O teatro de Milo Rau faz justiça pelas suas próprias mãos
O genocídio na República Democrática do Congo, o terrorismo na Noruega, a pedofilia na Bélgica, o aborto selectivo na Suíça, o totalitarismo na Rússia: Milo Rau é um globetrotter da violência, cada peça uma anatomia do mal que está a acontecer algures no mundo neste momento. Até Abril, há-de estar a ensaiar uma Oresteia no Norte do Iraque com os mais corajosos actores do teatro que dirige na Flandres, no Verão andará pelo Sul de Itália a filmar um Novo Testamento com os losers da globalização. Antes disso, dias 7 e 8, traz ao Porto Os 120 Dias de Sodoma.
A mesa onde desde o ano passado Milo Rau (Berna, 1977) vem tratando de demolir o teatro ocidental — para poder construir, sobre as ruínas desse rebarbativo sistema pequeno-burguês, uma máquina capaz de mudar o mundo, em vez de se limitar a reiterá-lo — é um índice abrupto das milhentas questões que passam neste momento pela cabeça deste suíço que o New York Times admitia em Outubro poder ser “realmente o mais controverso encenador” dos nossos tempos. Enquanto ele desce ao bar para ir buscar um café, vamos do ensaio de George Steiner sobre a morte da tragédia a um artigo da Atlantic sobre como “o petróleo ia reconstruir o Iraque, mas depois o conflito e a política vieram atrapalhar”; da versão abreviada de The Family of Man, o megalómano atlas fotográfico que Edward Steichen comissariou em 1955 para o MoMA, ao catálogo da exposição Cités millénaires. Voyage Virtuelle de Palmyre a Mossoul, que o Instituto do Mundo Árabe acaba de mostrar em Paris; do flyer da retrospectiva que o Internationaal Theater Amsterdam lhe dedicou em Janeiro ao programa do festival sobre descolonização e identidade que se inicia no mesmo dia em que Milo Rau recebe o Ípsilon no NTGent, o teatro que dirige desde Setembro e que mais ou menos — sublinhemos o mais ou menos — o mantém cativo na Flandres.
Apesar da euforia que fez correr para Gande, como se tivesse acabado de chegar o Messias, a imprensa internacional de referência, incluindo o Financial Times, e apesar dos vários escândalos com que desde 2007, quando fundou o International Institute of Political Murder, vem construindo, nada ingenuamente, a sua reputação de agente provocador, é normal não se saber nada sobre Milo Rau — mas só até se chegar à fachada (ou a página de entrada do site) do teatro onde planeia a revolução. A partir daí, o seu programa de contra-“lavagem cerebral” é-nos atirado à cara com a violência, física e psicológica, que considera uma obrigação moral figurar nos seus espectáculos, um atlas do mal de que em Portugal se viram apenas Hate Radio (2011), sobre o genocídio no Ruanda (Teatro Maria Matos, 2013), e Five Easy Pieces (2016), sobre o escândalo de pedofilia na Bélgica (Teatro Municipal Campo Alegre, 2017). Sobre a fachada do teatro, no cabeçalho do site, alguém grafitou a preto, por cima das letras douradas que anunciam pomposamente “O Teatro Municipal do Futuro”, o novo logótipo do NTGent — alguém que só pode ter sido ele.
Lá dentro, o draconiano manifesto de dez regras a que as peças do NTGent devem agora obedecer está por todo o lado, declarando “proibida” a “adaptação literal dos clássicos”, estipulando que cada espectáculo deve ser falado em “pelo menos duas línguas” e incluir “pelo menos dois actores não-profissionais”, determinando que “uma produção por temporada tem de ser ensaiada ou representada numa zona de conflito sem qualquer infraestrutura cultural”. Tem doído um pouco, reconhece: “É uma escravatura estética, e sobretudo técnica: não fazemos isto por prazer, mas porque entendemos que são as regras necessárias para fundar uma nova instituição”, responde quando lhe perguntamos se não foi terrivelmente impopular desfazer a companhia residente para poder ter um elenco verdadeiramente representativo do que é Gande em 2019.
