Os monarcas “faziam grandes sacrifícios. Os mais novos não estão para isso”
José Bouza Serrano, antigo chefe do Protocolo do Estado português, considera, em As Famílias Reais dos Nossos Dias, que os casamentos morganáticos podem eventualmente pôr em causa o papel dos monarcas.
Na Europa já só restam dez monarquias, tantas quantos os capítulos do mais recente livro de José de Bouza Serrano. Em As Famílias Reais dos Nossos Dias, o diplomata português olha para cada uma destas casas reais, analisando a origem dos respectivos monarcas, com uma premissa em mente: que estão todos mal casados. Pelo menos, segundo o Almanach de Gotha, um documento que ordena os membros da realeza europeia.
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Na Europa já só restam dez monarquias, tantas quantos os capítulos do mais recente livro de José de Bouza Serrano. Em As Famílias Reais dos Nossos Dias, o diplomata português olha para cada uma destas casas reais, analisando a origem dos respectivos monarcas, com uma premissa em mente: que estão todos mal casados. Pelo menos, segundo o Almanach de Gotha, um documento que ordena os membros da realeza europeia.
Se até há poucas décadas um casamento morganático (entre pessoas dentro e fora da monarquia) impedia a ascensão ao trono (veja-se a crise de abdicação de Eduardo VIII ao casar-se com a norte-americana Wallis Simpson), hoje a maioria dos monarcas reinantes e príncipes herdeiros estão casados com pessoas fora da realeza e até de outros países. Exceptua-se o principado do Liechtenstein, cujo príncipe herdeiro Alois está casado com Sofia da Baviera, herdeira directa de Luís III, último monarca reinante na Baviera.
Bouza Serrano questiona qual o significado que a monarquia terá no futuro para os cidadãos comuns: “Será que, em determinado momento, não se interrogarão sobre para que serve a monarquia se os soberanos são idênticos a eles?”
Tendo passado por várias embaixadas, sempre em países monárquicos, Bouza Serrano foi também chefe do Protocolo do Estado, servindo actualmente como inspector-geral da Inspecção-Geral Diplomática e Consular do Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Sou um monárquico que serve a República. Não escondo. Mas o meu serviço está primeiro, porque sou funcionário público há muitos anos”, afirma. Olha para a monarquia “como se fosse uma reserva”, pois “um dia que a República falhe, há sempre aonde ir buscar [um governante]”, brinca.
O que o motivou a escrever sobre este tema?
O meu último posto foi na Holanda. Estava a representar Portugal na entronização do rei Guilherme Alexandre e da rainha Máxima. O único chefe de Estado que estava era Alberto do Mónaco, mas [Guilherme Alexandre] convidou todas as pessoas reinantes da geração dele. Não os reis efectivos, mas os príncipes herdeiros, como ele próprio tinha sido [a rainha Beatriz abdicou da coroa em 2013]. No fundo, eles são todos parentes entre si, são todos primos. Olhando para aquelas pessoas reais, havia uma coisa que ressaltava: estavam todos casados com plebeias ou com pessoas com quem era impossível antigamente casarem-se. Isto levou-me a pensar sobre como mudou o paradigma dos casamentos reais.
No livro, avisa que a monarquia deve modernizar-se, mas nunca vulgarizar-se. Onde está essa fronteira?
Tem que ver com o nascimento. Quando se nasce dentro daquela endogamia que é uma família real, é-se educado exactamente da mesma maneira. Existe uma fórmula que é aplicada a todos. Só tive postos na Europa em monarquias e era como se fosse visitar os primos. Reconhecíamos coisas de uns nos outros — não só as feições, mas a atitude e a maneira de estar na vida. Hoje em dia, realmente, estão todos mal casados, no sentido que não se casaram com monarcas, mas tem funcionado porque os que chegaram são pessoas inteligentes e aprenderam depressa. Há gente que tem carisma, por exemplo a rainha Máxima. Os holandeses gostam muito dela, considero que é a mais popular.
Que consequências vê nestes matrimónios?
