Das mulheres que lutam na rua às que tiram o dia para si: cinco rostos da greve feminista

Paula escolheu a banda sonora, Raquel tira férias para garantir que não vai trabalhar, Palmira convence as cabeleireiras a deixar o avental na varanda, Lúcia mostra que esta luta se conjuga no plural e Raquel leva a mãe aos protestos. Cinco rostos e histórias da primeira greve feminista em Portugal que marca o Dia Internacional da Mulher.

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“A greve feminista é como aquela imagem conhecida do Charlie Chaplin a tentar parar o relógio.” Mas no lugar do célebre actor de bigode e chapéu que se esforça para travar o tempo estão várias mulheres que, em greve no dia 8 de Março, exigem o acertar dos ponteiros. “O relógio dos nossos direitos tem os ponteiros todos atrasados. E nós estamos há centenas de anos à espera do ajuste”, explica Paula Sequeiros, 63 anos, que, esta sexta-feira, substitui o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra pelos protestos feministas que vão ocupar a Praça da República.

Paula é investigadora desde 2012, mas começou a trabalhar como bibliotecária aos 17 anos, dois anos antes de ser mãe. Desde então, foi-se apercebendo que é exigido às mulheres uma dupla jornada de trabalho: depois de oito horas no emprego, o lugar de descanso é substituído pelas tarefas domésticas e cuidados familiares. A falta da divisão desta sobrecarga faz com que as mulheres sejam consideradas trabalhadoras ausentes no local de emprego. “É a mulher que falta ao trabalho quando há um filho doente para cuidar, uma mãe ou até um sogro”, o que leva a que, quando há oportunidades de direcção, chefia ou liderança de projectos, os homens surjam como primeira opção. “Há esta discriminação naturalizada. Fala-se muito em meritocracia mas a meritocracia no que toca às questões de género é perversa porque o que vemos é mulheres qualificadas nos centros de investigação mas que raramente são as que estão à frente das grandes decisões”, acrescenta.

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Paula Sequeiros é investigadora DR

Quando a investigadora soube, no ano passado, que a Rede 8 de Março iria apelar a uma greve laboral feminista no Dia Internacional da Mulher, não houve espaço para hesitações. “Claro que eu ia fazer greve. Esta era uma hipótese que eu não cheguei a colocar no meu horizonte de vida há dois anos”, explica. Para Paula, a greve tem a capacidade ímpar “de fazer parar”, mas é imperativo encará-la como um “ponto de partida” para questionar o quotidiano. “Não avançamos para a greve de forma triunfalista. Sabemos que no dia 9 de Março o mundo não mudou. Os nossos locais de trabalho e as famílias não mudaram.” Ao longo deste ano, em que esclareceu várias pessoas sobre a primeira greve feminista em Portugal, foi-lhe colocada, repetidamente, a mesma questão: “porquê agora?”. “Isto para nós não é um agora, é um demasiado tarde. Não estamos a falar de problemas novos, estamos é cada vez mais a destapar problemas antigos”, explica.

Depois de décadas a trabalhar na companhia de livros, não é de estranhar que Paula recorra a uma obra para explicar o que sente na véspera da greve. “É uma felicidade radical, como o título do livro de Lynne Segal. É algo que ultrapassa as nossas vidas individuais. Temos uma oportunidade de não ficar à espera, de corrigir uma injustiça social que é extraordinária e permanente”, afirma. A acompanhar a leitura escolhida para esta sexta-feira, surge uma música, de Geraldo Vandré, que Paula garante encaixar, sem defeitos, como o hino das reivindicações femininas. “Vamos embora, esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera por acontecer”, canta em meia voz.

Esta música, para a investigadora, divide-se entre a projecção que faz para o futuro feminista e o passado nostálgico da adolescência. Com 14 anos, Paula arriscou ser expulsa da Escola Carolina Michaëlis por querer substituir as aulas de religião e moral por seminários de feminismo e liberdade sexual. “Se querem tantas modernices vão para o Garcia de Orta”, ameaçava a directora da escola. Já na faculdade, também no Porto, participou num protesto contra um coro da África do Sul do apartheid que era exclusivamente branco e acabou expulsa da faculdade. “Agora com 63 anos penso noutras coisas. Como os direitos que as mulheres têm vindo a perder. As mães podiam reformar-se dois anos mais cedo. Agora penso muito nisso. Já poderia ter direito a reformar-me”, conta.