Estreada em 2017, um ano antes da publicação do manifesto, Os 120 Dias de Sodoma, a peça que nos dias 7 e 8 de Março o traz de regresso ao Porto, a convite do Teatro Municipal Rivoli, não obedece aos novos dogmas de Milo Rau. Mas a decisão de propor a uma companhia de actores com síndrome de Down uma adaptação do filme de Pasolini também foi diabolizada pela imprensa tablóide. “Encenador suíço estreia peça que tortura actores com síndrome de Down”, titulava o Daily Mail, prosseguindo nestes termos: “Será está a produção com mais mau gosto de sempre? Um teatro suíço leva ao palco uma peça do Marquês de Sade em que actores com síndrome de Down são acorrentados como cães, simulam orgias e fazem de conta que comem excrementos”.
É verdade, diz ao Ípsilon, o escândalo tem sido uma arma, uma maneira de se impor como assunto. E uma droga. Logo à primeira peça, The Last Hours of Elena and Nicolae Ceausescu (2009/2010), fez-se processar pelo filho do ditador romeno; mais recentemente, ficou proibido de entrar na Rússia por ter fantasiado, em The Moscow Trials (2013), um julgamento justo para as Pussy Riot. Na Bélgica, instalou o caos a nível nacional mesmo antes de estrear a primeira encenação para o NTGent, quando publicou um anúncio a recrutar jihadistas locais para a instalação com que se apresentou a Gande, Lam Gods — recriação do mítico políptico dos irmãos Van Eyck exposto na catedral ali ao lado, a Adoração do Cordeiro Místico, o grande orgulho da cidade. Tal como as cruzadas cristãs do século XII em que um dos mais celebrados heróis locais, o Conde da Flandres Filipe I, perdeu a vida, o jihadismo, argumenta, é uma história muito belga. Tão belga quanto a do pedófilo Marc Dutroux que abordou em Five Easy Pieces, a sua primeira aproximação ao país (e mais uma polémica: encenou a história com crianças), tão belga quanto a de Ihsane Jarfi, gay, muçulmano, torturado até à morte numa floresta nas imediações de Liège, crime que reconstituiu já como director do NTGent em La Reprise, a sensação de 2018 no Kunsten Festival des Arts e no Festival de Avignon.
O escândalo dá-lhe “medo”, mas também compensa. E não apenas narcisicamente. Na sequência de The Congo Tribunal (2015), o seu inquérito ao genocídio em curso no Leste da República Democrática do Congo, dois ministros demitiram-se e outras acções populares reclamando justiça para as vítimas se seguiram entretanto. Talvez se ache mesmo um Messias (marxista é, e assumido), este ex-sociólogo e ex-jornalista, hoje encenador, cineasta, ensaísta e globetrotter da violência passada, presente e futura, cujas próximas produções o levarão até ao Norte do Iraque e ao Sul de Itália, onde filmará em Matera, como Pasolini, um Novo Testamento com “os losers da economia global”: os agricultores que a importação de cereais levou à bancarrota e os refugiados africanos condenados à escravização.
O teatro, acredita, pode fazer alguma coisa quanto a isto. Pode ser uma máquina da verdade, um tribunal onde se passa do trauma à reparação — e ele precisa de fazer parte disso, para que daqui a uns anos, quando lhe perguntarem o que estava a fazer enquanto seis milhões de pessoas eram massacradas no Congo, “não ter de responder que estava ocupado a desconstruir um romance do Michel Houellebecq em Paris”. Quer poder responder-lhes que estava a documentar a realidade, e ao mesmo tempo a construir uma realidade alternativa: “Um sociólogo descreve, um jornalista descreve, mas não têm de provar que têm razão, que há outra possibilidade. Quero descrever mas também quero julgar, implicar-me numa prática de empoderamento e de contrafacção que possa efectivamente mudar o mundo.”
