Ele voa para ajudar quem está cá em baixo

Sobreviveu por “milagre” a duas catástrofes no Haiti e isso mudou o rumo da sua vida. Hoje, com três drones na mala do jipe, Presler Jean dedica-se ao mapeamento de zonas afectadas por conflitos ou desastres naturais.

Foto
Luís Octávio Costa

Presler estaciona o jipe num dos poucos sítios amplos e desocupados de Kutupalong. Abre a bagageira e arrasta para si uma mala, de onde sai o corpo e as asas do eBee, um drone profissional de mapeamento, ferramenta preponderante no trabalho humanitário que faz no maior campo de refugiados do mundo, na região de Cox's Bazar, no Bangladesh. “Aqui precisam de mapas? Eu posso ajudar!”, diz o haitiano que sobreviveu a duas catástrofes naturais no seu país — uma “bênção”, vai repetindo — e que desde 2010 entrega os dados que recolhe à Organização Internacional das Migrações (OIM) e a qualquer organismo que os queira utilizar.

Organizados em pastas no seu computador estão terabytes de mapas, fotografias e vídeos, dados geoespaciais que permitem que as organizações no terreno tomem melhores e mais rápidas decisões. “Somente com um drone lá no alto podemos descobrir onde estão os melhores caminhos, os melhores recursos, onda há mais problemas em termos de planeamento e de reorganização do espaço”, justificou ao P3 Manuel Pereira, coordenador humanitário da OIM para a crise dos rohingyas que obrigou mais de um milhão de pessoas a fugir da vizinha Birmânia e a refugiar-se naquela que era a segunda maior floresta do Bangladesh.

Foto
Luís Octávio Costa

“A escala da operação obriga-nos a pensar fora da caixa”, diz. “Temos que pensar de forma diferente. A tecnologia, hoje em dia, tem muitas facetas e os drones têm sido um elemento para criar percepção da escala desta operação. Usamos a cartografia fornecida pelos drones para entregar aos nossos desenhadores para se fazer o desenho do espaço de modo a melhorar as condições de vida dos rohingyas e a garantir que há organização e racionalização dos recursos disponíveis”, explica o responsável da OIM, que acompanha a par e passo a construção das extensões de alguns dos 34 campos de refugiados — com os engenheiros munidos de ferramentas que lhes permitem contornar a geografia irregular do terreno, um dos grandes inimigos da acção humanitária. “Tudo o que tentamos fazer é mais caro pelas três dimensões. Se fosse plano, poderíamos assumir uma série de soluções técnicas que reduzem os custos.”

Também Presler Jean, que normalmente se faz acompanhar de dois drones (um Mavic Pro e um Phantom) para além do eBee, precisa de um terreno plano para lançar a sua “abelha” gigante. Liga-a ao computador, programa a sua área de acção e deixa-a ir como um papagaio de papel que durante sensivelmente uma hora cumprirá o plano estabelecido, voando em forma de pente e registando tudo lá em baixo com um detalhe ínfimo.

Está ao serviço da OIM desde Setembro de 2010. E actualmente faz parte da equipa (juntamente com Shakawat Shakil, um jovem bengalês) que opera com a DTM, matriz para rastrear e monitorizar o deslocamento e a mobilidade da população. Implementada no Iraque, em 2004, a ferramenta foi criada para capturar, processar e disseminar informações de forma regular e sistemática e para fornecer uma melhor compreensão dos movimentos e das necessidades em evolução das populações deslocadas, seja no local ou no caminho — e tem sido continuamente aperfeiçoada e aprimorada através de anos de experiência operacional em países afectados por conflitos e desastres naturais como a recente devastação provocada pelo ciclone Idai principalmente em Moçambique.

Sobrevivente de duas catástrofes

A história de Presler Jean começa precisamente no Haiti, cenário de “muitas vulnerabilidades”. “Lembro-me que ouvia sempre a minha mãe a falar das cheias, que a água estava a subir, que a região ia inundar. Quando eu tinha sete anos já era stressante”, recorda o haitiano de 34 anos, natural de Gonaïves (no Golfo de Gonâve), cidade que a 18 de Setembro de 2004 foi atingida pela tempestade tropical Jeanne. Se durante gerações as pessoas se habituaram a fugir das cheias que de modo rotineiro inundavam a região, nos dias que se seguiram morreram mais de três mil pessoas no Haiti. Presler teria 15 anos. Estava fechado no quarto e a água começou a “chegar à barriga”. “Nunca tinha subido tão alto.” E continuou a subir. “Tentei colocar as minhas coisas e os meus livros em cima da cama. De repente ouvi barulho, muita gente a chorar. E ouvi a porta a bater com estrondo. A pressão da água era tanta que não a consegui abrir. Quando isto acontece, a porta fica fechada e nós ficamos presos lá dentro à espera que o nível de água desça ou que alguém de fora nos ajude. Muitas pessoas sobrevivem se o edifício não for de cimento: arrancam a cobertura e saem por ali.” A sua casa era de cimento. A sua janela revestida a metal. “Fiquei cinco horas. Sabia que estava morto. Quando a água desceu e a porta abriu foi um milagre. Vi nas notícias que a água demorou longas horas a descer.”

