Uma estrela dos Geadas para os Geadas
Óscar Gonçalves levou uma estrela Michelin para Bragança. O seu restaurante G é uma história de família que começou numa viela onde praticamente nunca entrava o sol.
Sol Neve, Rua da Corujeira, Vinhais. "Abrimos o snack onde fazíamos os petiscos todos: os rins de vitela, as moelas, a posta, as costeletas e a feijoada. Éramos novinhos os dois", conta Iracema. "Namoriscávamos e montámos um espaço com um balcão e 13 bancos. E a vida começou", acrescenta Adérito. Ela tinha 20 anos, ele 22. "Ficava numa viela em que praticamente nunca entrava o sol. Era muito frio lá dentro. Por isso puseram Geadas ao meu marido. E ficou." Geadas é hoje quase o nome da família Gonçalves, berço de uma estrela Michelin, um título que é quase mais um elemento do clã de Bragança.
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Sol Neve, Rua da Corujeira, Vinhais. "Abrimos o snack onde fazíamos os petiscos todos: os rins de vitela, as moelas, a posta, as costeletas e a feijoada. Éramos novinhos os dois", conta Iracema. "Namoriscávamos e montámos um espaço com um balcão e 13 bancos. E a vida começou", acrescenta Adérito. Ela tinha 20 anos, ele 22. "Ficava numa viela em que praticamente nunca entrava o sol. Era muito frio lá dentro. Por isso puseram Geadas ao meu marido. E ficou." Geadas é hoje quase o nome da família Gonçalves, berço de uma estrela Michelin, um título que é quase mais um elemento do clã de Bragança.
Iracema teve o Óscar aos 20 anos. "Aos cinco anos ele virava uma grade de cerveja ao contrário para chegar ao balcão e para tirar cafés." Estiveram no snack da viela meia dúzia de anos. Mudaram-se depois para o verdadeiro Geadas, placa na porta. Primeiro era só a porta de cima. Passado uns anos ampliou para o andar de baixo, transformando-se numa referência da comida tradicional, sempre com peixe fresco grelhado, cozido ou assado no forno, sempre com perdiz, arroz de lebre, cabrito assado ao domingo e posta.
Adérito, natural de Carção, terra ligada ao comércio desde tempos muito antigos — muitos dos seus habitantes são descendentes de judeus que se refugiaram no século XV nas aldeias raianas —, fez a instrução primária e foi trabalhar para a Pousada de Bragança. Trabalhavam lá três de sete irmãos. "O meu pai era almocreve e emigrou para a Alemanha. Um dia disse 'ficam todos com a quarta classe e cada um faz-se à vida'." O primeiro serviço que fez foi carregar malas. "Só não servi o Salazar", lembra. Ficou na Pousada sensivelmente 15 anos. Cumpriu serviço militar e voltou para se dedicar aos negócios de família. "O tempo passa rápido", comenta à Fugas enquanto esperamos pelos irmãos Geadas, a caminho de Bragança e com uma jaleca branca com o símbolo Michelin bordado.
"É para juntar ao babygrow dos meus filhos [a Joana tem oito anos, o João faz um ano no dia 29]", diz Óscar mal chega à sala de estar da Pousada e a caminho da cozinha do G onde há serviço para despachar. Raptamo-lo no fim do trabalho. "Foi como quando uma pessoa é pai, um misto de emoções. Será que vamos ser capazes? Será que vamos criar bem? Uma estrela é como um filho, uma pessoa ganha-a e depois tem que a alimentar e criar", explica, dedicando a distinção aos pais, "que sempre foram pessoas batalhadoras e que toda a vida trabalharam na hotelaria". "Ensinaram-nos tudo o que sabemos. É um agradecimento para eles", sublinhou, emocionado. "Nós vimos de uma família humilde. Crescemos no meio dos pratos. Até aos seis anos fui criado com os meus avós na aldeia, o meu irmão foi criado pelos padrinhos. A nossa casa era o local de trabalho deles. O nosso ambiente era entre pratos, panelas e tigelas. Tudo começou a 400 metros [no Geadas]. E tudo começou nesta casa [Pousada de Bragança] com o meu pai que veio para cá como bagageiro. Quarenta anos depois, os filhos vieram para a casa onde ele aprendeu. É uma estrela da família para a família."
Óscar, o cozinheiro, António, o todo-o-terreno
"Nasceram os dois nisto", confirma Iracema. Foi um "longo trabalho", sublinha António, o irmão dez anos mais novo (tem 32 anos), formado em Gestão Hoteleira e Turismo e uma espécie de anfíbio dos Geadas. "Queria o máximo de conhecimento para depois fazer acontecer, para treinar as pessoas que trabalham connosco, para dividir ideias e discuti-las com o meu irmão", refere o gestor da Pousada de São Bartolomeu, pertencente ao grupo Pousadas de Portugal, e que curiosamente partilhou alguns mestres (João Rodrigues, chef do Feitoria, e Vincent Farges na Fortaleza do Guincho) com o irmão Óscar. "Há aqui um profundo trabalho de família. Eu e o meu irmão trabalhamos desde muito, muito novos. A minha mãe estava a trabalhar e juntava duas cadeiras onde nós dormíamos." No resto, durante alguns anos António e Óscar chegaram a ser donos de parte da ementa do Geadas antes de assumirem por inteiro e perante os pais a responsabilidade da Pousada. António ficou com a gestão e a operação da sala ("cozinho nas horas vagas"). Óscar ficou com a cozinha — que por razões estratégicas não serve almoços. "Muitas bases de receitas são do compêndio tradicional. Esse é o nosso mote, toda uma intelectualização da cozinha tradicional. Paramos para pensar", explica António Gonçalves, o todo-o-terreno.
A primeira coisa que Óscar se lembra de ter cozinhado foram "umas moelas". Tinha 12 anos. "Os meus avós, primos e tios andavam à carreja [juntar o feno] e eu levava uma panela vermelha embrulhada em papel de alumínio e um 'rodilho' e um saquito da merenda com o pão", recorda o chef, que assume ter sido "um cábula" durante a juventude. "Estive três anos a passear no Porto [em Engenharia Ambiental]", admite. O pai chamou-o à atenção e, depois de mais algumas tentativas frustradas em Vila Real e em Bragança, acabou por vingar em Gestão e Produção de Cozinha em Mirandela, um curso entretanto extinto.
Para além de João Rodrigues e de Vincent Farges, Óscar Gonçalves, que não quer ser tratado por chef, menciona outros "amigos da casa" como Vítor Matos e Leonel Pereira, sublinha a importância da sua jovem equipa na cozinha ("a dona Isabel, mais experiente, a Raquel, da Escola do Mar dos Açores, o Fábio e o Félix, ambos da Escola de Hotelaria e Turismo do Douro de Lamego, e o André, descendente de transmontanos) e destaca o papel da esposa Goreti nesta equação. "Quem perde é a família. Tenho sorte de ter a mulher que tenho porque eu sou um pai ausente. Ainda hoje cheguei e não os vi. A minha filha queria o carinho do pai, como é normal. Uma pessoa passa os dias a trabalhar. Quando chego a casa estão a dormir, de manhã levantam-se para ir para a escola e uma pessoa está a dormir. Muitas vezes chego a casa cansado e a minha mulher não os deixa ir para o pé de mim para eu poder descansar. Férias é o mínimo... É complicado. Isto não é uma profissão, é um modo de vida."
"Quando lhe perguntei se queria ir para hotelaria", recorda Adérito, "disse-me que não, porque via que era um sacrifício muito grande. Disse-me que eu nem me sentava à mesa com ele, que não fazia uma refeição com a família. Vinha o Natal e eu tinha que ter o restaurante aberto." A estrela Michelin, diz, é "uma carreira de 40 anos". São os produtos de excelência que se repetem nas cozinhas do G e do Geadas. "As cozinhas são diferentes, mas os produtos são os mesmos", aponta Iracema, que experimenta poucas experiências do chef Óscar. "Para nós cozinha pouco. Ele gosta é que eu cozinhe para ele [risos] feijoadas, ranchos... ele gosta muito disso." O pai Adérito, estrelas à parte, também não tem dúvidas. "Gosto, mas gosto mais de comer a comida da mãe [risos]."
Pela mesa, num dia com ritmos invulgares, vão desfilando alguns dos vinhos da carta de trinta páginas em sintonia com ossobuco e cogumelos, carabineiro, trigo, salpicão de porco bísaro e curgete e arroz doce, limão e pinheiro. O elemento transmontano é essencial. "Conseguirmos fazer algum prato como o da avó de alguém é de um elogio tremendo", diz Óscar, que pretende assinar os pratos com "sabor, registo e identidade". "Cozinha portuguesa", sublinha, justificando. "Porque temos tantos sabores da terra, desde os legumes, as frutas, a hortaliça, a tubérculos, as raças autóctones e o melhor peixe do mundo. Para quê inventar? Tendo bons produtos, basta não estragar, dar o tempo certo de cozedura e servir ao cliente. Temos a carne mirandesa, o cordeiro bragançano, a nossa batata e a nossa castanha que sabe a batata e a castanha."
A estrela Michelin caiu do céu — também para a região. "Para Trás-os-Montes", diz o chef, "é um alento". "O interior está esquecido. No mapa de Espanha há estrelas em aldeias com 30/40 habitantes e em sítios que no período de Inverno só são acessíveis de jipe. Os inspectores abriram um pouco o leque e saíram da A1. Tenho pena de não termos sido dez." Nas palavras do irmão mais velho, em Bragança "há dois tolinhos" que contrariaram a lógica. "Vamos ficar e ver o que isto dá. Acreditamos na nossa terra."