Tinha planeado tecer o seu manifesto na alcatifa do teatro. Isso aconteceu mesmo?
Temo-lo em todas paredes dos quatro edifícios deste teatro — em ouro, em mármore… E na abertura da temporada imprimimo-lo e pusemo-lo a cobrir a alcatifa, por cima das escadas. Mas as pessoas não lêem o manifesto quando ele está no chão. E também não gostava muito da ideia de o pisarem [risos].
Ainda ninguém entrou em pânico ao deparar-se com as regras?
Há encenadores que entram em pânico, mas mudam muito depressa. O Luk Perceval está aqui a fazer uma peça sobre o Congo: começou sem texto e a coisa anda! A partir do momento em que dizes aos actores que vamos partir do zero, toda a gente acorda; se o encenador te dá o texto, ficas à espera que a seguir te diga tudo o que terás de fazer. O objectivo do manifesto é mesmo libertar a criação da adaptação. E assim os actores tornam-se dramaturgos, os não-actores tornam-se actores, os encenadores tornam-se autores, etc. Gosto muito de este teatro já não estar limitado à ideia de que “o Milo é o encenador, portanto vai dar-nos um texto e depois vai fazer uma encenação, e depois sairá uma crítica e no fim podemos ir para casa dormir porque está feito”. Não é assim. Se há críticas, leio-as. Posso ficar um pouco ferido, mas quando concluo que têm razão mudo o espectáculo.
Por que é que decidiu vir para Gande, vindo de… onde, exactamente?
A minha companhia tem sedes em Berlim, Zurique e Colónia, mas eu estava onde estavam os projectos, e no resto do tempo com a minha família, em Colónia. Gande é uma história longa… Comecei a trabalhar aqui há mais de dez anos, com o Hate Radio, depois fiz o Five Easy Pieces. Ao longo de todo esse tempo, sabia que o NTGent existia, mas era o teatro municipal chato; jamais teria a ideia absurda de lá ir. Entretanto, muita coisa se passou até eu chegar à conclusão de que não podemos passar a vida a criticar o sistema de teatro estatal, e de que talvez o que tenhamos a fazer seja mudá-lo — o que implica pegar numa instituição. Quando o Johan Simons se foi embora e esta vaga se abriu, conseguimos a posição e imediatamente começámos a mudar o sistema, que felizmente já estava destruído. Quando aqui cheguei isto era a Alemanha em 1945…
O que tinha acontecido?
O NTGent é um dos teatros míticos do sistema europeu: o Alain Platel, o Luk Perceval, todos esses nomes começaram aqui nos anos 70 e 80. Mas tinha havido problemas graves… O director artístico anterior saiu daqui para a Münchner Kammerspiele e depois para a Trienal do Ruhr; quando voltou, o tipo que estava ali naquela cadeira, o director financeiro, tinha orquestrado uma revolta e o caos estava instalado… Tive de decapitar o management, porque como em todo o lado no neoliberalismo a produção estava a ficar cada vez mais pequena e o management cada vez maior. E assim pude fazer crescer a produção, internacionalizar o teatro, abrir a companhia residente a pessoas sem background, tudo isto em meio ano.
Dirigir um teatro é mais revolucionário do que continuar a fazer as suas criações?
Acho que os artistas, os activistas, whatever, devem entrar nas instituições e dirigi-las. Se estás fora do sistema não és ninguém. Aqui eu posso dizer: na próxima temporada, vamos usar 50% do orçamento para criar um partido para os imigrantes. Se a tutela política disser que não, teremos um braço-de-ferro e daqui a um ano eu não estarei cá. Mas enquanto estiver posso fazer o que quiser. É mesmo assim, o teatro é um sistema um pouco ditatorial — daí perguntar-me por que é que toda a gente, quando entra numa organização como esta, começa imediatamente a fazer como se fazia antes. Por medo de perder o contrato? Essa é a segunda coisa boa: trabalho há 20 anos fora do sistema, não nasci para ser director artístico, se me despedirem… Estou sempre a dizer-lhes: ou aceitam isto ou vou embora. Posso partir em dois dias, mesmo em duas horas. E a minha liberdade faz a liberdade dos meus colaboradores. Vamos dar o nosso melhor, vamos insistir até ao fim, mas se não quiserem, paciência, não faremos compromissos irracionais.
