Vamos imaginar que estamos no cinema outra vez

Depois da longa-metragem Uma Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier, eis a série Voyages à Travers le Cinéma Français. É uma viagem menos autobiográfica, em oito episódios temáticos, mas continua irredutivelmente pessoal. Está lançada a caça ao DVD para continuar o resgate de Tavernier.

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Mark Mainz/Getty Images

Aquela “crítica americana” que declarou que nunca revia filmes deixou de ser lida por Bertrand Tavernier. É o sintoma de um estado de coisas, segundo o realizador, da crítica de cinema  hoje: opiniões “categóricas”, “definitivas”. Tavernier diz que por isso “não podia ser crítico” — nunca seria um crítico assim ... —, exemplificando com as várias edições do livro 50 Ans de Cinéma Américain, escrito em parceria com Jean-Pierre Coursodon, que corrigiam o que os autores assumiam não ter visto bem.

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Aquela “crítica americana” que declarou que nunca revia filmes deixou de ser lida por Bertrand Tavernier. É o sintoma de um estado de coisas, segundo o realizador, da crítica de cinema  hoje: opiniões “categóricas”, “definitivas”. Tavernier diz que por isso “não podia ser crítico” — nunca seria um crítico assim ... —, exemplificando com as várias edições do livro 50 Ans de Cinéma Américain, escrito em parceria com Jean-Pierre Coursodon, que corrigiam o que os autores assumiam não ter visto bem.

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O tempo necessário para chegar aos filmes dava a estrutura do documentário Uma Viagem pelo Cinema Francês (2016) e é experiência decisiva da série de oito episódios, a continuação, exibida o ano passado, Voyages à Travers le Cinéma Français, e depois editada em DVD. Ao contrário de Uma Viagem pelo Cinema Americano com Martin Scorsese, formato horizontal com os excertos e comentários a assegurarem navegação estabilizada, Tavernier permite-se dilatações para que se admire uma ideia — um plano — de um cineasta. Foi o tempo aliás que o ajudou a compreender Bresson, Duvivier ou Henri Decoin...

Foi durante a produção de Uma Viagem pelo Cinema Francês, percebendo que não conseguiria meter toda a viagem numa longa mas compreendendo que uma segunda estragava o lugar de protótipo da primeira sem afastar do espectador a sensação de coisa de restos, que o projecto de série se concretizou. Continuando a ser pessoal, teria de ser menos autobiográfica e mais temática — residindo a melancolia do filme no facto de se colocar, num percurso que começava em Jacques Becker e acabava em Claude Sautet (este, Tarantino não sabia quem era...), do lado do cinema como experiência e espelho do colectivo. Oito episódios agora, então. Os dois primeiros são dedicados a cineastas de cabeceira, aqueles a que Tavernier regressa para  reconforto  — são os companheiros, não os monumentos; nunca Orson Welles, antes Grémillon, Bresson, Pagnol, Decoin... Depois, um episódio dedicado a um cineasta “musical” como Julien Duvivier, dois dedicados à Ocupação, um sobre os “esquecidos” (Maurice Tourner ou Raymond Bernard; e Tavernier lamentando-se por ter “seguido a moda” e ter ignorado os anos franceses de Anatole Litvak, filmes como Coeur de lilas, 1932, ou L’Équipage, 1935), outro sobre os “desconhecidos” (Jacqueline Audry, Gilles Grangier...) e o final sobre os seus “anos 60” (do artesão de indústria Jacques Deray a René Clement).

Está cheia de resgates a série: o caso dos argumentistas vilipendiados pela nouvelle vague Charles Spaak, Jean Aurenche e Pierre Bost (estes dois chamados por Tavernier para a sua primeira longa, L’Horloger de Saint-Paul). E são episódios capazes de incentivar ainda mais do que o filme a procura de DVD para (re)descobertas — Edmond T. Gréville e Henri Decoin foram nesse âmbito os campeões do filme, depois do qual os americanos terão confessado também que não tinham percebido quem era Jacques Becker ou Claude Autant Lara. Este, Clément e Clouzot são os heróis do exemplar episódio 5, resgatados quer à “qualidade francesa” (os dois primeiros) quer à etiqueta de realizador clínico e sem sentimentos (o autor de O Salário do Medo). Os argumentos são, para o caso do contraditório Autant-Lara,  Le Mariage de Chiffon, 1942, Douce, 1943, Occupe-toi d’Amélie, 1949 (plano sequência estarrecedor a transformar o cinema em treatro), La Traversée de Paris, 1956, ou o par feminista e pró- aborto Journal d’une femme en blanc, 1965, e Une femme en blanc se révolte, 1966, e, como exemplos da “versatilidade” de Clement, La Bataille Du Rail, 1946, Monsieur Ripois, 1952, ou Jeux Interdits, 1953.