Alfonso Cuarón regressou ao México para resgatar a ama
O LEFFEST exibe, em sessão única, no domingo, o vencedor do Leão de Ouro de Veneza, Roma. É o filme com que Alfonso Cuarón, cinco anos depois dos Óscares de Hollywood, foi para o México resgatar a sua ama da invisibilidade da memória.
Se ainda antes de acabar Gravidade (sete Óscares, entre eles o de Melhor Realizador) o realizador Alfonso Cuarón prometia a si próprio que o passo seguinte seria mais simples e seria pessoal, mesmo que inevitavelmente ficando marcado nele tudo o que andou a aprender na indústria americana, agora pode dizer que Roma, filme que o fez regressar ao México natal onde não filmava desde 2001 (E a Tua Mãe também), é uma promessa que existe nele desde 1991 — desde a sua primeira longa, Sólo con Tu Pareja. No sentido em que Roma cumpre mais fielmente o que andava a prometer em Cuarón o cinema. É o que ele tem dito.
Como aconteceu em 2001, quando depois de duas longas-metragens de pura Hollywood decidiu, aos 40 anos de idade, resgatar algo de si com um pequeno filme no seu país natal (E a Tua Mãe também), o realizador, estatuto agora não só solidificado como oficializado, 56 anos, regressou ao México. Para conversar com o seu país, com a sua família, para questionar a memória.
Roma, que o Lisbon & Sintra Film Festival exibe no Centro Cultural Olga Cadaval, Auditório Jorge Sampaio, no domingo, 25, às 16h, é o resultado de vários anos em que Cuarón andou a conversar com a sua ama de infância, figura que afagou o mundo (menos do que) perfeito do bairro de classe média da Cidade do México, chamado Roma, onde Alfonso viveu nos anos 1970 e onde Cleo, nome da personagem, era a empregada doméstica e membro da família dos patrões pelo afecto — mas, foi percebendo o adulto Cuarón, figura que as questões de classe e de raça condenaram à invisibilidade.
É um filme de resgate, portanto. Noventa por cento das cenas estavam vivas nas recordações do realizador, 70% dos adereços são autênticos, recolhidos entre familiares, os cenários e os intérpretes “reproduzem” as pessoas e os ambientes — bonita coabitação entre o humano e o tecnológico, que reconstitui uma Cidade do México desaparecida, foi o filme de toda a sua carreira em que Cuarón teve direito a mais dias de rodagem: 108.
Não é, no entanto, um filme em que a memória esteja aprisionada pela reconstituição. A infância de Cuarón é interceptada pelo adulto Cuarón, a bolha da subjectividade exposta às interferências do mundo (de hoje), constantes travellings abrindo espaço para a libertação de mais vastos sentidos dos gestos e das personagens.
A metodologia da rodagem, em que o argumento esteve arredado da equipa, sendo todos convocados a participar através das suas próprias memórias, foi isso mesmo, libertadora.
Vencedor do Leão de Ouro de Veneza, esta produção Netflix tem a sua estreia na plataforma marcada para 14 de Dezembro. Alguns mercados (até ao fecho desta edição não estava confirmado o português...) receberão o filme em sala antes da plataforma, benesse da habitual política do serviço de streaming que não faz favores a ninguém mas que cada vez mais assume que, se estes são novos tempos, ainda precisa do prestígio dos velhos Óscares.
Pelo que se sabe da rodagem de Roma, por exemplo as condições que criou e em que rodou, o filme configura um home movie gigante. Percebe-se que o elemento catártico não está apenas no ecrã, nas imagens de uma infância reconstituída, e que inundou a produção e penetrou o set — os actores e até a sua família, que visitou o plateau.
Desde o ponto zero do projecto que a memória foi a metodologia. Foi muito estranho porque se, por um lado, eu estava a falar de coisas que me eram muito próximas, por outro estava a reproduzi-las — mas a fazê-lo em muitos dos lugares em que os acontecimentos se passaram ou em lugares que reproduziam fielmente aqueles em que as coisas se passaram e com pessoas muito parecidas com as pessoas que estiveram envolvidas.
Foi preciso algum tempo para me habituar. Havia algo de perversamente estranho naquilo. Durante o tempo de escrita não estava muito consciente disso. Ou quando estava a planear o filme — estava tão ocupado a fazer as coisas acontecer, a encontrar os sítios adequados, a encontrar a actriz principal, a encontrar a mobília, e a ter a certeza de que tudo estava a funcionar... Foram duas ou três semanas antes de a rodagem terminar que percebi a situação em que estava. Estava a reproduzir cenas do meu passado, de um período que não foi dos mais felizes da minha vida, tratava-se das minhas cicatrizes mas também das cicatrizes na consciência de uma nação.
A produção de um filme é algo de muito pesado e ao mesmo tempo, como no caso de Roma, pode ter que ver com o que é delicado. Em vários campos — orçamento, production design [de Eugenio Caballero], tempo de rodagem, construção de sets e utilização de adereços que pertenceram à sua história pessoal — este filme é uma coabitação entre o pequeno e o grande. É a sua intimidade e é a consciência de um país, o México.
Uma coisa é a projecção de outra, e as duas coisas são o mesmo. Porque uma informa a outra. Mesmo quando nos alheamos do que nos rodeia, isso que nos rodeia acaba por nos afectar. E moldar-nos. E ao contrário: cada acção nossa acaba por influenciar o que nos rodeia.