Como por exemplo?
O sistema teatral alemão, belga e em parte francês também foi criado com o apogeu da burguesia, no século XIX. Escreveram-se os clássicos, estabeleceu-se um cânone, e depois continuámos até hoje a representar os Molières e os Faustos. Mas qual é a razão de termos três mil encenações por ano do Fausto? É porque a peça é três mil vezes melhor do que todas as outras que se escreveram nos últimos dois séculos? No NTGent, vamos parar de adaptar os clássicos, é mesmo proibido pelo manifesto, portanto todos são obrigados a tornar-se Shakespeares, Molières e Goethes, com as possibilidades que têm. Quero fazer um corte radical com o sistema tal como funcionou até aqui, e explicitamente, de um modo um pouco modernista-estalinista, porque entendo como um acto político tornar explícito o que estamos a fazer. É o que ouço há 20 anos outros directores dizerem que querem fazer mas nunca o fazem. Ou então usam a sua pequena sala no subúrbio para fazer coisas um pouco mais doidas mas no teatro principal continuam a fazer o Fausto.
Foi duro impor as regras? O desmantelamento da companhia residente…
Claro que há adversários. Há pessoas de direita que são contra a diversidade como ideia. E também temos a crítica da esquerda, mas o problema dessa gente é o que anda a dizer há 20 anos. Temos um ensemble composto por brancos de meia idade, todos flamengos, e queremos fazer um teatro diverso? Impossível! Se querem fazer um teatro diverso, é preciso eliminar este ensemble. Debatemos isto durante um ano, todos os actores foram alocados a projectos e percebemos que, mudando a forma dos contratos, podemos expandir um elenco de 12 pessoas para quase 40. Se queremos mesmo ter em palco duas crianças ou sete congoleses, temos de criar espaço, e temos de o criar juntos. Mas é verdade — e essa é uma das razões por que vim — que na Flandres há mais abertura em relação às novas formas do que em qualquer outro lugar, uma abertura a que mistures a dança, o documentário, o cinema, o texto… Aqui isso faz-se há 20 anos. Não há o peso de um cânone, podes ler todos os clássicos flamengos numa hora e meia [risos], podes abrir o teatro totalmente. Mas claro, se ninguém tivesse vindo ver o Lam Gods, se o La Reprise não tivesse tido aqueles prémios todos, ter-me-iam dito: estás a ver? Tivemos sorte, as pessoas vieram. É verdade que as convidámos 50 mil vezes, e os escândalos também, mas vieram e acharam interessante — mesmo mais interessante do que ver de novo As Três Irmãs do Tchékhov.
No final da sua permanência aqui, o que é o fará dizer que cumpriu a missão?
No início eu não sabia se isto me iria fazer bem ou se teria a impressão de estar a perder o meu tempo. Quando sais de 20 anos de narcisismo total… Mas foi uma libertação. Aliviou-me da obsessão com o meu trabalho, até nas minhas encenações vou mais rápido, estou mais relaxado… Poder fazer uma programação, inventar uma casa, é mesmo interessante. A missão cumprida seria uma sensação de sucesso partilhada: tivemos uns bons seis, cinco anos, um ano e meio [risos], e isso deu-nos um sentido. Se tivesse de abandonar o cargo agora, deixaria uma casa em que toda a gente sabe por que é que está a fazer teatro — mesmo se os produtos não são sempre super-conseguidos. Mas há outro projecto que quero concretizar: criar um círculo europeu de criação de novos clássicos e depois fazê-los circular. Implicará que os teatros nacionais saiam dos seus cânones. Mostrar três mil vezes o Fausto é lavagem cerebral; a única coisa que nos resta contra isso é fazer lavagem cerebral também. Mas precisamos de uma estrutura um pouco maior do que o nosso pequeno teatro e os seus cinco co-produtores.