Uma pessoa que não esteja formatada naqueles termos tem mais dificuldade e acaba por cometer uma série de gafes. As pessoas antigamente eram treinadas para uma grande disciplina pessoal e para a simplicidade. Estavam no topo, mas tinham de estar próximos dos que estavam em baixo. Nas famílias reais, casava-se entre parentes, primos. E o seu futuro era ocupar o trono do seu país, ou noutro país que o fosse buscar para reinar. Na cultura burguesa vê-se o adultério de maneira diferente. A rainha Sofia de Espanha quantos adultérios aguentou? O príncipe Carlos dizia à Lady Di: “Achas que vou ser o único príncipe de Gales que não tem uma amante?” Porque eram coisas normais na realeza, que eram vistas como naturais (como era natural fazer caça grossa) para uma certa sociedade que foi desaparecendo.
Mas face aos valores de hoje, faz sentido ter essa expectativa?
Hoje em dia, as pessoas vêem o casamento de maneira diferente. Onde é que há uns anos se pensava que o futuro rei da Noruega se casaria com uma mãe solteira, que se drogava e tinha um passado tremendo? Ou o futuro rei de Espanha casar-se com uma jornalista divorciada e republicana? Eram coisas impensáveis. Faziam-se grandes sacrifícios. Hoje os mais novos não estão para isso.
É difícil esperar um certo nível de sacrifício na realeza?
Claro que sim. Presidentes da República são eleitos, já um rei ou um príncipe está toda a vida neste cargo. Há um sacrifício, há uma grande dedicação ao país. Identificam-se com a história do país, mas não podem ter posições políticas. Por exemplo, a rainha de Inglaterra não pode expressar opiniões políticas porque é a rainha de todos, da Commonwealth. É difícil. A Casa de Windsor, com as suas dificuldades, tem superado tudo. Isso demonstra a mudança de paradigma. Claro que terão as suas convicções, como às vezes o príncipe de Gales tem. Quando for rei, não vai falar disso.
No livro fala sobre a enorme popularidade, por exemplo, da monarquia britânica. Ao mesmo tempo, lança a questão sobre se, a longo prazo, as pessoas se interrogarão sobre qual a lógica da monarquia, quando os soberanos são pessoas comuns. Acha então que se trata de uma adaptação que contribui para a imagem da monarquia ou uma sentença a longo prazo?
Não sabemos, depende dos protagonistas. Até agora tem funcionado. Por exemplo, Mette-Marit e o príncipe herdeiro Hakoon estão casados há 17 anos, têm dois filhos. Pouco a pouco têm sabido conquistar os seus súbditos. Continuarão ou as pessoas pensarão “para que é que vou fazer uma vénia a esta senhora que tem um trabalho para toda a vida?”. Numa sociedade igualitária, cada um tem de fazer por si, porque é que havemos de ter pessoas acima do estatuto normal e fazer-lhe vénias e cortesias, se não sacrificam o suficiente para se casar dentro da sua classe? No fundo, as pessoas acabam por aceitar que um rei seja diferente e que esteja acima delas, porque se revêem nele, na história do seu país, na dinastia — o que os seus antepassados fizeram pela terra onde estão. Tudo isso é importante. É o que nos faz aqui em Portugal ter respeito pela Casa de Bragança: temos oito séculos de monarquia e só temos cem de República.
Sente que existe respeito pela Casa de Bragança?
As pessoas que os conhecem sim, mas eles também são bastante desconhecidos. Há muita gente que não se lembra de que temos uma casa real e que os seus membros estão inteiramente dedicados ao país.
Qual é o seu papel?
É manterem viva a ideia de Portugal, estarem sempre disponíveis para servir o seu país. E eles interessam-se. Os filhos também querem estar disponíveis para o que for necessário. Seguem a vida cultural e política do país, sempre discretos, mas sempre disponíveis para o que seja preciso. Essa disponibilidade é boa.
Em termos de diplomacia têm algum papel?
São reconhecidos pelos seus parentes, portanto vão a todas as cerimónias para as quais são convidados. Há muito sangue de Bragança por essa Europa fora. Sobretudo os netos e filhos casaram muito bem em várias cortes europeias. O Presidente da República tem-nos convidado para banquetes de Estado e senta-os bem à mesa. É uma precedência de cortesia, pois não têm lugar nas precedências, porque o protocolo não considerou nem o duque de Bragança nem o patriarca de Lisboa.
Que significado têm as monarquias europeias hoje em dia e como mudaram desde o século passado?
Há um momento de charneira: a primeira grande machadada nas monarquias é dada na Primeira Guerra. Com a Segunda Guerra todos aqueles reinos e países passam a ter outra composição e sobreviveram dez monarquias. Estão activas, com os seus problemas, mas todas representadas por uma família real que os seus povos apreciam. Correspondem a países com sistemas democráticos sólidos.
Considera que alguma delas ficou mais forte, pelo menos em termos de apoio popular?
Houve várias, até pelo papel dos seus soberanos. Os reis têm essa grande capacidade, porque são educados para servir, mesmo em países que não são os seus — como a rainha Sofia [natural da Grécia]: ela é uma rainha de Espanha, sente Espanha como o seu país verdadeiro. Essa é uma capacidade que um Presidente da República não tem, porque está limitado à sua própria história pessoal.
Os casamentos com estrangeiros têm impacto na aliança entre países?
Para os argentinos, é muito bom terem o Messi no futebol, o Papa no Vaticano e terem uma rainha na Holanda. Agora, não é uma coisa que estimule as relações entre o Vaticano e a Argentina ou entre a Holanda e a Argentina. Depois depende de quem estiver ao leme dos governos respectivos. Os americanos gostavam de Grace Kelly, que contribuiu para tornar o Mónaco superpopular. Um país que estava arruinado. Os casamentos podem ter influência nas economias. Só as memorabilia de Meghan Markle valem milhões. Se tem impacto na economia, acaba por ter impacto nas relações políticas.
Qual é o verdadeiro poder que a monarquia tem?
É o simbolismo, a pegada cultural e histórica de um país. Há 300 anos eram os mesmos, há 500 também. No momento em que os políticos são corruptos, dizem uma coisa nas eleições e depois não fazem o que prometem, [as pessoas] precisam de uma referência que seja estática. Acho que esse é que é o verdadeiro poder da monarquia: eles estão ali para servir o seu povo. Claro que são humanos como nós e também cometem os seus erros, mas de uma maneira geral tentam não ser corruptos. Um Presidente da República está os tais quatro ou cinco anos e depois vai-se embora. Um rei ou uma rainha são escrutinados todos os dias, mas o seu papel é mesmo esse: dar ânimo às pessoas e a transcendência histórica que tem uma família real. Dá uma certa estabilidade emocional.
No livro refere que a monarquia espanhola atravessa momentos difíceis, mas que certamente irá ultrapassá-los. Como?
A confiança é no carisma do próprio rei, que não é nada Bourbon. Estou convencido de que conseguirá. Tem um caminho muito difícil. Enquanto havia dois partidos maioritários que se sucediam no governo, entre o PP e o PSOE, ambos aceitavam a monarquia, porque o rei [Juan Carlos] foi o que trouxe a democracia ao país. Agora, o fim dele não foi muito simpático. Também se cansou, houve uma série de escândalos e coisas que prejudicaram a monarquia. Foi por isso que se viu obrigado a abdicar. Imagine que agora há eleições e o Podemos ganha ou os partidos que estão na esfera republicana pedem um referendo...
Porque mantém então a confiança?
Tem que ver com Felipe e com a própria Letizia — se bem que seja muito contestada. Irá fazer com certeza tudo para salvar a coroa, a dinastia, e ver a filha [coroada] rainha.
O que terá feito a monarquia do Reino Unido tão popular?
A própria rainha. É a resposta para tudo isso. Houve uma ou duas vezes em que fraquejou: naquela altura da Lady Di teve momentos muito difíceis, o annus horribilis [1992], quando ardeu o Palácio de Windsor e se divorciaram os filhos todos, mas conseguiu dar a volta, porque os Windsor têm a capacidade de se renovar. E depois aquela pompa e circunstância em que tudo é revestido dá-lhes muita popularidade. Fá-los diferentes, distantes. E eles tentam ser próximos. [A rainha], com tantos anos, acaba por ser a avó de todos, cumpre o seu papel magistralmente. Depois tem aqueles netos que também são populares e ela tem explorado isso. As pessoas querem continuar com a monarquia na Grã-Bretanha.