“Este tipo de coisas fazem-me pensar”, diz hoje. “Em países pobres como o meu as pessoas sonham ser médicos para poderem ajudar. Eu queria trabalhar na redução de desastres. Via muitos estrangeiros que iam ao meu país ajudar, muitas organizações.” Começou a fazer perguntas. Acabou na capital a estudar Ciências de Computação.

Estava na faculdade quando Port au Prince foi atingida pelo violento sismo de 2010. “Havia um professor de que não gostávamos muito e um colega desafiou-me a ir ao bar. Cinco minutos depois, a escola foi espremida. Muitos colegas morreram. Quando vemos este tipo de coisas... muitas pessoas não sobreviveram. Lembro-me de ver um aluno a sair dos escombros coberto de sangue. E perdi a consciência. Quando acordei estava no hospital. Tinha sangue, mas não era meu. Era o sangue de outros estudantes.”

Foto
Luís Octávio Costa

O terramoto aconteceu a 12 de Janeiro. O governo haitiano deu conta de 300 mil mortos. “Depois disso não conseguia dormir. Perdi amigos. Estava a fazer sacrifícios. A minha mãe vendia roupa. Recomeçou o negócio três vezes. Gastou tudo em mim.” Presler foi duas semanas a casa e voltou para o campus universitário, onde se faziam listas de pessoas, identificando quem estava a salvo. “E se algum nome não está na lista é quase como outro tremor de terra”, sublinha. Decidiu participar no programa de ajuda, dando apoio na parte informática e no GPS. “Não podia ir para a universidade. Precisava de trabalhar. Precisava de sobreviver. Comecei assim. Foram demasiadas motivações. Sentia dor pelas pessoas desaparecidas. Não me lembro do nome das pessoas.”

O trabalho na OIM começou aí. Teve formação no software que utilizavam, frequentou cursos online e seminários na Califórnia, aprendeu “com os melhores” (Sebastian Ancavil e Frederic Moine). Terminou os seus estudos em regime pós-laboral. “Ajudar era o meu sonho e estava a tornar-se real.”

“Em 2004 era suposto eu estar morto. Em 2010 também. E de repente estou vivo! É uma bênção! Poderia pagar para fazer este trabalho”, diz, em pleno Kutupalong, onde chegou em Abril de 2018. “Cedo todas as informações. Se existem extensões nos campos a culpa também é minha. Sinto-me motivado por ajudar. Quero fazer algo pelas comunidades que precisam. Num ano vê-se muita evolução. Temos muitas ferramentas à nossa disposição. Temos olhos sobre o terreno. Conhecemos os desafios. E a comunidade reconhece o nosso trabalho. As histórias dos rohingyas mantêm-nos motivados.”

Foto
Luís Octávio Costa

Presler é casado e tem uma filha. Vivem na Flórida. Pensam reunir-se em Cox's Bazar. “Ela queria que eu fosse viver para os EUA, mas preciso estar cá e ajudar. Quero estar perto das pessoas. As pessoas oferecem-te chá, cumprimentam-te, querem saber de ti. Quando a minha mulher veio cá, sentiu alguma coisa diferente. Ela sabe que eu não sou louco. Passo tempo nos campos, trabalho com as pessoas e por isso faço parte da vida delas.”

O seu sonho é simples. Voltar ao Haiti. Um dia. “Montar uma plataforma que funcione em situações de catástrofe. Montar equipas, formar pessoas gratuitamente. Criamos bases de dados que qualquer pessoa pode usar. As pessoas não precisam de comprar um drone para ter acesso a essa informação. As pessoas não precisam de perder tempo a recolher dados. Podem tê-los imediatamente. O tempo é valioso.”

Foto
Luís Octávio Costa

O PÚBLICO viajou no âmbito da Bolsa de Exploração Nomad