“Ó meninas, o avental fica na varanda e os homens que arrumem”

Palmira Ventura, 49 anos, soube da greve feminista porque Camila, filha dos patrões da casa onde trabalha, lhe falou da ideia. “Ai há greve das mulheres? Ó Camila, então não venho trabalhar”, respondeu-lhe de imediato. “Liguei também às minhas amigas para irmos jantar”, conta. “Eu disse ao meu marido ‘olha arranja-te porque eu não vou fazer comida. Neste dia não há tarefas domésticas. É um dia dedicado a mim”, sorri Palmira.

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Palmira Ventura é empregada doméstica DR

Há quase 20 anos como empregada doméstica, considera que este continua a ser um trabalho ao qual “ninguém dá valor”, apesar de ser um “serviço onde nunca se pára” e que exige extraordinária dedicação. “Eu altero o que for preciso da minha vida se precisarem de mim no trabalho”, garante. Principalmente ao recordar os primeiros anos de vida do filho, Palmira sente que o trabalho a impediu de passar tempo em família. “O meu filho entrava no infantário às 9 da manhã e eu saía do trabalho às 9 da noite. Que tempo tinha para estar com o meu filho?”

Agora, com 22 anos, o filho estuda em Bragança, mas os dias de Palmira continuam a ser longos: “Trabalhar, chegar a casa, fazer o jantar, tratar da casa e ainda tentar ter tempo para alguma coisita minha”. Para a portuense, a divisão da sobrecarga do trabalho doméstico está longe de acontecer. “Há homens que dizem que ajudam. Mas depois dizem: ‘só não lavo a loiça porque não gosto, só não passo a ferro porque não sei’. Então ajudam no quê? Pôr a mesa e fritar um ovo? Isso não é ajuda.” Ainda assim, acha que é uma mulher com sorte. “Com o meu filho é diferente. Aprendeu a cozinhar, porque eu chegava sempre tarde”, exemplifica.

Palmira, que sempre viveu no Porto, começou a trabalhar aos 16 anos. Antes de se dedicar ao trabalho doméstico, foi empregada de café, trabalhou numa fábrica de calçado e num armazém onde embalava pimentos. “Eu ainda vivia com as minhas cinco irmãs e elas já não podiam vestir a minha roupa porque cheirava sempre a pimentos”, ri-se. Em jovem, os trabalhos que escolhia tinham de ser perto de casa. “Eu tinha muito medo de andar em zonas vazias a pé”, explica. “Gostava de ter feito outras coisas. Se eu arriscasse mais, ou tivesse alguém que acreditasse mais em mim, se calhar podia ter conseguido mais um bocadinho”, conta.

Palmira não cai em lamentos nem verga perante dificuldades. Reclama pelos seus direitos e não arreda pé das suas lutas. Nos últimos meses, foi distribuir panfletos da greve feminista. “Fui às lojas do Porto, aos cabeleireiros, falei com as minhas amigas”, conta. “Eu dizia: Ó meninas, no Dia da Mulher o avental é para estar na varanda e os homens que arrumem”, ri-se. “Houve muitas que me disseram ‘se é para parar, a gente pára’ e outras que diziam ‘mas a minha patroa é minha amiga’. Eu respondia: isto não tem a ver com a patroa, tem a ver contigo. Estás a fazer isto porque é para ti, porque és mulher, e nós, mulheres, temos de reivindicar por muita coisa melhor”, como igualdade salarial e a divisão da sobrecarga das tarefas domésticas, defende.

Apesar de estarem a ser organizados protestos em 11 cidades, Palmira acha que a greve não vai ter impacto em Portugal e atribui parte da culpa à falta da adesão da CGTP. Até hoje foram apenas cinco sindicatos — SIEAP, SNEsup, STSSS, STCC, S.TO.P  — que emitiram pré-aviso de greve. “A CGTP está sempre a dizer que o trabalho das mulheres é precário. Então, porque não se quiseram juntar? Só se juntam quando são eles a ter iniciativa?”, questiona.

Tirar férias para fazer greve

Raquel Silva viajou da Madeira para Lisboa há dez anos. Desde que chegou à capital, ainda não conseguiu ter estabilidade financeira que permitisse ter a sua própria casa. “É estranho dizer que sou adulta porque tenho 30 anos e ainda tenho de dividir casa com outras pessoas”, explica. Quando terminou a licenciatura em Literatura, não conseguiu encontrar trabalho na sua área de estudo. Para pagar as contas, começou a trabalhar num centro de cópias, a recibos verdes, onde sentiu, desde logo, um tratamento discriminatório por ser mulher. “Na primeira entrevista perguntaram-me se tinha namorado. Não dei importância na altura mas não acredito que perguntassem isso a um homem. Com as mulheres os patrões sentem que podem ter um comportamento mais invasivo porque pensam que não levamos a mal”, explica.

Depois do centro de cópias, seguiu-se o trabalho na pizzaria, também a recibos verdes, e agora o emprego numa service desk, em que ajuda, por telefone, a resolver problemas informáticos. “É um trabalho melhorzinho. Já tenho contrato”, diz. “Mas continua a ser frustrante porque estou a trabalhar em algo que não tem nada a ver com aquilo que estudei”, acrescenta.

Raquel faz parte da equipa que organiza o Festival Feminista de Lisboa. Intimamente relacionada com a Rede 8 de Março, que convocou a greve feminista, identificou-se, desde logo, com as reivindicações da greve laboral: a falta de oportunidades para as mulheres, a precariedade e desigualdade salarial. “Não pensar nestas lutas é um privilégio de quem não passa por dificuldades”, afirma. “A ideia de construir uma carreira é utópica. Só pessoas privilegiadas é que hoje podem pensar em progressão de carreira. Em todos os trabalhos que tive nunca pensei que iria ficar mais de dois anos. E sei que isto acontece com outras mulheres.” São elas, considera Raquel, o verdadeiro rosto da precariedade. “O call center é o emprego precário da minha geração. E eles estão cheios de mulheres”, exemplifica.

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"O call center é o emprego precário da minha geração", diz Raquel Silva DR

Como o seu emprego não está associado a um sindicato (os trabalhadores da sua empresa não integram o sindicato dos call center, que aderiu à greve de 8 de Março), a jovem não poderia estar legalmente protegida para participar no protesto. “Decidi que iria tirar férias para garantir que não tinha de ir trabalhar. Queria estar envolvida na greve a 100%.” Nesta sexta-feira, Raquel vai também aderir à paralisação ao consumo, principalmente nas grandes superfícies — um dos quatro eixos da greve feminista, que mobilizou as apoiantes a colar autocolantes da greve nas etiquetas das roupas das lojas. “Não comprar coisas sem pensar, sem saber como foram feitas”, explica.

Longe do trabalho e do consumo, este dia vai ser passado na rua, em colectivo. “Deixamos tudo e vamos ocupar o espaço público e as ruas que nem sempre são seguras para nós. Mostramos que temos direito de estar ali, sem medo, sem olhar por detrás do ombro. Estamos unidas e a rua é nossa.”

“É uma raridade mulheres negras em lugares de decisão em qualquer área”

Lúcia Furtado, 36 anos, vive em Lisboa e sempre trabalhou como contabilista. É uma das fundadoras da Femafro, associação de mulheres negras, africanas e afro-descendentes. Se as mulheres têm menos oportunidades e ocupam em menor número lugares de chefia comparado com homens, o cenário fica ainda mais dramático quando se trata de mulheres negras. “É uma raridade mulheres negras em lugares de decisão em qualquer área”, comenta. Para Lúcia, a luta das mulheres cruza imperativamente com outros eixos. “As questões de género são importantes mas não são as únicas a afectar as mulheres. A questão de classe, orientação sexual, de raça são opressões que acabam por se fundir e que têm de ser atendidas por esta greve feminista” — razões que levam a Femafro a ocupar a Praça do Comércio no Dia Internacional da Mulher, na manifestação convocada para as 18h30.

“O movimento feminista tem cada vez mais mulheres negras, ciganas, LGBTI+, com deficiência. As realidades são muito diferentes, nós não somos todas iguais mas vivemos todas em Portugal. E é importante que todas as mulheres se sintam representadas no movimento ao verem mulheres diferentes na greve”, afirma Lúcia que, apesar de o sindicato não emitir pré-aviso, não vai trabalhar na sexta-feira. “Não apareço e pronto”, explica.

Apesar de ter um contrato e uma situação estável de trabalho, Lúcia guarda preocupações e desassossegos relativamente ao seu futuro profissional. “A partir de uma determinada idade, a maternidade empurra ainda mais a mulher para longe dos lugares de decisão”, critica. “Perguntam-nos logo se queremos ter filhos. Se formos casadas e mães é logo visto como um entrave ao trabalho e somos colocadas de lado.” As mulheres ficam, assim, limitadas a níveis intermédios na profissão “porque não são vistas como tão produtivas e dedicadas como os homens, que até podem estar na mesma condição: casado e com filhos”. “Tudo isto limita a minha carreira e os lugares onde posso vir a chegar”, explica.

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Lúcia Furtado é contabilista Miguel Manso

Entre as várias formas de luta que assume, nomeadamente na associação FEMAFRO, Lúcia considera que a greve é a forma de “mostrar como a falta de mulheres no trabalho ou em casa pode afectar todo o funcionamento normal da sociedade”. “A luta das mulheres faz-se de muitos passos e a greve é um passo muito grande”, defende.

Levar a mãe à manifestação  

Raquel Azevedo vive na correria entre o Porto, onde vive, e Braga, onde trabalha. Dirigente sindical do comércio e serviço há um ano e meio, trabalha no mundo “precário” do call center: “É uma profissão com muita pressão, desgaste, onde não há segurança contratual nem financeira porque funcionamos à base de bónus e prémios”, descreve.

Com 34 anos, sempre trabalhou em sectores onde as mulheres eram a maioria, como no calçado, onde foi sindicalista durante três anos, fazendo parte do acordo histórico que defendia salário igual para trabalho igual entre homens e mulheres. “As desigualdades eram brutais. A mulher tinha categoria 1 de prensadora, que é uma das etapas da finalização do sapato, e fazia o mesmo que o homem, que ficava numa categoria acima e a ganhar mais.” Raquel alerta que o acordo “está longe de estar a ser 100% implementado” e critica os outros sindicatos que deviam, na altura, ter iniciado a discussão sobre a igualdade salarial.

A justiça laboral para as mulheres é uma das batalhas que leva Raquel a colaborar na preparação da greve desde o início, juntamente com a associação Coletiva, uma rede activista que nasceu no Porto. Além de distribuir folhetos e colar autocolantes, ajudou a agilizar as ligações com os sindicatos. Considera “uma contradição um bocadinho grande” o sindicato do calçado não emitir pré-aviso mas reconhece que a adesão dos sindicatos “não é um caminho fácil de fazer”. “É normal que nem todos acedam em massa mas cá estaremos para o ano para os convidar novamente”, acrescenta.

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A justiça laboral para as mulheres é uma das batalhas que leva Raquel Azevedo a colaborar na preparação da greve. DR

Raquel é uma força activa na luta feminista em Portugal mas foi fora do país que se apercebeu da necessidade de lutar pelos seus direitos laborais. Na Suíça trabalhou como chefe de cozinha, onde tinha de “comandar” vários cozinheiros. “Nas reuniões para debater a ementa, colocavam-me questões para me pôr a prova e as minhas ideias eram menosprezadas pelos outros cozinheiros.” Aos poucos e poucos, foi-se apercebendo das tentativas subtis de “enfraquecer a mulher, torná-la inferior e vender a ideia de que não tinha o pulso do homem”.

Nesta sexta-feira, Raquel não espera que o país pare, mas acredita que as mulheres se juntem. “Às vezes é preciso 200 pessoas avançarem para depois serem 20 mil”, afirma. Antes de ir à manifestação que vai acontecer na Avenida Central de Braga, vai a casa buscar a mãe, que foi operária fabril. “Ela quer estar na greve. São lutas que a minha mãe também viveu. Não são coisas do agora. Mas tornaram-se de tal forma evidentes que deixou de haver forma de tapar mais isto.”