Na Guiné-Bissau, a mutilação genital passou à clandestinidade

Em 2011, a Guiné-Bissau aprovou uma lei que criminaliza a mutilação genital feminina. A par da legislação, uma mudança de mentalidades, sobretudo entre a comunidade muçulmana, e a acção no terreno de várias organizações da sociedade civil têm feito descer a percentagem de raparigas com menos de 15 anos excisadas (ainda assim, eram 30%, em 2014). Até agora, mais de 400 comunidades anunciaram ter abandonado esta prática e fizeram-no em declarações públicas. Mas abandonaram mesmo? Uma viagem pelas regiões Norte, Centro e Leste da Guiné para tentar perceber o que mudou.

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Ivan Lieman / Barcroft Media via Getty Images

Quem acompanha o fenómeno da mutilação genital feminina, tem consciência da lentidão da mudança rumo à sua erradicação. Portanto, não é de estranhar que, em países onde essa mudança está em curso, surjam denúncias, aqui e ali, que apontam para a persistência desta prática. Como é o caso da Guiné-Bissau.

Porém, desde que o país adoptou uma lei que proíbe a excisão das mulheres, em 2011, a prática desapareceu do espaço público. As meninas e raparigas já não são mutiladas, pelo menos à vista de toda a gente. Já em sigilo, em espaços recatados, desconfia-se de que haja quem ainda o faça. E até em bebés, para não dar tanto nas vistas.

Ciente da “crescente dimensão social da excisão”, o Estado da Guiné-Bissau adoptou a Lei n.º 14/2011, que pune o crime de excisão feminina, “nas suas variadas formas”, com pena de prisão de dois a seis anos.

No prefácio do Guia dos Direitos Humanos e Género dedicado à lei, assinado pelo Ministério da Justiça da Guiné-Bissau e pelas Nações Unidas, recorda-se que a lei é o culminar de um “longo” e “árduo” processo de sensibilização, ao longo de duas décadas, que “contou com a participação de vários actores”.

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A mutilação genital afecta 200 milhões de mulheres e meninas Finbarr O'Reilly/REuters

As organizações da sociedade civil, apoiadas pela comunidade internacional, podem, justamente, reclamar vitória. O mesmo não se pode dizer dos políticos nacionais, avessos a tecerem considerações sobre um tema que lhes pode custar votos. A lei impõe a obrigatoriedade de denúncia, mas as autoridades locais policiais e judiciais temem represálias das comunidades onde vivem e trabalham.

Mais de 400 comunidades anunciaram ter abandonado a prática e fizeram-no em declarações públicas, com pompa e circunstância. Mas abandonaram mesmo? Com uma abordagem de duplo olhar — mulher portuguesa e homem guineense —, percorremos as cidades e as tabancas de Norte, Centro e Leste do país, num total de 800 quilómetros, para tentarmos perceber se a lei está a ser cumprida.

Bafatá e a “revolta” da comunidade

A viagem começa no Leste da Guiné-Bissau, zona com maior prevalência de mutilação genital feminina, dada a presença das etnias mais praticantes, como fulas, mandingas, biafadas, saracolés.

Estradas mais ou menos esburacadas, a cultura milenar do arroz espraiada por vastos terrenos pantanosos e férteis, a ponte sobre o rio salgado de Geba, abutres, que ali se chamam djugudés, e esvoaçam à passagem dos carros, um cartaz onde se lê que o “fanado di mindjer” não faz parte dos cinco pilares do islão (ao contrário da circuncisão masculina). Fanado é o nome crioulo para o ritual secular que, a pretexto de iniciar as meninas na idade adulta, inclui a ablação parcial dos seus órgãos genitais.

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No escritório da Plan International, saúde, saneamento básico e educação, nomeadamente a escolarização das meninas, são referidas como as principais preocupações da população da região de Bafatá. Ninguém duvida do “grande impacto” da lei, mas alertam para as resistências que persistem.

Um funcionário judicial que trabalha para a comunidade internacional, e que não pode ser identificado, confirma que já não se realizam rituais públicos, mas isso não quer dizer que a prática tenha desaparecido. Duvida da aplicação prática da lei e da genuinidade das muitas declarações públicas em que, com pompa e circunstância, as tabancas assumem o compromisso de abandonar a prática.

Os dois casos de prática posterior à criminalização julgados em Bafatá foram acompanhados com “revolta” pela população local, deixando claras as “bolsas de resistência” que consideram a lei de 2011 uma interferência do Estado na vida privada das famílias e comunidades guineenses. Poucos dias após a publicação da lei no Boletim Oficial (equivalente ao Diário da República), quatro fanatecas (excisadoras) de Bafatá submeteram à excisão outras tantas crianças, entre os dois e os quatro anos.

O crime foi denunciado e a polícia de Bafatá agiu, perante a forte pressão de activistas locais, liderada pela presidente do Comité Contra as Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança da Guiné-Bissau, Fatumata Djau Baldé, já munida com a força da lei.

As quatro fanatecas — duas alegadamente familiares de um respeitado chefe local — foram detidas, mas, devido à pressão de líderes religiosos, acabaram por ser libertadas dias depois. Literalmente com o Boletim Oficial na mão, que ia mostrando a quem lhe cruzasse o caminho, Fatumata Baldé mudou-se de Bissau para Bafatá “para melhor pressionar a polícia e a justiça” a aplicarem a lei.

Nos primeiros momentos após a criminalização da prática, até os jornalistas tinham medo de noticiar as denúncias dos activistas. Apenas a agência Lusa acompanhou os casos de perto e no terreno. Após vários dias de reuniões intermináveis com o governo local e elementos do poder judicial, as quatro fanatecas acabaram por ser novamente detidas e julgadas pelo tribunal regional de Bafatá, naquele que foi o primeiro julgamento desta natureza na Guiné-Bissau, uma “primeira vitória contra um crime antigo”, nas palavras de Fatumata Baldé.

Condenadas a três anos, com penas suspensas, as mulheres de idade avançada viram as penas revertidas em multas, que, segundo fontes judiciais, foram pagas por familiares. O mesmo não aconteceu com outro caso, em Fevereiro de 2013, quando um guineense a viver em Portugal voltou à sua aldeia natal, na região de Gabú, e mandou excisar quatro crianças da sua família.

O homem foi detido pela polícia, mas apenas por algumas horas, sendo posto em liberdade por alegada ordem do governador de Gabú. Sob a pressão do Comité Contra as Práticas Nefastas, a justiça convocou o suspeito, mas este, avisado por alguém, desapareceu da Guiné-Bissau antes disso, tal como as duas fanatecas autoras materiais do crime. As suspeitas são muitas: há fanatecas ambulantes, que extravasam fronteiras, a prática é agora executada em crianças, que não podem reclamar, as meninas são introduzidas, às escondidas, no fanado dos rapazes, que continua a realizar-se.

Não tem provas, nem testemunhou directamente casos, mas Adamaia Gavancho admite essas hipóteses. É activista da René-Renté, uma das organizações que integrou o Projeto Djinopi, que, durante cinco anos, combateu a mutilação genital feminina na Guiné em dois eixos: reconversão profissional das excisadoras e campanhas de sensibilização para cada público-alvo.

O delegado de saúde de Bafatá também não tem dúvidas de que “continuam a fazer a prática de uma forma clandestina, escondida” e que até “simulam que a criança furou uma orelha e que chora por isso”. Julião Mandim defende que a mutilação genital “deve ser banida”, porque “tem muitas consequências no momento do parto”.

Tantan Cossé, terras de Cossará

Braima Embaló, sociólogo, activista e agente de ligação do Comité Contra as Práticas Nefastas da Guiné-Bissau, conduz-nos a uma tabanca em chão dominado pela etnia fula. Agachada sobre um banco tradicional de madeira está Umo Baldé, mas depressa surgem cadeiras de plástico de todos os lados para sentar os convidados. Umo era a chefe das fanatecas do reino de Cossará e garante que a mutilação genital feminina já não se faz. “É como quem bebia álcool, nunca mais volta aos locais da má vida”, compara.

As fanatecas são mulheres matronas, geralmente também parteiras ou curandeiras tradicionais, a quem é reconhecido um prestigiado estatuto social para executar o corte dos órgãos genitais. Agora viúva, Umo admite estar preocupada com o sustento das “muitas bocas” que tem para alimentar, no conceito africano de família alargada. Já sem arcaboiço para trabalhar no campo, vende tabaco, aos molhos. Enquanto fanateca, tinha melhor vida. Mas o Estado disse para parar e o Estado não se contesta — se é lei, é para obedecer. Vamos ouvir esta frase vezes sem conta ao longo da viagem.

Braima Embaló conta 25 fanatecas que, no sector de Bafatá, estão agora a sensibilizar as comunidades para abandonarem a prática. Ainda há “resistência”, mais nas tabancas do que na cidade, garante o activista, que trabalha com 20 comunidades que garantem ser contra a prática. Mas ele sabe que esta ainda não acabou. “Fazem a bebés, no sigilo”, denuncia, recordando “a tragédia” que afectou uma menina, sujeita a um “corte demais”, numa aldeia vizinha.

Além disso, relata, “as fanatecas são móveis”, circulam entre tabancas e até saem da Guiné-Bissau para os países vizinhos - Senegal e Guiné-Conacri, ambos com leis que proíbem a prática, mas igualmente listados pela comunidade internacional como países praticantes (no segundo caso, com um dos mais elevados índices de vítimas). Também saem para a Europa, incluindo Portugal, garante Braima, embora nunca tenha conseguido apanhar ninguém em flagrante.

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Braima Embaló, sociólogo, activista e agente de ligação do Comité Contra as Práticas Nefastas da Guiné-Bissau, diz que a excisão é agora feita a bebés, "no sigilo" DR

A denúncia às autoridades esbarra com a proximidade entre estas e as próprias comunidades. Também por isso — assinala o activista — os políticos não se destacam na oposição à prática, porque isso lhes pode custar votos entre as etnias islamizadas (convertidas ao islão e não muçulmanas de origem), que, no caso da Guiné-Bissau, são as únicas que praticam a excisão.

O ritual do fanado, que era publicamente anunciado à comunidade, já não se faz— e isso é um princípio.

Bidjine, tabanca-modelo

A estrada de terra vermelha e vegetação verde desemboca na mais antiga aldeia mandinga, onde provavelmente terá sido construída a primeira mesquita da Guiné. O comité de Bidjine está reunido e fala a uma só voz. Chefes de tabanca e líderes religiosos, uma cúpula de homens no posto da idade, garantem que nunca mais ouviram falar de nenhum caso desde que a lei contra a mutilação foi aprovada.

Não foi fácil convencerem a comunidade a abandonar uma prática que consideram “nociva e proibida”, mas levaram a sensibilização porta a porta e, a 16 de Fevereiro de 2016, fizeram uma declaração pública de erradicação da excisão feminina. Não pararam por aí. Um grupo de participação infantil, com crianças e jovens dos 10 aos 17 anos, raparigas e rapazes, continua a “vigiar as práticas nefastas”. Por exemplo, o casamento forçado ou a desigualdade do sexo feminino na escolarização. “Há mais meninas do que meninos nas escolas daqui”, dizem, orgulhosos, os líderes da comunidade.

Gabú, nada se vê a olho nu

“A olho nu não se vê” a mutilação genital feminina na região de Gabú, provavelmente a mais arreigada à prática, até pela fronteira com a Guiné-Conacri, país onde, apesar de a lei o proibir, praticamente todas as mulheres são sujeitas à excisão. “Dentro do perímetro urbano, esta situação já não se verifica” e as pessoas estão demasiado “entrelaçadas” para conseguirem ocultar a prática da comunidade, garante o governador regional de Gabú, atribuindo mérito à lei, mas, sobretudo, às “tantas sensibilizações” que levaram as famílias a “compreender o risco” da excisão.

“Nenhum líder religioso muçulmano pode dar justificativo a esta prática”, frisa o governador, também ele muçulmano. “Estamos mesmo na rota de uma separação de vez com este acto, que (...) é deveras humilhante para quem é muçulmano”, considera Abdu Sambu.

Atrás do palácio do governador, edifício colonial com varanda privilegiada sobre a cidade, Gibril Bodjam lidera o Conselho da Juventude de Gabú para debater os problemas que afectam os jovens. “Mesmo com a lei, há pessoas que estão a resistir, que estão a desafiar o Estado. Mudar a mentalidade das pessoas não é nada fácil”, reflecte, acusando a comunidade de não colaborar, com denúncias, por “medo”.

À sala pequena chega, entretanto, o imame (sacerdote islâmico) de um dos bairros de Gabú, Ibrahima Baldé. Há muito tempo que não vê nem presencia a prática. “Não posso dizer que acabou”, esclarece, contando, porém, que costumava ser chamado pelos chefes de família para testemunhar o fanado e tal deixou de acontecer. Enquanto professor corânico, era comum ser informado pelas famílias sobre a ausência das meninas, quando estas eram submetidas ao fanado, e há muito que ninguém o faz.

Apesar dos relatos pontuais sobre este ou aquele imame que se recusa a respeitar a lei, Ibrahima Baldé frisa que os líderes religiosos não podem ceder à pressão da comunidade e têm de cumprir o decreto.

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Ex-fanatecas em Gabú DR

O imame deixa a sala e abre-se espaço para iniciar conversa com uma jovem mulher, membro do Conselho da Juventude de Gabú, a prova de que o tema já não é tabu. Cadidjatu Candé, de 23 anos, não se coíbe de dar o seu ponto de vista sobre o tema. Antes da lei, era muito mais difícil convencer uma mulher a falar. “Fui submetida à mutilação e sei muitíssimo bem qual é a consequência”, diz. “São vastas. Explicá-las é difícil”, refugia-se.

Sobre a tradicional passagem do ritual de geração em geração, a animadora cultural garante que a sua filha de dois anos não será excisada. “A minha mãe cuida de mim, a mãe do meu marido cuida do meu marido, mas eu e o meu marido é que cuidamos da nossa filha”, distingue. “Convencer o meu marido não seria uma coisa difícil. É só mostrar qual é a consequência. Não é falar, é mostrar. Ver uma vez é melhor do que ouvir dez vezes”, acredita.

Já adulta, Cadidjatu Candé apontou o dedo à mãe por a ter submetido ao ritual, mas recebeu um pedido de desculpas. “O que é feito já é feito, não pode ser retirado. Mas ela também me prometeu que sobre as minhas filhas sou eu que vou decidir e que ela vai apoiar-me.”

Os mais velhos, sobretudo homens, são os que oferecem mais resistência ao fim da excisão. “Dizem que é cultura, que não pode acabar, que uma mulher não mutilada é impura, não pode cozinhar para o marido, não pode ir à mesquita, não se pode misturar com as mulheres mutiladas.” Mas, desde que há uma lei e que os líderes religiosos muçulmanos têm mais conhecimento sobre o que diz o livro sagrado Alcorão, a prática “está a diminuir”.

Umo Embaló já foi a Meca, onde ficou a saber que muitas mulheres muçulmanas não são mutiladas. “Pedi perdão a Deus pelos pecados que cometi enquanto fanateca, agora sei que não o devia ter feito”, lamenta. “Além de Deus, acima dos homens está o Estado. Se o Estado ditar uma ordem, ninguém deve desobedecer. A partir do momento em que fomos informadas da lei, tivemos de parar, até porque vimos com os nossos olhos as consequências da prática. Faz tempo que abandonámos a prática nesta zona”, relata a ex-fanateca de Gabú.

Nenegale, Otcha e Sumae são todas mulheres de idade avançada e, em comum, têm a herança das facas na linhagem familiar. Enquanto o quotidiano do bairro onde vivem acontece — as crianças brincam, os animais circulam devagar, ao calor, as mulheres estendem roupa e preparam a comida —, todas garantem ter baixado as lâminas. Perderam dinheiro, mas ganharam descanso. Não conhecem fanatecas ainda em funções, nem ouviram falar das tais excisadoras ambulantes. Tradicionalmente, o fanado é anunciado aos vizinhos, é uma prática de exposição pública na comunidade — de modo que, para elas, não faz sentido falar em clandestinidade ou encobrimento.

No Hospital Regional de Gabú, o director clínico acha que “a prática está a diminuir, porque as fanatecas têm medo da lei”, mas Flávio Nhaga acha que as mulheres ainda não tomaram consciência dos problemas que a excisão traz para a saúde, até porque só contactam com as unidades de saúde quando têm um problema e não para observação regular. “Podem sangrar até morrer”, frisa, explicando que, na região, há um grave problema com fístulas — nos últimos anos operaram 46 mulheres, mas há muitas que ainda esperam essa oportunidade.

Flávio Nhaga está em Gabú apenas há dois anos, mas, no posto anterior, lembra-se de suspeitar de um caso, em 2013, quando viu uma criança de quatro meses com sangramento vaginal. A criança foi trazida por uma mulher mais velha, que, quando ele a abordou, desapareceu e deixou-o com a criança nos braços. Se isso lhe voltar a acontecer, garante que fará denúncia.

Gã-Mamudo, foco de resistência

Na zona rural de Gã-Mamudo, a resistência está na cara enfadada do imame Lamini Turé, sentado sobre um tronco comprido de madeira, com o Alcorão entre as mãos. Faz parte do comité de homens grandis (mais velhos e experientes). “Estando de acordo ou não, o Estado é o Estado e todos estamos debaixo da lei”, limita-se a dizer, sem grande convicção.

A conversa é suspensa por momentos, para deixar passar a algazarra da comitiva que segue o cancuran, figura mítica do ritual de passagem, coberta de um tecido vermelho, que vai desfiando a espada no ar. “É o fanado dos rapazes”, dizem e repetem, para garantir que percebemos. O das raparigas “ka tem mas” (já não faz mais) e nem sequer há fanatecas vivas para o fazerem, garantem, acolhendo com um esgar a ideia de que meninas e meninos se possam misturar num ritual que sempre se fez em separado.

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© Louise Gubb/CORBIS SABA/Corbis via Getty Images

Em Cutia, “tabanca parou”

Sob o alpendre, o imame de Cutia pincela uma tábua de madeira inscrita com versículos do Alcorão. Ao seu lado, nesta zona do Centro do país, estão quatro mulheres grandis, que, quando foram submetidas ao fanado, não conheciam as consequências da prática. São agora vigilantes do Comité Contra as Práticas Nefastas, uma espécie de polícia secreta que reporta eventuais casos de mutilação, ou outras práticas nocivas, para que o processo criminal possa ser desencadeado.

Binta Seidi apressa-se a mostrar o telemóvel que guarda numa bolsa salmão de trazer à cintura. Foi o comité que lhe deu o aparelho, mas já não tem saldo para cumprir a função de reportar. Contas à parte, a organização liderada por Fatumata Baldé tem uma impressionante rede de vigilantes no terreno. “O combate leva algum tempo, mas não há nada que se faça sem que a população saiba”, assevera Binta Seidi, que vai tentando enganar mulheres da comunidade com falsos incentivos ao fanado, para confirmar se o fazem às escondidas. Sem sucesso, ninguém contesta a lei.

O imame Bubacar Seidi ri-se das especulações sobre meninas pequenas e excisadoras ambulantes, que considera descabidas. “O Estado disse para parar e a tabanca parou”, garante. O fanado é uma cerimónia sagrada, que implica toda a comunidade e, por isso, fazer às escondidas não faz sentido. As matronas têm de estar presentes a participar e presenciar, para “correr bem”, explica Binta Seidi.

Enquanto a conversa segue, um grupo de meninas dirige-se para a escola, onde se ensinam “direitos e deveres iguais” para todas as crianças. “São quase iguais. Dantes havia separação, os rapazes iam, elas não. Mas agora vão todos. Aprendem juntos, as turmas são mistas. Há raparigas que têm melhores notas do que os rapazes. Estudam mais porque querem atingir o nível deles”, diz o director da escola básica local, Iaia Sow.

Apesar de, em 23 professores, ainda só quatro serem mulheres, a associação dos alunos da escola é presidida por uma rapariga. O problema é quando as meninas vão à escola e aparecem grávidas por obra e graça de professores ou alunos, denuncia a comunidade, lamentando que o castigo recaia apenas sobre a menina, que, com a gravidez não planeada, abandonará a escola, mas nada aconteça ao pai da criança.

Mandingará e as mulheres pioneiras

Aua Nanqui, representante das mulheres locais, conta que, na tabanca de Mandingará, elas foram pioneiras a rejeitar o fanado, por causa das consequências no parto — e os homens acompanharam a sua decisão.

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Até agora, mais de 400 comunidades anunciaram ter abandonado esta prática e fizeram-no em declarações públicas, com pompa e circunstância Finbarr O'Reilly/REuters

“Aqui as mulheres decidiram abandonar primeiro e antes de o Estado impor”, recorda. “O mais importante para uma mulher é gerar filhos, ir ou não ir ao fanado é irrelevante, desde que consiga procriar”, valoriza. Ninguém quer ir para a prisão, por isso cumpre-se a lei. Mas já antes os agentes de saúde comunitários tinham sido convincentes sobre os riscos da prática para a saúde.

Como em muitos outros locais, já se fizeram mangadel (muitos) seminários e conferências sobre mutilação genital feminina. “As coisas mudaram, a educação é diferente, os tempos são outros”, observa.