A primeira regra do manifesto estabelece que o teatro deve mudar o mudo. O que é que o teatro pode fazer que a política, a justiça, o jornalismo, o activismo não podem?
Acredito muito na magia do teatro. O teatro é virtual e real ao mesmo tempo. No museu não és verdadeiramente solicitado como espectador; o cinema é uma experiência solitária; mas quando estás em palco sentes a concentração de cada espectador, é uma construção colectiva. Por outro lado, é uma ficção, é virtual, mas se fazes um projecto como o Congo Tribunal vês de facto realizar-se uma coisa irreal, como a justiça num contexto de guerra civil: porque são actores verdadeiros, em cima de um palco verdadeiro, a fazer um julgamento verdadeiro, mesmo que só por duas horas. Há uma realidade no teatro que não tens nas outras artes. Se fizeres um filme sobre um neo-nazi que matou 50 pessoas, as pessoas dirão que é só um filme. No teatro, há alguém que faz aquilo na realidade, à tua frente [em Breivik’s Statement, de 2012, uma actriz lia integralmente o depoimento do terrorista norueguês]; e se algum espectador te vier dizer que não fizeste bem, podes sempre fazer diferente amanhã — foi por isso que decidi abrir os ensaios, também está no manifesto. Perante um filme, posso apenas dizer que fiz o melhor que sabia: depois de estreado, nada a fazer. O teatro é a única arte que respeita verdadeiramente o público como entidade que está ali presente. Um artista plástico, se tiver mercado e dois curadores que o levem ao colo, poderá dizer “fuck you, venhas ou não venhas ao museu, eu sou milionário”. No teatro não dá. Se as pessoas não vierem, não existe. E é por ser uma arte popular que tem tanta influência.
Mais do que a politica ou o jornalismo?
Vê a capa deste livro que publiquei há dois anos, Wiederholung und Ekstase: a foto é de Sinjar, ao lado de Mossul, onde estive a filmar. Sempre que havia uma barreira na estrada, perguntavam-me qual é o meu trabalho. Se respondesse jornalista, passava dois dias na prisão e acabava expulso do país; se respondesse político, matavam-me. Como artista deixam-me passar, porque estão convencidos de que a arte nunca chega a lado nenhum, só serve para as elites se entreterem… O mesmo no Congo: se como político ou activista te metes no meio de uma guerra civil e dizes “quero julgar o vosso governo”, nem te deixam entrar; se dizes que queres fazer uma peça de teatro, dirão “ok, faz”. Mas o poder do teatro está estranhamente ligado ao seu extremo realismo, no sentido em que tudo o que está em cena é real. Se convidas um juiz de Haia e um ministro do Congo, e o juiz de Haia julga o ministro do Congo, o que tu tens de facto é um tribunal internacional contra o regime de Kabila. Lembro-me — e para mim isto é a força institucionalizadora do imaginário — de perguntar ao juiz que presidiu ao nosso tribunal sobre o Congo, Jean-Louis Gilissen, um dos criadores do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, por que é que estava no nosso projecto. Resposta: “Porque este julgamento não seria possível em Haia”. Este é o homem a quem chamaram louco quando foi à Conferência de Roma apresentar o projecto do tribunal sobre o Ruanda, juntamente com outros três belgas de bigodinho… Três anos depois arrancava o primeiro processo. Podemos construir tudo. A arte é o espaço onde criamos instituições simbólicas que depois podem tornar-se instituições reais.
Deixou a sociologia porque o teatro é mais eficaz?
