Muitas vidas e 115 anos: nos Fenianos cabe agora um “condomínio de artistas”

Clube Fenianos Portuenses completa 115 anos com recuperação de algumas tradições e reinvenção de outras. Haverá um “condomínio de artistas”, escolas de teatro, ilusionismo, música, dança, bilhar. E mais surpresas a revelar em breve. Estratégia é “abrir o clube à cidade”

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Majestoso edifício dos Fenianos tem uma vista privilegiada sobre a Avenida dos Aliados Nelson Garrido

Há muito que o segundo piso do Clube Fenianos Portuenses estava fechado e algumas marcas da instituição haviam desvanecido. Agora, quem ali subir, ao segundo mas também ao primeiro andar, verá um espaço renovado, onde velhos e novos projectos principiam um novo tempo. E onde, em breve, haverá ainda mais motivos para festa. Vítor Tito, vice-presidente dos Fenianos, mantém algum suspense, qual alma do negócio, mas deixa a garantia de novidades capazes de deixar muitos portuenses satisfeitos. Para um clube sobrevivente a quatro ditaduras, e cuja primeira sede foi até incendiada, os “ciclos e relançamentos” são inevitáveis. Como os altos e baixos. Este sábado, sopram-se as 115 velas, com vários momentos de celebração ao longo do dia e o optimismo de quem deseja “devolver e abrir o clube à cidade”.

As escadas de madeira conduzem ao luminoso segundo andar do impactante edifício e um pequeno cartaz anuncia um novo projecto: “CAF: condomínio de artistas fenianos”, espaço de acolhimento de estruturas artísticas em “regime de condomínio”. Ou seja, o clube, onde se vai estrear um coworking para áreas criativas ligadas ao espectáculo, cederá o espaço em troca terá programação quase permanente.

De teatro, por exemplo, uma antiga vocação feniana – lembre-se que ali nasceu o Teatro Experimental do Porto em Novembro de 1950. “Muitas das peças ensaiadas neste palco eram proibidas pela PIDE, mas nos Fenianos tinham um espaço”, conta Vítor Tito: “Sempre fomos um clube de liberdade e tolerância. Nunca popular, no sentido de bairro, mas sempre de portas abertas à cidade.” Há parcerias a serem negociadas (um dos anúncios estará para breve) e projectos para abertura de duas escolas: uma para crianças e jovens e, sonho antigo de Vítor Tito, uma companhia de teatro sénior. Entre salões de apoio, a belíssima Sala António Pedro, nome maior do teatro, e um anfiteatro com capacidade para 80 pessoas, não faltará habitação para as artes de palco.

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Edifício com arquitectura de Francisco de Oliveira Ferreira foi projectado em 1919 e é a segunda sede do clube

Uns passos à frente, o clube de ilusionismo. “O mais antigo do país”, de 1959, sublinha com regozijo Vítor Tito, da direcção que tomou posse há cerca de um ano. Ali, nascerá uma escola de magia para os mais novos. Numa outra sala, vai montar-se a casa da Big Band Invicta, orquestra com base no jazz e uns trinta músicos, onde se recupera uma “tradição antiga da cidade”. Haverá seis a 12 espectáculos de jazz clássico por ano e noites de lindy hop, dança dos anos 20, com cenário “como manda a sapatilha”. 

Ainda no mesmo piso, mas com projectos de descer ao primeiro e transformar-se num local aberto a portuenses e turistas, o museu feniano não quer mostrar apenas a história do clube, que chegou a ter uma sede em Lisboa, mas também do republicanismo no Porto. A atenção dispersa-se. Um manequim com a antiga farda do clube, um cabeçudo vestido com as cores fenianas (vermelho e branco, inspiração republicana), documentos históricos, como o do primeiro título obrigacionista do país concedido a um clube, firmado em 1920, um volumoso livro com colagens de artigos de jornal, a primeira máquina de projecção de cinema de Portugal (Aurélio da Paz dos Reis era sócio dos Fenianos).

Relíquias para quem se deleita com lições do passado, numa viagem que pode ter na biblioteca, com mais de 40 mil livros – quase todos de “carácter humanista e republicano” e também uma valiosa primeira edição de Voltaire – um interessante complemento. “Os Fenianos chegaram a ter uma editora onde publicavam coisas próprias”, conta, acrescentando que aquela zona quer voltar a ser um “pólo de pensamento e debate” na cidade. No final dos anos 50, já se organizavam-se naquele recinto conferências baptizadas de Porto, Cidade da Liberdade. “Só isso, na altura, dava direito a cadeia.”

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Vítor Tito, vice-presidente do clube, mostra a primeira edição de Voltaire, uma das relíquias da biblioteca feniana

Ser um “espaço de liberdade” seria certamente informação para um epílogo sobre a instituição. Mas já voltamos à História. Para já, a dança. Em frente à majestosa biblioteca, o Salão Flamingo, luminosidade invejável, voltará a ser palco de uma escola: tango argentino, valsas vienenses, danças de salão e zumba. “Para agradar a públicos de todas as idades.” Em dias de eventos, que se prometem regulares, as honras serão feitas no Salão Nobre.

Nos Fenianos, que em tempos áureos chegou a ter 15 mil sócios, reside ainda o mais antigo coro do Porto, criado em 1908. Desses primeiros anos, sabe-se da distinta nomenclatura (Coral Polifónico dos Fenianos), da actuação em iniciativas de carácter beneficente e colaborações com a Emissora Nacional. E pouco mais. Hoje, tem umas quatro dezenas de vozes, um maestro com mais de 90 anos, ensaios duas vezes por semana. E o desejo de programar aulas ao fim do dia, “para captar outros públicos”.