Linjana e o “medo da lei do Estado”

Duas dezenas de mulheres - grandis, badjudas e mininas, mais velhas, jovens e crianças — suspendem o quotidiano na tabanca de Linjana para exprimirem a sua opinião sobre o combate à mutilação genital. Os panos coloridos que cobrem as cabeças e os corpos contrastam com os rostos fechados. O assunto é sério e até há pouco tempo nem falar sobre ele era possível. Agora, as antenas humanas do Comité Contra as Práticas Nefastas estão espalhadas por ali, os médicos estão mais atentos e, nas mesquitas, os imames apoiam o Estado neste combate. O fim da prática não prejudicou os casamentos — os homens de agora aceitam mulheres não excisadas.

Todos garantem que nenhuma das meninas ainda bebés que andam pelos colos das mulheres ali concentradas será excisada. “É crime”, assinalam. “Temos medo da lei do Estado, a lei do Estado é perigosa”, diz Ké Messén Seidi, comité de tabanca (figura escolhida pela aldeia para a gerir).

Mansoa, a religião e a autoridade do Estado

Bubacar Djaló é a autoridade máxima entre os muçulmanos da Guiné-Bissau. “Nunca o islão recomenda desafiar a autoridade”, destaca. “A autoridade estatal e a autoridade religiosa coabitam. A religião está sob a autoridade do Estado, desde que este não tome decisões contrárias à religião”, realça. Ora, o fanado remete para “os usos e costumes dos povos” e não decorre de “decretos religiosos”, está “mais ligado à cultura africana do que à cultura islâmica”, distingue.

O islão não recomenda a prática e todos os sábios muçulmanos sabem disso — mas isso não impede que alguns líderes religiosos atribuam “um cunho islâmico” ao ritual, admite o presidente da União Nacional dos Imames da Guiné-Bissau. “Quem infringir a lei será castigado. Não há divergência de pontos de vista, há convergência de posições”, sublinha.

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Bubacar Djaló: “Nunca o islão recomenda desafiar a autoridade” DR

Há relatos de imames que aderiram ao combate à prática, mas depois recuaram, e de outros que usam as kutba (equivalentes às homilias) para a defenderem. “O imame não pode ser factor de divisão”, recomenda. “Quem pode falar do corpo humano é um médico. Um ignorante em medicina não pode prescrever nada a um doente. Quando o assunto é algo ligado à lei, é preciso ouvir quem tem formação nessa matéria”, insiste.

Ingoré e o fim do tabu

Um grupo de rapazes banha-se no rio Mansoa, atravessado pela ponte Amílcar Cabral, nome do líder da luta pela independência da Guiné-Bissau, assassinado em 1973. Rumo a norte, passa-se um posto de controlo com a indicação de “Gabarito”, que aqui remete para mercadorias de grande envergadura e pelo qual passam enormes camiões provenientes do Senegal, demasiado pesados para as estradas existentes. O cenário muda, agora alimentado por água e um horizonte a perder de vista, pontuado por palmeiras e pirogas de madeira. A conversa é, na essência, a mesma: a mutilação genital feminina já não se pratica.

Idrissa Dafé, sobrinho do chefe da tabanca Tarero, conta que, há dois anos, uma fanateca foi apanhada em flagrante numa aldeia próxima em quilómetros, mas muito distante em acesso. A mãe queria submeter a filha ao fanado, mas o pai chamou a polícia de Ingoré. Souberam do caso através da equipa de vigilantes do Comité Contra as Práticas Nefastas, mais uma vez. Há ainda outro caso a ser analisado, no tribunal regional de Bissorá: uma avó levou as duas netas ao fanado, na tabanca de Tabato, arredores de Bigene, território guineense a escassos quilómetros do Senegal.

Na tabanca Boavista, as mulheres estão todas nas bolanhas. As meninas já tomaram consciência e não aceitam a prática — e também só casam quando querem. As fanatecas já morreram e não tiveram sucessoras.

Ouve-se o chamamento para a oração e com ele a garantia de que os líderes islâmicos apoiam o fim da prática, que nada tem que ver com o islão. No final da oração, o imame Mamadu Djau junta-se à conversa. É jovem e esclarecido, mas diz que não compete aos líderes islâmicos denunciarem as pessoas da comunidade. Porém, garante, fazem-no ao comité de tabanca, que, por sua vez, pode comunicar com as autoridades civis competentes.

