Ministério Público, o que está em causa
Em assuntos fulcrais de orgânica institucional, o critério da influência sindical não pode dominar acima do critério da autoridade democrática.
A mais recente controvérsia sobre a composição do Conselho Superior do Ministério Público só de modo muito limitado ajudou a fazer alguma luz sobre o que de relevante pode estar em causa com a revisão geral do respetivo estatuto.
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A mais recente controvérsia sobre a composição do Conselho Superior do Ministério Público só de modo muito limitado ajudou a fazer alguma luz sobre o que de relevante pode estar em causa com a revisão geral do respetivo estatuto.
Por mim, desejo contribuir para uma reflexão sobre a natureza do MP e as exigências de legalidade que o devem estruturar, com preocupação de rigor crítico e sem concessão a pressões ou condicionalismos de circunstância. A isso aconselha a relevância da instituição no quadro do sistema judiciário e a oportunidade de aperfeiçoamento do seu funcionamento na vivência do estado de direito.
Segundo a Constituição, o MP dispõe de autonomia, nos termos da lei, e os seus magistrados são responsáveis e hierarquicamente subordinados. A Procuradoria-Geral da República é o órgão superior do MP e o seu Conselho Superior integra eleitos pela Assembleia da República e eleitos de entre os magistrados, competindo à lei definir a composição global.
Comecemos, pois, pelo que conta: autonomia do MP, subordinação hierárquica e responsabilidade dos magistrados, todos princípios com dignidade constitucional.
Garantir a autonomia implica fazer prevalecer – a meu ver bem – o consenso favorável a uma maioria de magistrados na composição do Conselho.
É assim adequado que se recusem opções conducentes a uma expressão maioritária de elementos estranhos à magistratura. Do total de 19 elementos, 12 deles, incluindo hoje o procurador-geral que preside, são magistrados, sete dos quais eleitos internamente e quatro por inerência de funções dirigentes. Além destes 12, os restantes sete membros são designados pelo poder político, cinco eleitos pela AR e dois indicados pelo Governo.
Face à presente composição cabe perguntar se ela satisfaz da melhor maneira o desejável equilíbrio entre os mencionados princípios da autonomia, da hierarquia e da responsabilidade. Ou se melhor esse equilíbrio se realizaria assegurando uma paridade democrática entre o número dos eleitos de fora e o dos eleitos de dentro (como sugere a Constituição), fazendo acrescer, como agora, os magistrados inerentes da função dirigente e submetendo os restantes dois elementos a indicação pelo próprio PGR, equilibrando também desta forma os indigitados pelo governo, sempre com a garantia legal do resultado assegurar uma maioria de magistrados na composição final.
Tal composição conciliaria, de pleno, os princípios constitucionais atinentes ao MP, garantiria a representatividade democrática e a coesão interna e impediria tanto os riscos de ingerência política quanto os da instrumentalização corporativa. Cumpriria igualmente as recomendações do Greco e do Conselho da Europa. Diga-me então, quem souber, que razões de estranha oportunidade poderão obstar a uma solução equilibrada deste tipo. Por mim sustento que em assuntos fulcrais de orgânica institucional o critério da influência sindical não pode dominar acima do critério da autoridade democrática. E tão pouco pode vincular opções que não são relativas à carreira profissional mas tipicamente de Estado.
Mais vastas, todavia, são as questões em aberto para um aperfeiçoamento efetivo do funcionamento do MP no quadro do estado de direito. Constam da Proposta de Lei do Governo ou são suscitadas por ela. A saber e em síntese:
– Qual a dimensão que deve ser dada à Procuradoria-Geral da República, como órgão superior do MP, para efeitos de autonomia administrativa e financeira, orçamento próprio e capacidade de auto dotação de efetivos, sem que se ponha em causa a coerência e o equilíbrio global do esforço de financiamento público tanto em relação ao MP no seu conjunto como em relação ao todo operativo do sistema judiciário e do sistema de investigação criminal;
– Quais as regras a que deve obedecer a coordenação, a direção e a fiscalização por parte do MP dos órgãos de polícia criminal que o coadjuvem, com consideração pelas regras vigentes da organização geral da investigação criminal e de autonomia técnica e tática das funções de polícia;
– Quais os critérios de controle de legalidade dos procedimentos de prevenção criminal desenvolvidos antes da abertura de inquérito e fora do processo, que não podem deixar de ser sindicáveis;
– Qual o grau de vinculação a estabelecer em relação às leis de orientação da política criminal, aprovadas nos termos constitucionais;
– Qual a estrutura de comunicação do MP com a sociedade em geral e os órgãos de comunicação social em particular;
– Qual a tipicidade de procedimento exigível ao MP no combate à violação do segredo de justiça;
– Qual a relevância institucional a estabelecer perante os órgãos de soberania no que respeita ao conhecimento e apreciação dos relatórios periódicos da atividade do MP.
Estas são, segundo creio, algumas das questões de relevo que merecem abordagens informadas, serenas e exigentes, em especial de um legislador que se preze da sua responsabilidade. Considero que para todas elas há uma resposta à altura do duplo imperativo de garantir a autonomia e a eficácia das missões do MP, mormente no combate ao crime, tanto quanto o da sua contribuição para o cumprimento da legalidade democrática e a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Preservar na cultura dos valores da democracia liberal é ainda a melhor resposta aos dilemas da sociedade em que vivemos.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico