Os exames nacionais e o acesso ao ensino superior
O exame nacional do ensino secundário, pelo seu papel no acesso ao ensino superior, terá efeitos não negligenciáveis na composição social dos públicos de subsistemas, instituições e cursos.
Os exames nacionais do ensino secundário vigoram desde 1996, entre outras motivações, para regular o acesso ao ensino superior. À época vivia-se, desde o início dos anos 80, uma conjuntura de aumento da procura do ensino secundário e do ensino superior, com uma capacidade limitada de resposta do sistema público neste setor e a expansão do subsistema privado que teve o seu auge naquela data com uma taxa de matrículas de 36,6%[1].
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Os exames nacionais do ensino secundário vigoram desde 1996, entre outras motivações, para regular o acesso ao ensino superior. À época vivia-se, desde o início dos anos 80, uma conjuntura de aumento da procura do ensino secundário e do ensino superior, com uma capacidade limitada de resposta do sistema público neste setor e a expansão do subsistema privado que teve o seu auge naquela data com uma taxa de matrículas de 36,6%[1].
A solução adotada, que pressupunha para o ensino secundário regular a principal função de preparação para o ensino superior, teve como consequência não apenas a contenção do aumento da procura do ensino superior, mas a estagnação do ensino secundário, com o recuo da taxa real de escolarização e níveis brutais de reprovação.
Desde 2006, alargadas que foram as oportunidades institucionais de acesso ao diploma do ensino secundário ― sobretudo pelo crescimento do ensino profissional e a adoção da escolaridade obrigatória até aos 18 anos, mas também pela expansão da Educação de Adultos ―, os exames nacionais de ensino secundário terão consolidado o seu efeito de regular e conter o acesso ao ensino superior. Não serão, contudo, despiciendas as suas consequências na democratização segregativa do ensino secundário[2].
Hoje, face a 1996 ou mesmo a 2006, a situação alterou-se significativamente já que as vagas no ensino superior excedem o número de candidatos a par do aumento de jovens diplomados do ensino secundário. Desde o início da legislatura, o atual governo assumiu como objetivo o alargamento da base social do ensino superior, tendo em vista uma das metas da Estratégia UE2020 de 40% de diplomados no ensino superior na faixa etária dos 30-34 anos.
A solução dos Cursos Técnicos Superiores Profissionais, lançada pelo governo anterior e mantida com alterações pelo atual, cedo revelou limitações face àquele objetivo e o modelo de acesso ao ensino superior foi, num dado momento, definido como nó górdio para a sua democratização. Sendo desenhado para os estudantes dos Cursos Científico-Humanísticos do ensino secundário tem como pedra angular os exames do ensino secundário, adotados como provas específicas de acesso pelas instituições do ensino superior. Aqueles constituem hoje o esteio da concorrência entre estas instituições pela seleção de estudantes, com base no seu desempenho académico (passado e esperado).
Entretanto, dada a correlação positiva entre desempenho académico e origem social ― e tendo em conta o efeito dos exames nacionais do ensino secundário no fomento do negócio das explicações, que exigem recursos económicos avultados [3]―, aquela seleção de estudantes com base no desempenho académico sustenta a homogeneização e segregação social de segmentos da população concentrados em certos cursos e instituições. Nesse sentido, o exame nacional do ensino secundário, pelo seu papel no acesso ao ensino superior, terá efeitos não negligenciáveis na composição social dos públicos de subsistemas, instituições e cursos: com a universalização do ensino secundário, os processos de distinção, as lutas concorrenciais em torno da educação[4] e a estratificação social dos diplomas ter-se-ão, em larga medida, deslocado para o ensino superior.
De momento, parecem ter sido abandonados o debate e a prioridade política da diversificação dos modelos de acesso ao ensino superior, eventualmente substituídos pelos focos nas propinas e nos apoios sociais como vias para alargar a sua base social. Serão estas últimas opções políticas porventura mais fáceis de avançar, dadas as múltiplas resistências que se levantaram à possibilidade de desafiar a hegemonia do modelo de acesso baseado nos exames nacionais dos cursos científico-humanísticos. Quais serão as consequências expectáveis das diferentes opções, do ponto de vista da democratização do ensino superior? A verificar-se a deslocação do foco do debate e da prioridade política, o que nos diz sobre as escolhas da sociedade portuguesa e o projeto de ensino superior?
A autora escreve de acordo com o AO de 1990
[1] Dados obtidos em www.pordata.pt a 12-02-2019.
[2] Merle, Philippe (2000). Le concept de démocratisation de l'institution scolaire: une typologie et sa mise à l'épreuve. Population, 55 (1), pp. 15–50.
[3] Costa, J. A., Neto-Mendes, A., & Ventura, A. (2013). Xplika Internacional: panorâmica sobre o mercado das explicações. Aveiro: UA Editora.
[4] Bourdieu, P. (1979). La distinction. Critique sociale du jugement. Paris: Minuit.