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Abdu Sambu: “Estamos mesmo na rota de uma separação de vez com este acto, que (…) é deveras humilhante para quem é muçulmano” Daniel Rocha

A mutilação “é um prejuízo para a saúde pública” e, por isso, o imame considera que as crianças devem ser mais bem seguidas nos hospitais. A maior prova de que “o tema deixou de ser tabu” está na abordagem que ele fez junto da própria mãe, “conservadora”, mas que “confirmou as graves consequências e até falou de casos de morte”.

Em 2013, foi anunciada uma fatwa (decreto islâmico) contra a prática, mas os imames guineenses ainda têm muita falta de formação teológica, avalia o líder religioso. Recordando um episódio em que foi abordado por um rapaz que questionou o seu respeito ao islão, por se opor à prática, o imame garante que não cederá a pressões da comunidade.

Um quilómetro mato adentro e desemboca-se numa clareira, com um jardim infantil por estrear, à espera de um Estado que falha muitas vezes. É ali que funciona a Rádio Balafon, que tem um programa de saúde semanal. O jornalista César Cumuca acredita nas suspeitas de que a mutilação se pratica em bebés e nas fanatecas não declaradas nos bairros e desvaloriza a autenticidade das declarações públicas de erradicação da prática. “A única forma de saber é através dos agentes de saúde, reforçando vigilância nos hospitais e referenciando crianças”, defende.

Bissau, nas entranhas da capital

O bairro de Santa Clara fica nos confins dos arrabaldes da capital guineense. “De início, a comunidade sentiu-se ofendida com o Estado, foi complicado, houve uma reacção agressiva, ofensas mesmo”, relata Adama Buaro. Líder de uma manjoandade (grupo de mulheres), ela acredita que “o Estado nunca adopta leis contra o povo”, por isso a decisão de pousar as facas foi fácil. O que a preocupa actualmente são as dificuldades para as mulheres e deixa um apelo à necessidade de melhorar as suas vidas. “Há muitas mulheres que não sabem ler nem escrever”, explica. “Se uma mulher tiver conhecimento, escola, se souber ler e escrever, vai saber gerir melhor a sua vida e da sua família”, acredita.

Nas entranhas profundas de Bissau fica o bairro Plack 1, onde o imame chama para a oração. Sabado Seidi tem três filhas e nenhuma delas foi ao fanado. “A princípio, não foi fácil convencer os mais velhos.”

Sueila Biai, de 25 anos, reconhece que “há divergências entre novas e velhas”. Na Guiné, 75% da população tem menos de 25 anos e o índice de crescimento populacional é dos mais altos do mundo. À entrada do Bairro Militar, um cartaz explica, recorrendo a um imame desenhado, que o fanado não é um dos cinco pilares do islão.

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Na Guiné-Bissau, a taxa de prevalência da mutilação genital feminina ronda os 50% DR

A activista comunitária Adama Baldé aplaude o Estado por ter adoptado uma lei. “Inicialmente houve vozes contra, acusaram-nos de injúrias, humilhações e de nos vendermos à comunidade internacional.” Tem um discurso assertivo, de mulher capacitada, que quer “acabar com tudo o que é nefasto na cultura”. Reclama vitória para os activistas, mas promete manter a vigilância. “Estamos conscientes de que continua, não pode acabar de um dia para o outro, é um processo.”

O advogado Jorge Gomes, autor das acusações de alguns dos casos de mutilação levados a tribunal, admite que a aplicação da lei seja “para inglês ver”. Os autores dos crimes “foram apanhados em flagrante e confessaram, mas não houve punição severa”, lamenta, sublinhando que o desconhecimento não isenta de responsabilidade, para mais quando foram feitas várias campanhas de sensibilização. “Onde está o efeito dissuasor?”, questiona, atribuindo aos magistrados a principal “culpa” pela não aplicação efectiva da lei.

“Dantes fazia-se de forma aberta, hoje as pessoas continuam a fazer, mas de forma oculta, nos esconderijos. Fazem em bebés, muitas vezes descobre-se nos hospitais. Mas abrandou, são situações isoladas”, refere. Porém, isso deve conduzir a uma investigação “cautelosa”.

A organização não governamental alemã Target foca a sua intervenção, em exclusivo, em “descolar a prática da religião islâmica”. Neste momento, trabalha com 11 imames e, entre os mais de mil que existem, sinaliza 450 “não resistentes”. Esta intervenção — explica Fernanda Machado — surge no encalço da intervenção do projecto Djinopi, coordenado por Paula da Costa, portuguesa que há décadas combate a excisão na Guiné-Bissau.