É intrigante o trabalho de production design. Em várias sequências apenas se pode suspeitar de que talvez as ruas da Cidade do México, estando irreversivelmente alteradas, são criação de efeitos especiais. Penso, particularmente, numa sequência em que as personagens vão ao cinema, uma daquelas salas que já não existem no mundo.
Sempre que foi possível filmámos no lugar em que os acontecimentos decorreram Quis filmar a cena de que fala na avenida em que existia o cinema. Mas está tão transformada — há agora uma rede de transportes públicos, um comboio, e o cinema alberga agora um enorme centro comercial — que tivemos de construir um set. Foi um dos maiores em que já estive envolvido. Construímos vários quarteirões a partir do zero, as ruas, passeios, e completámos tudo com efeitos especiais, sim.
Esta é a sua memória do México dos anos 70 que já não existe. Qual era a sintonia dos membros da sua equipa em relação a esse tempo? Reconheceu neles a mesma memória? O que é que eles foram capazes de reconhecer na sua? Estavam a aprender alguma coisa sobre as suas vidas através da sua?
Essa foi uma parte importante do processo porque ninguém tinha o argumento. Apenas dei uma lista de requisitos e uma lista por ordem cronológica das coisas a filmar — filmámos por ordem cronológica. Em vez de lerem um argumento e de fazerem o seu trabalho a partir de um argumento, tudo se baseou numa série de conversas que tivemos e, mais uma vez, na memória deles.
Eu era o mais velho no set. Os meus pontos de referência não tinham nada que ver com os deles, mas por isso mesmo as minhas memórias podiam interferir nas deles e eles trazerem as suas experiências emocionais para a mesa.
Estamos a falar de um México completamente diferente, de uma cidade que cresceu sem qualquer planificação urbanística, mas o lado trágico da coisa é que não demorou muito tempo a perceber-se que as coisas não mudaram assim tanto desde os anos 70. As problemáticas com que lidávamos no filme, os contrastes sociais, as relações entre classe e raça não só se mantiveram como escalaram. São até hoje mais óbvios e fazem parte do tecido do país. Tornou-se um problema humanitário endémico.
Queria falar-lhe de três personagens: Cleo e as figuras que representam o seu pai e a sua mãe. Cleo, que representa a sua ama, foi a origem do filme. Ou antes, o seu olhar sobre ela, ou o desenvolvimento de um novo olhar sobre ela... Consegue datar essa necessidade de se confrontar com a memória da sua ama?
Desde que me tornei adolescente que tive consciência de que ela fazia parte da minha família, do meu microcosmos. A sua vida fora da minha família, os amigos e a sua própria família pertenciam a um meio social completamente diferente do meu. Pertenciam a uma etnia diferente. Isso era algo de que estava consciente mas em que não queria pensar. À medida que vamos crescendo, sentimos necessidade de assumir algumas das coisas que passámos o tempo a negar. Comigo isso aconteceu há 15 anos, há duas décadas talvez. Foi quando comecei a conversar com ela sobre o seu meio e que ouvi histórias que não conhecia.
A personagem do seu pai é comovente. É lindíssima a sequência em que ele tenta enfiar o carro demasiado grande na garagem.
A montagem toda em fragmentos dessa sequência com o símbolo da presença do homem, o carro, diz algo sobre uma personagem cuja totalidade nunca apreendemos. É alguém em fuga. É o que lhe fica do seu pai?
Acho que sim. Era alguém muito meticuloso em certos aspectos da sua personalidade, mas muito distante e muito esquivo comigo e com a minha família. Era alguém muito preciso em certos aspectos mas também extraordinariamente ausente. Ao mesmo tempo, quando estava presente tudo rodava à volta dele.
Mas é uma figura frágil, mesmo se a ausência dele teve os efeitos que teve na sua família. As figuras dominantes no filme são as mulheres.
Na minha vida foi assim que as coisas se passaram. Eu raramente via o meu pai. Ou estava a trabalhar ou em viagem. Quando estava presente, nos fins-de-semana, tínhamos todos de nos calar em casa porque ele estava a descansar. Eram as mulheres que tomavam conta de tudo. Quando ele abandonou a nossa casa, deixou de nos sustentar economicamente, e aí também foram as mulheres que tomaram conta.
Mas isso não é fora de comum no México, nem imagino que seja incomum em qualquer sociedade. Para além de que em certas zonas de qualquer sociedade, na sua parte mais culta, as responsabilidades estão nas mulheres, e aí nessas zonas a figura paterna tende a estar muito ausente.
A determinada altura, a sua mãe e a sua ama vieram assistir à rodagem. Que efeito teve nelas a conversa que estava a ter com a sua memória?
Estava muito feliz por as ter ali, mas também fiquei preocupado porque na cena que ia filmar a personagem da mãe está a explicar aos miúdos que o pai não vai estar presente para o Natal, e Cleo [interpretada por Yalitza Aparicio] confessa que está grávida. Quando as vi entrar, pensei “Uau, é esquisito o que está aqui a acontecer”. Via-as a entrar no pátio, depois no interior da casa, a expressão delas a olhar para todo o lado. Coloquei-as em frente a um monitor de vídeo e fui filmar. Às vezes vinha ver se estava tudo bem. Numa das vezes, Cleo estava a chorar. Pensei que talvez tivesse ultrapassado alguma fronteira que não devesse. Perguntei-lhe se estava bem, se havia alguma coisa de que não devêssemos falar ou mostrar no filme, porque talvez eu ainda pudesse mudar, e a resposta dela foi que estava preocupada com as crianças... Ainda hoje: queremos fazer um filme sobre ela, sobre as suas dificuldades, e ela está preocupada com os meninos.