Continuo a ser um sociólogo que utiliza o teatro. Sempre tive necessidade de realizar as coisas. Posso descrever muito facilmente que há uma injustiça económica não declarada no Congo e — porque sou marxista — que as razões da guerra civil não são de todo étnicas, mas têm a ver com o facto de aquele ser um dos únicos sítios do mundo onde há coltan [contracção das palavras columbite e tantalite, minérios indispensáveis ao fabrico de componentes electrónicos]. Mas há jornalistas que há 20 anos descrevem o conflito… a informação perdeu o seu valor, porque há demasiada informação. Estou a fazer um filme com os escravos que trabalham nas plantações de tomate e de laranja em Matera. Endividam-se quando chegam, porque vêm sem nada, e então ficam nas mãos da máfia e são obrigados a trabalhar até ao fim da vida, que não é muito longa: cinco anos e desaparecem. Quando vi as plantações e os campos de refugiados e percebi como o sistema funciona, não podia acreditar… Aprendi com eles que não existe a possibilidade de saber, só existe a possibilidade de experimentar; se não passares por aquilo, não acreditarás. As informações atravessam a tua cabeça, mas não entram na tua prática, para usar um termo da Hannah Arendt. Ora o teatro, e aí está a diferença em relação à maioria dos academismos, e até do jornalismo, é sempre uma prática: tens um grupo de pessoas e tens de fazer qualquer coisa com elas.
Porquê esta fixação na violência?
Há um lado nisso que me escapa, mas agora que li tantas vezes a Bíblia para fazer o Novo Testamento posso tentar uma explicação: há qualquer coisa de muito cristão em dizer que o corpo deve ser destruído para que a transcendência seja possível. É esse o ritual de Jesus. E esse sistema cristão da morte simbólica que aspira à ressurreição está subjacente nas minhas peças, mesmo se em Orestes em Mossul suspeite que vá adquirir um tom muito negativo. Em Mossul tu vês que a violência ainda não acabou e que não há nenhuma razão para dizer que vai acabar — no fim, como escrevi em Compassion. The History of The Machine Gun [2016], a única coisa que conta é quem tem a metralhadora, é essa a lição da história humana. Mas resta uma espécie de idealismo, ou de catolicismo, ou de hegelianismo: a ideia de que toda esta violência nos conduz a qualquer coisa. Em Os 120 Dias de Sodoma, há uma solidariedade entre os que representam a violência em cena; é como as crianças no Five Easy Pieces, tu vê-las a atravessarem o trauma. A violência só me interessa nesta relação. A única possibilidade de dar um sentido à horrível imagem dos cadáveres de mulheres, bebés e crianças massacrados com que me deparei no Congo é trabalhar para que um dia se possa dizer que o massacre de Mutarule foi o início da jurisdição naquela região… É por isso que com o manifesto tento aumentar o preço pessoal a pagar pela participação nos projectos. É proibido entrar em Mossul, todas as embaixadas nos disseram que não nos ajudariam em nenhuma circunstância. Decidir ainda assim avançar… temos de reflectir sobre o que nos leva a fazê-lo. E essa é a derradeira questão: que preço estamos dispostos a pagar para que a arte confronte a violência, mesmo que apenas a um nível pessoal, mesmo que se trate apenas de arriscar que esta actriz se faça explodir por uma mina, ou que aquele actor se faça prender pelas milícias?
Já fez espectáculos sobre o genocídio, o terrorismo, a pedofilia… Não há limites?
Há. Por exemplo isto [aponta para o cartaz de Lam Gods, onde se vê um cordeiro degolado]: não podemos matar um cordeiro em palco porque o teatro é um recinto fechado. Numa sociedade instruída, democrática, a lei é o limite lógico. Levar La Reprise e Five Easy Pieces ao Brasil, onde a homofobia está muito presente no discurso oficial, não viola a lei, mas viola uma lei implícita imposta pela agenda ultraconservadora. Nesse caso, oponho-me a ela. Outro limite são os actores. Alguns dos actores com deficiência de Os 120 Dias de Sodoma disseram que não queriam mostrar o peito ou o pénis todas as noites. Esse limite nunca irei questionar. Interessa-me ver até onde os actores querem ir, não até onde posso obrigá-los a ir.
O escândalo é uma droga, ou apenas um efeito secundário dos temas que trata?
As duas coisas. Há dois tipos de escândalo, os que nós provocamos e os que acontecem sem que os tenhamos previsto, e esses são os verdadeiros escândalos, porque não temos uma resposta preparada e é o caos. Como sociólogo gosto muito disso, como viciado em adrenalina também; tenho medo, mas cada vez menos, porque se aprende muito depressa que a lógica do escândalo dura uns dias e depois toda a gente esquece. Mas perante o absurdo que se passou com o [artista brasileiro] Wagner Schwartz, acusado de pedofilia por causa de uma performance em que as pessoas podiam tocar-lhe, o que eu posso fazer é levar ao Brasil uma peça sobre a pedofilia e outra sobre a homossexualidade. Não estou à procura de escândalo. Só quero dizer-lhes que se são homofóbicos também são pedófilos: estruturalmente, é a mesma violência.
Parece ter uma atracção pelo julgamento, enquanto forma teatral. Tendo de produzir um veredicto, o julgamento não induz um certo moralismo?
Depende. O veredicto, que é sempre moralizador, é só um alibi para fazer avançar a máquina do tribunal. É o MacGuffin dos filmes do Hitchcock: só está ali para fazer funcionar a dramaturgia, no fim até nos esquecemos que existia. Em muitos dos meus tribunais não se produz um verdadeiro veredicto, noutros o veredicto é muito disputado… Mas quanto à questão de fundo: a Oresteia, a mais velha trilogia que conhecemos, também é um tribunal; portanto, o teatro é um tribunal. O Hegel disse-o muito bem na sua Estética: a tragédia é a oposição de duas opiniões sem que haja qualquer possibilidade racional de dizer que esta ou aquela é melhor. A Antígona e o Creonte, a lei tradicional e a lei moderna: no Congo, também tens isso. As pessoas que ali trabalham há 200 anos, que têm a posse das terras de facto, a lei tradicional; e a lei moderna, Creonte, que chega e pergunta onde é que estão os papéis que o podem provar — e tens um problema porque descobrirás sempre que quem está lá agora matou há 200 anos quem estava lá antes, não há uma decisão.
O mesmo com as Pussy Riot: são minhas amigas, mas 80 por cento dos russos acham ofensivo ver jovens artistas a actuarem nas suas catedrais, e é compreensível, se nos lembrarmos que durante 70 anos os ortodoxos foram perseguidos e viram as suas igrejas incendiadas. Perante isto, o que é que eu posso decidir? E aí o tribunal torna-se importante, porque tu poderás provar que o problema não são os sentimentos dos ortodoxos, mas a forma como o Estado, juntamente com Cirilo, o grande Patriarca da Igreja Ortodoxa, o utiliza politicamente, e que os verdadeiros ortodoxos, que querem devolver a Deus aqueles espaços, são as Pussy Riot. E é quando as morais começam a deslizar que o tribunal se torna verdadeiramente interessante: ah, a moral é sobre a liberdade de expressão das Pussy Riot; ah, não, a moral é sobre a liberdade dos crentes… E claro que isso também é um truque dramatúrgico para fazer andar as coisas. Na verdade, e mesmo que haja um pouco de ideologia hegeliana-católica, as minhas peças são muito niilistas: as coisas acontecem e acabou. Há sobretudo uma falta de moral. A não ser em Os 120 Dias de Sodoma: aí há dois ou três momentos em que de facto eu moralizo um pouco, porque me pareceu necessário, porque conheço as pessoas demasiado bem… Talvez seja um erro, mas às vezes somos dominados por certas pulsões [risos].
O Ípsilon viajou a convite do Teatro Municipal do Porto