“Agora só estamos a trabalhar os resistentes”, refere, distinguindo “resistência receptiva” e “resistência activa”, que encontram mais na zona Leste, “mais radical”. A dada altura, na zona de Tantan Cossé, foram recebidos com agressividade e ameaças, mas, em geral, conseguem entrar e conversar nas tabancas.

A Liga Guineense para os Direitos Humanos duvida da veracidade das declarações de abandono da prática que têm proliferado desde a adopção da lei. Assinalando que o cumprimento da lei tem enfrentado muitas dificuldades, reconhece que houve evolução. Um estudo lançado em Fevereiro revelava que a prática continua e que há descoordenação no combate — entre uma grande determinação das organizações da sociedade civil, com apoio da comunidade internacional, e uma falta de correspondência das autoridades nacionais, sejam judiciais, policiais e políticas.

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Ainda há “resistência”, mais nas tabancas do que na cidade, garante Braima Embaló, que trabalha com 20 comunidades que garantem ser contra a prática DR

A Guiné e o comité

“Não se pode acabar com uma prática secular neste período de tempo; temos a noção de que há pessoas que estão a fazer às escondidas”, admite a presidente do Comité Contra as Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança da Guiné-Bissau. “Mas quem faz uma coisa às escondidas é porque sabe que o que faz não é correcto e um dia há-de cansar-se de se esconder e irá simplesmente abandonar a prática”, acredita Fatumata Djau Baldé, o principal rosto do combate à mutilação genital feminina na Guiné-Bissau.

“O mais importante é que hoje já têm consciência e, em qualquer canto da Guiné, todo o mundo sabe que a mutilação é má e é crime. Hoje, mesmo os resistentes já aceitam abordar a questão. O tabu quebrou-se e todo o mundo fala”, descreve.

A intervenção do comité já chegou a 786 comunidades (num horizonte de cinco mil), onde, após dois anos de trabalho, promotores locais ficam habilitados a reproduzir a acção, num eficiente esquema multiplicador em rede. Das 786 comunidades, mais de 400 já declararam ter abandonado a prática. Desde 2011, o comité registou dez julgamentos, cinco com sentença (dois em Bafatá, dois em Bissau e um em Gabú), num máximo de três anos de prisão. “A justiça não está a fazer o seu trabalho”, denuncia Fatumata Baldé, acrescentando uma suspeita ao rol: crianças da Guiné-Conacri residentes na Guiné-Bissau são levadas para a terra natal para serem excisadas lá e depois voltam.

“A maioria dos imames está do nosso lado, mas existem alguns focos de resistência”, reconhece. Nas zonas com maior prevalência da prática, Bafatá e Gabú, os polícias locais têm medo de aplicar a lei, diz. Já o pessoal médico diz não ter recebido instruções oficiais para reportar casos. “Os médicos têm obrigação de respeitar a lei e deviam referenciar as meninas e mulheres sujeitas à mutilação”, sustenta, anunciando que o comité vai afixar um cartaz em todas as unidades de saúde sobre o dever de denúncia.

Neste momento, o comité está em mais de 200 comunidades resistentes. “Cada zona tem o seu poço de resistência”, diz a dirigente do comité, parceiro da organização portuguesa P&D Factor, que coordena o único projecto de combate à mutilação genital financiado pelo Governo português na Guiné-Bissau.

Segundo dados oficiais, 39% das crianças com menos de 15 anos tinham sido excisadas em 2010, percentagem que desceu para 30% em 2014, redução acompanhada por uma mudança de mentalidade. Por isso, Fatumata Baldé estima que a taxa desça outros 10% neste ano e, a manter-se a tendência, que a prática seja erradicada em 2030.

Ainda falta uma orientação oficial dos responsáveis políticos do país e um posicionamento público comum dos imames, mas Fatumata Baldé está optimista. “Vamos conseguir lá chegar”, acredita esta mulher, que, nas acções de sensibilização, faz questão de usar imagens das marcas da mutilação no seu corpo.

* Esta reportagem foi feita ao abrigo das Bolsas de Criação Jornalística, atribuídas pela Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP), em parceria com o CESA, da Universidade de Lisboa, o CEIS XX, da Universidade de Coimbra e a associação Coolpolitics, e financiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian