Peritos recomendam que violação se defina pela “ausência do livre consentimento da vítima”

Comité recomenda revisão dos crimes sexuais no Código Penal. Assédio sexual também não está devidamente caracterizado. Governo planeia abrir em Braga terceiro serviço especializado em violência sexual.

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São várias as recomendações feitas a Portugal para reforço dos direitos das mulheres Nuno Ferreira Santos

O relatório do comité GREVIO, o grupo de peritos em violência doméstica e de género que avaliou a aplicação da Convenção de Istambul, apela às autoridades portuguesas que “corrijam a legislação criminal sobre crimes sexuais para garantir que essas ofensas sejam baseadas na ausência do livre consentimento da vítima”.

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O relatório do comité GREVIO, o grupo de peritos em violência doméstica e de género que avaliou a aplicação da Convenção de Istambul, apela às autoridades portuguesas que “corrijam a legislação criminal sobre crimes sexuais para garantir que essas ofensas sejam baseadas na ausência do livre consentimento da vítima”.

Os peritos recomendam ainda que a definição de assédio sexual — que no Código Penal está coberto, em parte, através do crime de importunação sexual — seja revista, de forma a adequar-se aos objectivos da Convenção de Istambul: punir “condutas de natureza sexual indesejadas pela vítima”, independentemente de constituírem comportamento “exibicionista” ou uma “proposta” sexual.

O comité refere que as alterações à lei em 2015, ainda que com o objectivo de aproximar a lei portuguesa do espírito da Convenção de Istambul, “não retiraram em definitivo o requisito do uso da força” no crime de violação, já que permanece o uso do verbo “constranger”. “O GREVIO considera que esta formulação não é suficiente para quebrar definitivamente com a prática de longa data dos tribunais portugueses de exigirem provas da resistência da vítima para que o agressor seja condenado”, e confia que a revisão das definições destes crimes na lei, retirando a necessidade de provar o uso de força, irá ajudar a ultrapassar as dificuldades que muitas vítimas encontram nos tribunais.

O comité condena ainda as narrativas estereotipadas que insinuam que as mulheres que denunciam crimes sexuais ou violência doméstica mentem com alguma frequência — situações que os estudos mostram ser residuais, para além de não serem mais frequentes entre mulheres ou sequer do que em outros crimes sem marca de género — e urge ainda as autoridades portuguesas a tomarem medidas para evitar que nos processos judiciais sejam utilizadas “evidências sem valor probatório relacionadas com o historial sexual e a conduta das vítimas”, como aconteceu no caso do acórdão da “sedução mútua”.

Parlamento debate projectos

Violência, constrangimento, consentimento, “não consentimento” são expressões que estão neste momento na agenda do Parlamento, onde tramitam duas propostas de alteração à lei que criminaliza os crimes sexuais. PAN e Bloco de Esquerda pretendem traduzir de forma mais explícita o entendimento da Convenção de Istambul para o Código Penal. Os projectos baixaram à especialidade na semana passada, sem serem votados em plenário, depois de vários partidos terem manifestado reservas em relação às alterações propostas. O PS garantiu que iria apresentar uma proposta em breve. No âmbito desse processo, aliás, o Parlamento recebeu esta semana uma análise da PGR, um dos pareceres pedidos pela relatora do projecto, Isabel Moreira, em procedimento técnico da primeira comissão. 

O Governo reconheceu, no ano passado, que é necessário alterar a lei, mas não deu prazos para apresentar a proposta.

Mais centros de apoio

Também o apoio às vítimas é referido no relatório como uma prioridade de actuação. Antes de mais, é citada uma contestação, por parte das ONG, de que a própria tradução da Convenção de Istambul está feita de forma a mesclar dois conceitos que surgem separados na versão inglesa: os centros de referência, que devem prover cuidados médicos com profissionais especializados e o exame para recolha de provas forenses (e que podem estar integrados em hospitais), e os centros de crise, que possam fornecer um acompanhamento de longo prazo, como apoio psicológico.

O comité “encoraja veementemente” as autoridades portuguesas a desenvolverem centros de crise para vítimas de violação e/ou centros de referência — relembrando que a recomendação do Conselho da Europa é haver um centro de crise para cada 200 mil mulheres (ou seja, mais de 20 para a população portuguesa) —, garantindo que estão distribuídos pelo país de forma a chegar a vítimas no interior e em áreas rurais.

Neste momento, Portugal tem dois centros de apoio especializado para mulheres vítimas de violência sexual: o centro de crise da Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV), em Lisboa, o único em funcionamento na altura da visita do GREVIO, e o projecto Emancipação, Igualdade e Recuperação (EIR) da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), no Porto, que arrancou em Julho do ano passado. De acordo com o relatório, o Governo planeia abrir uma terceira resposta especializada em Braga.