Morreu o actor Bruno Ganz, o anjo das almas perdidas de As Asas do Desejo
O actor de 77 anos notabilizou-se como o anjo Damiel do filme de Wim Wenders, e, mais recentemente, como o Hitler de A Queda. Teve uma carreira recheada no cinema sem nunca deixar o teatro. Tudo o que queria, dizia, era uma história que fosse capaz de o irritar ou seduzir.
Homem de teatro e de cinema que ficará para sempre ligado a dois filmes que estão presos aos dias do fim — os da Berlim separada pelo muro, os da Alemanha do III Reich — Bruno Ganz morreu este sábado, aos 77 anos. A notícia foi avançada ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung pela sua agente, Patricia Baumbauer, que precisou que o actor suíço recebera um diagnóstico de cancro no cólon no Verão passado, quando estava a trabalhar no Festival de Salzburgo.
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Homem de teatro e de cinema que ficará para sempre ligado a dois filmes que estão presos aos dias do fim — os da Berlim separada pelo muro, os da Alemanha do III Reich — Bruno Ganz morreu este sábado, aos 77 anos. A notícia foi avançada ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung pela sua agente, Patricia Baumbauer, que precisou que o actor suíço recebera um diagnóstico de cancro no cólon no Verão passado, quando estava a trabalhar no Festival de Salzburgo.
Embora o seu papel de maior notoriedade nos últimos 15 anos tenha sido o de Hitler em A Queda (2004), um filme de Oliver Hirschbiegel que nos mostra os últimos 12 dias da vida do ditador, participou em dezenas de outras produções cinematográficas e teatrais.
Recorde-se que Ganz fez parte do elenco de As Asas do Desejo (1987), obra de Wim Wenders que se transformou num paradigma da Berlim dividida. Era ele o anjo que velava pelas almas perdidas neste filme que marca o regresso do cineasta à Alemanha, depois das doçuras e das dores do périplo americano (Hammett, de 1982, e Paris, Texas, de 1984) e até da incursão portuguesa (O Estado das Coisas, 1982), para, colaborando com Peter Handke, se instalar na ferida europeia: Berlim e o Muro. E Wenders fá-lo, em boa parte, recorrendo à máscara de melancolia de Ganz — o anjo Damiel, que viu tudo do alto mas nunca experimentou nada cá em baixo e anseia pela queda no mundo — como veículo elegíaco e redentor.
Humanizar um monstro
Em A Queda, quase 20 anos depois, Bruno Ganz volta a emprestar a expressividade do seu rosto, do seu corpo, a uma figura que oscila entre a contenção e a raiva descontrolada, exuberante — Hitler.
À data da estreia deste filme, Joachim Fest, autor de uma das mais relevantes biografias de Hitler, publicada em 1973, esteve entre os que teceram grandes elogios ao trabalho do actor suíço, ao reconhecer que conseguira transmitir na perfeição a personalidade do ditador. “É realmente Hitler”, disse na altura este biógrafo que morreu em 2006. “Quando o vemos, sentimos calafrios.”
A Queda adapta alguns dos capítulos do livro Inside Hitler´s Bunker: The Last Days of the Third Reich, de Fest, capítulos esses que se baseiam nas anotações da última secretária pessoal de Hitler, Traudl Junge, que descreve os dias do fim no bunker de Berlim, em 1945.
O filme que fez 82 milhões de euros nas bilheteiras, segundo a britânica BBC, foi contestado, e elogiado, muitas vezes pelo mesmo motivo — por ter contribuído, de certa forma, para a humanização de um monstro.
Aos jornais, como o inglês The Guardian, o actor disse ter passado largos meses a preparar-se para o papel, estudando gravações históricas de Hitler e observando pessoas com a doença de Parkinson que, acreditava, o ditador tinha.
“Não posso dizer que compreendo Hitler”, afirmou Ganz ao diário britânico em 2005, “nem mesmo as testemunhas que estiveram no bunker com ele são capazes de o descrever na sua essência. Ele não tinha qualquer piedade ou compaixão, não tinha entendimento algum do que sofriam as vítimas da guerra”.
O teatro sempre
Nascido em Zurique, em 1941, filho de um mecânico suíço e de uma italiana do Norte, Ganz deixou-se conquistar pelo palco quando, ainda muito jovem, um amigo que era técnico de luzes de um teatro local passou a deixá-lo assistir às produções.
Talvez por isso, e contra a vontade da família, tenha dado início à sua carreira no teatro, passando depois a trabalhar também na televisão e no cinema, onde começou por se notabilizar em A Marquesa d'O, de Eric Rohmer (1976), primeiro marco internacional num percurso que o levou a colaborar com importantes realizadores: o já referido Wim Wenders (O Amigo Americano, As Asas do Desejo e Tão Longe, Tão Perto), Werner Herzog (Nosferatu, O Fantasma da Noite), Theo Angelopoulos (A Eternidade e Um Dia), Francis Ford Coppola (Uma Segunda Juventude) ou Jonathan Demme (O Candidato da Verdade).
O actor, que visitava Portugal com alguma regularidade, foi também protagonista de A Cidade Branca, que rodou em Lisboa, no início da década de 1980, contracenando com a actriz Teresa Madruga. Neste filme, o cineasta suíço Alain Tanner trabalhou a imagem poética de uma Lisboa perdida no tempo, precisamente na altura em que os festivais internacionais começavam a descobrir maravilhados uma cinematografia que parecia uma ilha encantada.
Havia uma imperscrutabilidade no muitas vezes silencioso Ganz — veja-se O Amigo Americano, A Marquesa d'O ou o marinheiro de A Cidade Branca — que, nesses filmes de Wenders, Rohmer ou Tanner era um centro de gravidade. Ou mesmo a experiência possível do mundo.
Entre os trabalhos mais recentes de Bruno Ganz estão, para além de A Queda, Comboio Nocturno Para Lisboa, de Bille August, Remember, de Atom Egoyan, Amnésia, de Barbet Schroeder, e The Witness, de Mitko Panov.
Em 2015, e a propósito de uma retrospectiva da obra de Wenders, foi um dos convidados especiais do Lisbon & Estoril Film Festival (LEFFEST), um festival criado e dirigido por Paulo Branco, produtor com quem trabalhou diversas vezes.
Apesar da intensa carreira no cinema, Ganz nunca deixou o teatro (apresentou-se, inclusive, na Culturgest, em Lisboa, e no Festival de Almada). Do seu currículo de palco fazem parte peças de Shakespeare, Ibsen e Brecht, e colaborações com encenadores como Luc Bondy e Peter Stein, tendo fundado com este último, logo em 1962, uma das companhias teatrais mais relevantes da Europa do século XX, a Schaubühne, em Berlim.
Cinema sim, mas não sem o teatro. Não é por acaso que na lista dos prémios que recebeu estão o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno e o Anel Iffland, atribuído há mais de 200 anos ao maior actor de teatro em língua alemã. Este anel é vitalício e é o seu dono que determina a quem o deixa depois da sua morte. Ganz recebeu-o em 1996 por herança do austríaco Josef Meinrad e a imprensa pergunta-se já quem o actor suíço terá escolhido para seu sucessor.
Radgund, filme de Terrence Malick que está ainda em pós-produção, foi um dos seus últimos trabalhos.
“Os guiões têm de me agarrar, de me irritar, de me seduzir”, dizia o actor que permaneceu muito reservado até ao fim e que gostava de emprestar a sua voz à poesia de TS Eliot e Hölderlin. “Não quero repetir-me nos meus papéis.”
Reacções em Berlim
Em Berlim, as reacções não se fizeram esperar – a morte de Ganz faz as “manchetes” dos sites dos principais jornais e ensombra o encerramento da Berlinale, cuja cerimónia de entrega de prémios decorre esta noite. No depoimento oficial do director cessante Dieter Kosslick, Ganz “está agora verdadeiramente nos céus de Berlim”.
Como figura importante no teatro berlinense da década de 1970, a sua perda foi muito lamentada pelo presidente da câmara, Michael Mayer, e pela ministra da cultura Monika Grütters, para quem Ganz foi “um ícone do teatro em língua alemã e um conhecedor extraordinário da arte internacional da representação".
O actor Ulrich Matthes, actual presidente da Academia Alemã de Cinema, que contracenou com Ganz em A Queda (no papel de Goebbels) declarou-se “transtornado e muito triste" com a morte do seu "grande, mesmo o maior colega.” E deixou um pedido: “Por favor, vão ao YouTube e ouçam Bruno Ganz a ler Diotima de Friedrich Hölderlin.” Fica a proposta.
Notícia actualizada às 16h10 para acrescentar as reacções de Berlim