Vai-se pelos corredores, espreita-se com uma sala de leitura “muito british” onde repousam jornais diários, nota-se um quadro branco a pedir sugestões (“deixe aqui as suas ideias para o clube”), descem-se umas escadas. Já na cave, com entrada também pela Rua do Doutor Ricardo Jorge, o bilhar. Em 1904, ainda na antiga sede dos Fenianos, junto ao Cinema Águia d’Ouro, existia já um pequeno salão. Depois da destruição da casa, em 1918, o bilhar transitaria para a nova casa, com a Câmara do Porto como vizinha. Mário Aranha, um dos bilharistas mais reputados do clube, foi lá parar no início da década de 70.

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Mário Aranha é um dos bilharistas mais importantes do Clube Fenianos Portuenses

Nascido em Vila Real, em 43, tinha descoberto essa paixão pelos sete anos, quando acompanhava o pai nas idas aos cafés onde as mesas de bilhar eram quase obrigatórias. Ao mudar-se para o Porto, bancário de profissão, começou por encontrar abrigo para esse “quase vício” no Café Embaixador. Foi nos Fenianos, porém, que nasceu o apelo da competição. Aos 70 anos foi campeão nacional da modalidade. E boa parte das taças e medalhas exibidas nas montras da casa são dele.

Os companheiros, todos homens, dizem-lhe que tem “uma forma única” de jogar. Ele fala de particularidades da modalidade, mas não revela segredos: “Isto envolve vários estudos de cálculo de geometria”, comenta com os olhos postos na mesa azul. Reformado, treina duas horas por dia, de segunda a sexta. À noite, depois de jantar, é no salão onde já se realizaram várias competições internacionais que muitas vezes acaba a “fazer a digestão”.

Encontrar novos bilharistas, diz Vítor Tito, foi motivação para a abertura de uma “escolinha” para miúdos, idealmente a funcionar em breve naquele espaço mas já depois de uma renovação.

De volta ao andar de cima, ao charmoso bar dos anos 80, José Cavadas, da anterior direcção, traz um emblema do clube do lado esquerdo do peito. Aos 81 anos, e apesar da recente troca do Porto por Valbom por desentendimentos com o senhorio, ainda faz a viagem até à Invicta quase todos os dias. É quase terapêutico. Encontra amigos, dá dois dedos de conversa. Já havia sido isso o motivo para vestir a pele de feniano há coisa de 40 anos. Lembra-se bem da Rua do Almada recheada de comércio e moradores. “Quase todos os desta zona eram sócios dos Fenianos”, comenta saudoso: “Os clubes eram os grandes centros de convívio dos portuenses.”

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Henrique Ferreira sorri. O início da conversa recua aos seus 18 anos e aos motivos pelos quais se tornou sócio: “Havia aqui muitas meninas, valia muito a pena”, brinca. As festas dos Fenianos, recorda, eram “grandiosas”. E os namoricos uma consequência normal do convívio: “Muitos colegas encontraram casamento aqui.”

O agora tesoureiro tem o peso do sobrenome Oliveira. Um outro, Francisco de Oliveira Ferreira, foi o arquitecto do majestoso edifício portuense, segunda sede do clube. Projectado em 1919 – incorporando o palacete da Assembleia Portuense datado de 1857, na esquina da Praça da Trindade com a Rua do Doutor Ricardo Jorge –, o projecto ficaria inacabado naqueles anos pós-Primeira Guerra Mundial em que a pobreza grassava na cidade e país.

Esse pretérito, diz, é motivo de orgulho. Mas também motivação para olhar os dias porvir: “O clube estava a definhar culturalmente”, avalia, “mas acredito na mudança”.

Acredita, por exemplo, ser possível restaurar um Carnaval digno da história da casa. Até porque está nessa festa a origem do clube. Reunidos no Café Porto, na Avenida dos Aliados, um grupo de portuenses criava o Clube Carnavalesco Fenianos Portuenses em 1904, com o plano de trazer para a cidade a sofisticação carnavalesca de outras metrópoles. O primeiro corso com a imagem do clube saiu às ruas da cidade em 1905, com “desfile de fantasias, carros alegóricos e carros reclame”, tudo com o patrocínio de industriais e comerciantes da urbe. Rafael Bordalo Pinheiro, Teixeira Lopes ou Almada Negreiros foram alguns dos nomes sonantes a desenhar corsos fenianos, parte da “memória da cidade” que Vítor Tito sonha ver retomada.

Em tempos áureos, chegaram a desfilar nas ruas 400 mil pessoas. E se a dimensão parece ambição desmedida, a recriação do primeiro corso é já promessa: até 2021, a nova direcção jura um regresso a esse passado de 1905.

A julgar pelo sucesso da participação dos Fenianos na iniciativa Open House de 2018, onde 1140 pessoas subiram a escadaria do clube com vistas privilegiadas sobre os Aliados, Vítor Tito diz não ser optimismo exagerado acreditar num novo tempo para o clube. A dita abertura à cidade passa por deixar todos, sócios e não sócios, frequentar a casa (embora os associados sejam privilegiados: com uma quota mensal de 4,5 euros). Se tudo correr como a direcção prevê, “150 pessoas por semana” poderão, em breve, “povoar” o clube. Palavra de Vítor Tito com crença na relevância da “forte memória” dos Fenianos na história da cidade.