Tunísia: Oito anos à espera da revolução social
Esta segunda-feira celebram-se oito anos da queda do regime e a “excepção tunisina” ainda é real. Mas se Ben Ali acabou, o sistema “clientelista” não. Os excluídos da mudança são os de sempre, os tunisinos do interior rural, como Bouazizi. “Vou incendiar-me pelos que não têm meios de subsistência”, anunciou Zorgui a 24 de Dezembro.
Janeiro é o mês dos protestos na Tunísia – historicamente tem sido, assim continuou desde que as manifestações de 2011, desencadeadas pela imolação pelo fogo de um vendedor ambulante, derrubaram em 29 dias 23 anos de ditadura e deixaram o resto do mundo árabe a querer o mesmo. Sem violência política, sem guerra civil, veio a democracia.
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Janeiro é o mês dos protestos na Tunísia – historicamente tem sido, assim continuou desde que as manifestações de 2011, desencadeadas pela imolação pelo fogo de um vendedor ambulante, derrubaram em 29 dias 23 anos de ditadura e deixaram o resto do mundo árabe a querer o mesmo. Sem violência política, sem guerra civil, veio a democracia.
O que foi não volta a ser, mas o que o povo pedia há oito anos, a par da “queda do regime”, mais igualdade, menos miséria, está por concretizar. A classe política está desacreditada, por isso e pelas próprias querelas, e grande parte do que os tunisinos conseguiram está em risco.
“Hoje em dia, temos a impressão que a Tunísia está adiada porque o parêntesis da Primavera Árabe voltou a fechar-se. Continua a ser a única sobrevivente”, diz um dos analistas mais respeitados no país, Michaël Ayari, do think tank International Crisis Group. “Mas a democracia deixou de ser analisada como um princípio superior comum e passou a ser vista em termos de utilidade”, explica Ayari, ouvido pelo site Le Point Afrique, da revista francesa Le Point para a África francófona.
Cada vez mais tunisinos começam a deixar de ver a democracia como útil. Falta a transformação social e económica e isso desespera. Entre os jovens do interior, incluindo os licenciados, o desemprego oficial chega aos 25%.
Mohamed Bouazizi, o vendedor ambulante de Sidi Bouzid, começou a escrever a história das revoltas árabes de 2011 a 17 de Dezembro de 2010, quando se imolou depois de ser expulso da rua em que vendia vegetais pela Polícia Municipal. Sidi Bouzid é um pontinho minúsculo no mapa, mesmo ali no centro do país, interior e abandonado desde o século XIX por líderes que sempre beneficiaram o litoral e os lucros que este oferece.
Kasserine, cidade ainda mais interior, 270 quilómetros a sudoeste da capital, Tunes, saiu à rua em peso na resposta à faísca lançada por Bouazizi, símbolo da distância entre um regime cada vez mais cego e surdo às necessidades dos seus cidadãos, desvairado pela cleptomania familiar que arruinou o Estado. Ali caíram 14 “mártires” nas semanas em que a polícia aceitou disparar a matar às ordens de Zine el Abidine Ben Ali. A mesma Kasserine que em Dezembro foi cenário de dois dias de confrontos entre habitantes e as forças de segurança, sintoma do impasse social da revolução, com uma crise política como pano de fundo.
“Hoje decidi pôr uma revolução em movimento, pelos que não têm meios de subsistência. Em Kasserine há pessoas a morrer de fome. Porquê? Não somos humanos? Somos pessoas, como vocês. Os desempregados de Kasserine, os que não têm nada para comer”, disse, sem deixar de olhar para a câmara do seu telemóvel, Abderrazak Zorgui, jornalista freelance de 32 anos, cabelo castanho curto e barba rala.
Depois, ergueu uma garrafa transparente: “Aqui está a gasolina. Vou incendiar-me em 20 minutos”, afirmou, num vídeo transmitido ao vivo no YouTube. “Quem quiser apoiar-me será bem-vindo. Vou protestar sozinho. Vou imolar-me pelo fogo e se pelo menos uma pessoa conseguir um emprego por minha causa ficarei satisfeito.” Era véspera de Natal e as chamas foram rápidas a consumir-lhe o corpo. Antes, disse ainda: “Há oito anos que esperamos”.
Ritual de imolações
Zorgui chamou a atenção com o seu gesto num país em que o ritual das imolações enquanto actos políticos não parou desde Bouazizi. Mais de 2000 tunisinos e tunisinas tentaram, confirmam diferentes centros de estudo e associações como a Al-Bawsala, organização não-governamental fundada para “reposicionar os cidadãos no centro da actividade política”. Pelo menos 300 conseguiram ir até ao fim.
Para alguns dos que têm acompanhado a experiência democrática na Tunísia onde, no essencial, a transição ficou feita com as eleições de 2014, terminada a etapa da Constituição e da garantia das liberdades, o que começou há oito anos não foi uma só revolução mas duas, sobrepostas. A urbana, com o envolvimento das classes médias e altas, foi um sucesso ao expulsar do poder um ditador corrupto e as duas famílias (a de Ben Ali e os Trebalsi, de Leila, a sua mulher) que mantinham o país refém. Falta saber para onde caminha a primeira, a das classes trabalhadoras do interior rural.
É o que pensa William Lawrence, especialista em Norte de África da Universidade George Washington. “A auto-imolação de Zorgui uniu os dois conjuntos de aspirações revolucionárias, o que se prende com os salários dos profissionais e a liberdade de expressão, e o outro, o da sobrevivência nas condições miseráveis da economia adiada do pós-revolução”, descreve, citado num artigo escrito na New Yorker por Robin Wright, a veterana jornalista e analista, autora de obras como Rock the Casbah: Rage and Rebellion Across the Islamic World.
“A Tunísia não está a enfrentar os seus profundos problemas estruturais nem as principais causas da revolução, entretanto agravadas na sequência da própria revolução”, sentencia Lawrence.
União nacional
A originalidade da experiência de diálogo nacional – e depois Governo de união nacional – funcionou em 2013, travando a crise instalada com o assassínio de dois políticos da oposição laica e nacionalista de esquerda. Salvou-se a revolução e começou a destruir-se a política. Preveniu-se o pior, com os islamistas moderados do Ennahda (que depois de vencerem as eleições se afastaram do poder para dar lugar ao governo de transição que precedeu o de união nacional) a cederem mas matou-se a oposição.
Com o desespero, entre 3000 e 6000 tunisinos juntaram-se ao Daesh nos últimos anos e o terrorismo fez grande mossa no turismo.
Tudo se agravou no último ano, com a guerra no interior do Nidaa Tounès (Apelo da Tunísia, um dos dois pilares da coligação no poder, com o Ennahda), entre os apoiantes do Presidente, Béji Caïd Essebsi (ex-ministro do pai da independência, Habib Bourguiba, e antigo primeiro-ministro de Ben Ali), e os do primeiro-ministro, Youssef Chahed, que o primeiro tentou derrubar. As eleições que deverão realizar-se no fim deste ano alimentam as batalhas de poder dentro dos partidos e entre estes.
Há um ano, como sempre em Janeiro, os protestos despontaram em reacção à austeridade, com a nova Lei das Finanças que aumentou a gasolina, os carregamentos telefónicos, as rendas, a internet e alimentos como frutas e vegetais, assim como os impostos de alguns produtos agrícolas.
A Frente Popular, aliança de esquerda, apelou a manifestações permanentes. Chahed denunciou a violência dos protestos, pediu calma e garantiu que o seu Governo acreditava que 2018 “será o último ano difícil para os tunisinos”. Depois de gritarem “o povo quer a queda do Orçamento” (como tinham gritado “o povo quer a queda do regime" em 2011), os tunisinos voltaram para casa. Mas as dificuldades continuam e a falta de colaboração interministerial mais as disputas permanentes não só desacreditaram o conjunto da classe política aos olhos de muitos como paralisaram a acção governativa.
O sistema ficou
Actualmente, há uma nova “rede de favoritismos” e o sistema (Ben Ali acabou, o sistema ficou) “clientelista” está de boa saúde, com “as pessoas excluídas de acordo com as suas origens socio-regionais das redes de favores, esmagadas pelas decisões de um Estado que percepcionam como arbitrário”, não ao serviço do bem comum, resume Ayari, do International Crisis Group. “O problema não era Ben Ali, as lógicas clientelistas ficaram e os mercenários de uns e outros fazem de Ben Ali sem Ben Ali.”
Ao impasse dos políticos e à lentidão das reformas junta-se a desvalorização do dinar que, em vez de favorecer as exportações tunisinas, “como imaginaram alguns economistas, contribuiu para uma enorme subida da inflação”. Perante todos os desafios, continua Ayari, “há uma luta entre a lógica política dos eleitos e a lógica tecnocrata, com o regresso à ideia de que o poder deve estar nas mãos de quem tem sentido de Estado, contra eleitos incompetentes e corrompidos”.
A corrupção não está por todo o lado, como injustamente se pensa, mas a ideia propaga-se e cada vez menos tunisinos temem o regresso de um Governo forte com concentração do poder.
O Ennahda e a democracia
O problema, recorda Ayari, é o mesmo de 2011: com eleições verdadeiramente livres e democráticas a vitória caberá sempre ao Ennahda, formado por islamistas crescentemente “liberais e aburguesados”, onde cabem mesmo membros do antigo regime. E o Ennahda vive nessa contradição insanável de querer o poder sabendo que se encontra à parte dos restantes partidos, no sentido em que o seu crescimento assusta uma parte considerável da população e pode provocar um contragolpe, pelo que deverá continuar a contentar-se com uns 30% de votos (não apresentando candidatos suficientes para os ultrapassar).
Na região, sublinha o analista do International Crisis Group, “quem quer encerrar definitivamente o parêntesis da Primavera Árabe são os Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita [que apoiam e financiam o que sobre do regime, como o Nidaa Tounès]; eles consideram que é preciso enfraquecer, de preferência aniquilar, todos os partidos inspirados pela Irmandade Muçulmana”. A serem bem-sucedidos, “isso significaria o fim da democracia”.
Esta segunda-feira celebram-se oito anos da queda de Ben Ali e a “excepção tunisina” ainda é real. Mas o dia não será de festa, mesmo porque desde Zorgui outros tentaram ou conseguiram morrer do mesmo modo. O dia será, em vez disso, de protestos, “uma vaga que não vai ameaçar o establishment, como em 2011”, diz Lawrence, mas que “é um presságio do que espera a Tunísia se a situação socioeconómica não melhorar”.