A arquitectura entrou no bairro e reabilitou a história do “Tarrafal”
Foi um dos mais problemáticos territórios do Porto, "supermercado de droga" da cidade. Mas no São João de Deus, erguido nos anos 40, há mais do que isso. A arquitectura de Nuno Brandão Costa e as fotografias de André Cepeda são o ponto de partida de um livro onde se viaja pela história da habitação. Pode um bairro fintar o estigma e reinventar o futuro?
Entrou naquela geografia pela primeira vez quando ganhou o concurso para reabilitar o São João de Deus. Do bairro, Nuno Brandão Costa tinha o conhecimento comum à maioria dos portuenses: o apelido “Tarrafal”, a conotação negativa, o “supermercado de droga” noticiado em páginas de jornal, a insegurança e morte diárias, a demolição polémica de 2008. Na primeira visita, o arquitecto registou a existência de uma “amálgama de construções informais” já “sem interesse do ponto de vista urbano” e “assustador” se o assunto era a insalubridade. Mas reteve também a “riqueza volumétrica e topográfica” das habitações e o “impacto incrível” da luz do vale de Campanhã sobre o território. E soube desde logo que manter a “memória urbana” do lugar seria parte do seu projecto. Entrar no bairro hoje - já com algumas das casas por si desenhadas habitadas e a empreitada da segunda fase a decorrer - é, por isso, uma felicidade. O ambiente é já outro e a aparente pacatez por ali vivida, acredita, irá permanecer quando a obra estiver finalizada, lá para 2020.
Muito antes de Nuno Brandão Costa conhecer o São João de Deus, já André Cepeda havia criado um fascínio por aquele local. Arquitecto e fotógrafo conheciam-se de outros projectos e quando a Câmara do Porto entregou a reabilitação do bairro a Brandão Costa, os dois começaram a pensar juntar as suas visões do território. Acabaram por propor à Domus Social, empresa municipal responsável pela habitação, fazer um livro sobre o assunto. É essa obra, numa segunda edição inteiramente da responsabilidade da Dafne Editora, que apresentam esta quarta-feira (Passos Manuel, 21h30).
Mais do que um livro de fotografia e arquitectura, São João de Deus é uma viagem pela história. Cenários de um bairro em mudança, dos processos criativos de um arquitecto, da evolução da habitação pública num país e numa cidade. Para isso, conta com as análises de Sérgio Mah (num breve comentário às fotografias) e Pedro Levi Bismarck (numa acutilante “crítica da questão da habitação no Porto”).
Foi nos anos 90 que André Cepeda entrou pela primeira vez no São João de Deus. Tinha vinte e poucos anos e foi parar ao bairro como assistente do fotógrafo americano Bruce Gilden. Ainda sem coragem para fotografar. A cena era de terror, os problemas de saúde pública gritantes, a pobreza angustiante, no chamado “vale dos leprosos” morria gente quase todos os dias. O discurso de Cepeda sobre o “Tarrafal” está mais nas imagens do que nas palavras: “É difícil descrever. Quando se entrava nem se sabia se íamos sair vivos.”
O fotógrafo acabaria por lá voltar anos depois, atraído pela “força do lugar”. Em 2006, quando as demolições ordenadas por Rui Rio começaram e um certo “tempo suspenso” se apoderou do local, André Cepeda ganhou coragem para regressar ao bairro na fronteira do Porto. Registou o panorama, avocado por um íman inexplicável. Os calafrios de uma enorme agressividade e isolamento social, um constante e ténue precipício entre vida e morte, mas também uma natureza selvagem poderosa e uma luz paradisíaca única na cidade. “O meu ponto de vista é mais o do silêncio e poesia”, comenta, admitindo o laço especial atado com o São João de Deus.
A Nuno Brandão Costa interessava sobretudo “melhorar a vida” dos moradores do bairro. É essa a “missão” primordial de um arquitecto. Nas conversas com os habitantes, foi percebendo uma divisão. Entre o que havia sido o “Tarrafal” e toda a zona problemática e as casinhas originais: “Quase como se existissem dois bairros”, comentou com o PÚBLICO. A Domus Social impôs balizas ao arquitecto: diminuir o número de fogos (de 144 para 84), tornando-os maiores, garantir diferentes tipologias e cumprir os regulamentos actuais. Tudo num orçamento de obra pública – com generosidade menor do que o assegurado num investimento privado.
A sua curiosidade por este género de projectos - originários de algumas “obras notáveis a partir dos anos 20” e no “tempo do SAAL” - era grande. E se o contexto limitava o exercício também o tornava “mais interessante”. O seu foco, explicou, foi sempre o de “fazer habitação, independentemente da classe [económica]” de quem ocupasse as casas depois: “Não se deve construir em função da ideia social, mas da ideia de habitar. Não faz sentido criar casas para ricos e casas para pobres.” Por causa dessa filosofia, explica, prefere chamar “habitação pública” ao que por regra se denomina “habitação social”.
A arquitectura “não tem o poder de fazer uma mudança social radical”, enceta Nuno Brandão Costa, “não despeja dinheiro nos bolsos das pessoas, não lhes dá saúde, não promove a mistura social”. Mas tem a gigante possibilidade de “transformar territórios” e de “contaminar” o que o rodeia. E no caso do São João de Deus, diz, “a Domus Social teve a admirável pretensão de renovar o bairro sem fazer tábua rasa da história”.
No “Tarrafal”, Pedro Levi Bismarck percebeu um privilegiado ponto de observação das estratégias de promoção de habitação social em Portugal e no Porto em particular. O que ali se demonstra, defende, é que “políticas de habitação que se limitaram a dar casa sem preocupações com o espaço à volta não funcionam”. E, nesse capítulo, a história é comum a um país: “As câmaras são cada vez mais proprietárias, não têm uma política de habitação. Como dizia o António Fonseca Ferreira, ‘precisamos menos de política de habitação social e mais de política social de habitação’.”
A missão do arquitecto – usar a sua arte como “elevador social” – tem sido uma batalha constante contra “critérios políticos e económicos” que muitas vezes deixam a arquitectura num beco sem saída. “Quem traça o melhor panorama disso é o Engels nas primeiras décadas do século XIX”, aponta Levi Bismarck, arquitecto e docente na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. O filósofo alemão garantia não haver solução para a questão da habitação num sistema capitalista, porque as casas seriam sempre uma mercadoria. Hoje, comenta Levi Bismarck, “são já um activo financeiro”.
Quando os responsáveis da Domus Social leram as quase 50 páginas de texto escritas pelo arquitecto, avaliaram-nas como demasiado “pessimistas”. Mas para Pedro Levi Bismarck a História não se dá a versões risonhas e mostra uma narrativa de permanente conflito. Até aos anos 40, quando o inicialmente chamado bairro de Rebordões nasceu, o número de habitações construídas no Porto foi sempre insuficiente para uma cidade onde cerca de um terço da população vivia em ilhas. “Nessa altura a situação é dramática.” Durante o Estado Novo, a habitação foi uma “tecnologia política”, a funcionar como “instrumento de propaganda, moralização e pacificação das classes trabalhadoras” e as chamadas casas económicas “foram resposta apenas para a classe média”. Se há algo que a História comprova nesses anos, afirma, é que “os processos arquitectónicos estão sempre ligados a estratégias políticas muito óbvias”.
Com o SAAL - Serviço Ambulatório de Apoio Local, entre 74 e 76, “viveu-se o sonho” um pouco por todo o país. “E aí o único problema foi o processo ser interrompido”, comenta Nuno Brandão Costa, também responsável pelo futuro Terminal Intermodal de Campanhã. Naqueles anos, não se abriu ao povo apenas o direito à habitação – mostrou-se o até então desconhecido direito à cidade. “As pessoas começam a perceber que moravam perto e nem se conhecia, não falavam”, exemplifica Levi Bismarck. No São João de Deus, a Comissão de Moradores do Bairro “queima os regulamentos”, onde se descreviam minuciosamente os passos de todos: quem tinha amantes, quem recebia gente em casa, quem detinha galinhas ilegais. Dias depois do 25 de Abril, Sérgio Godinho subiu a um palco instalado no bairro.
Com o SAAL por cumprir, nasceu aquilo a que Pedro Levi Bismarck chama “triângulo amoroso”. Entre “os bancos, a construção civil e a classe média”. É sobretudo para esse grupo que a habitação começa a ser pensada e anos depois, décadas de 80 e 90, assiste-se à “periferização”, auto-estrada para “o abandono do Porto”. A crise de 2008 foi o abismo final. Se a análise soar familiar aos dias de hoje, Levi Bismarck não se admira. Mas faz notar uma mudança importante dos últimos tempos, justificação para novos alarmes: “Gentrificação sempre houve, o novo é ela atingir cada vez mais a classe média.”
Vem dessa leitura da actualidade a adjectivação de “pessimista” dada pela Domus Social, detentora da primeira edição do livro, ao arquitecto. “Numa lógica neoliberal, as câmaras têm cada vez menos instrumentos para responderem aos efeitos nefastos e violentos destes processos”, admite. Mas se assim é, destaca, numa referência à recente participação do executivo de Rui Moreira na maior feira de imobiliário da Europa, “não deixa de ser esquizofrénico o papel de uma câmara que se diz preocupada com o problema de habitação e ao mesmo tempo procura chamar investimento privado e imobiliário para a cidade”. Perguntas para reflexão: “Até que ponto deve uma autarquia assumir-se como mera proprietária? Pode e quer ainda a Domus Social fazer política social de habitação?”
Nuno Brandão Costa ouve atento a análise. Se concorda com o colega de profissão em vários pontos, ainda que se diga adepto de uma versão menos negativa, não deixa de recentrar a questão no “Tarrafal” para trazer algum contentamento à conversa: “Aqui estamos afastados de toda essa lógica”, garante. “São casas sem qualquer perspectiva de ter valor financeiro”. O aceno concordante de Levi Bismarck traz um senão: “O São João de Deus é um contra-ciclo, uma excepção.” E fazer desta aposta a regra seria uma transformação radical: “Desde logo é preciso deixar de ver a habitação como um problema de Excel.”
No bairro, as tags com a inscrição “Tarrafal” ainda se vislumbram em diversas paredes, mas o medo que nelas habitava parece ter-se esbatido. Sobrevivem despojos da demolição com mais de uma década, testemunhas de uma história que não se quer deixar esquecer. Algumas ruas permanecem em terra batida, cenário de estaleiro iniciado em 2016, mas o ruído das máquinas pode também ser o da mudança. Parte das belíssimas casas brancas desenhadas por Nuno Brandão Costa, iluminadas pelo vale da freguesia mais pobre da cidade, estão já habitadas. Um casal passeia-se, queixa-se ao arquitecto de um pormenor por rever, recebe promessa de atenção. “Este projecto mostra que é possível fazer diferente e renovar a história”, anota o Nuno Brandão Costa. Resta esperar o “efeito de contaminação”. Poderá a arquitectura ser o capítulo inicial?