo, mas real.” Todo o livro foi criado “no sentido de dar uma forte contextualização visual”, mas também de conseguir “contar a história de uma forma que, ao mesmo tempo, perturbe, apele à acção e à partilha”. “Isso é muito importante”, sublinha o repórter.
A exposição, que poderá ser vista até 26 de Maio, terá 40 imagens. Ainda que o fotógrafo considere a exposição “algo efémera”, acaba por ser um ponto de encontro necessário, que poderá funcionar como um rastilho para a mudança. Depois de Algés, a exposição irá para Manila e Nova Iorque, onde será mostrada na rua, de outra forma.
Nova vida
Depois desta experiência em Manila, Mário Cruz diz que ganhou consciência do valor da independência de um fotógrafo: “Como é que poderia chegar a um jornal e dizer que preciso de três meses para fazer um trabalho?”. O fotojornalista, de 31 anos, confessa que hoje prefere concretizar trabalhos como este com o seu “tempo e risco”, para que no final possa sentir que fez “tudo o que deveria ser feito.”
Para Mário Cruz, a independência de um fotógrafo manifesta-se de forma económica e também em relação aos seus princípios. “O meu princípio ao fazer um trabalho destes é a seriedade e entrega de tempo.” Para além de “fundamentais”, estas duas premissas “são coisas que actualmente o fotojornalismo raramente consegue dar”.
O fotojornalista acredita que Living Among What’s Left Behind representa um marco e uma mudança da sua fotografia. Mário Cruz iniciou uma transformação na sua forma de olhar a realidade, na esperança de que a sua inconformidade alastre aos que se cruzem com as suas imagens. O Pasig é a história do coração de uma cidade que se tornou na sua vergonha. Mas também da convicção de que ainda não é tarde de mais para a transformação das condições de vida de uma comunidade e para o resgate da natureza que a abraça; de que ainda vai tempo de ganhar uma nova vida.