“Houve sempre a capacidade de encontrar soluções para as crises da União Europeia”

Se as pessoas quiserem, podem aprender com a história, diz Constanze Itzel, a investigadora alemã que dirige a Casa da História Europeia. E uma importante lição "é que todas as crises do processo contínuo de integração europeia foram sempre ultrapassadas". Como aconteceu com a queda do muro de Berlim.

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A directora da Casa da História Europeia, Constanze Itzel, não fala como os políticos ou os burocratas que povoam Bruxelas, e que nesta altura já só pensam nas próximas eleições de Maio de 2019 — e na campanha que se adivinha marcada por discursos intolerantes, retóricas populistas e apelos à divisão e ao confronto. Nada que surpreenda a historiadora alemã, responsável por dirigir o museu financiado pelo Parlamento Europeu (55,4 milhões de euros) para mostrar como o continente foi capaz de ultrapassar o seu passado brutal de guerra e destruição. “Muitas ideias [históricas] continuam a ter um enorme impacto na maneira como vivemos ainda hoje”, observa Itzel, que não é uma pessimista nem acredita que os europeus estão a reciclar fenómenos perigosos que levaram ao conflito. “Foram as crises que levaram à criação de algo tão positivo quanto a União Europeia”, lembra.

Este museu foi proposto pelo Parlamento Europeu há uma década, como um projecto capaz de promover e cultivar a unificação e integração europeia e também aproximar as instituições da Europa dos seus cidadãos. Mas dez anos depois, à beira de uma nova eleição europeia, constatamos que o bloco continua a ter dificuldades em chegar aos eleitores. O que é que ainda é preciso fazer para fazer passar a mensagem?

Este museu é uma de muitas tentativas para passar a mensagem. Somos um museu de História, e apresentamos a história a partir da perspectiva europeia, que é complementar à de muitos outros museus. O que nos interessa e o que gostaríamos de poder fazer é transformar a visão que as pessoas têm do passado, pondo em evidência tudo aquilo que enquanto europeus temos em comum mas também tudo aquilo que nos divide; as coisas que lembramos de maneira muito diferente e as que recordamos da mesma maneira. O que pretendemos demonstrar e explicar e que os processos comuns à Europa não dizem só respeito à política europeia e integração na União Europeia. Há muito mais do que isso, o continente tem muito mais do que isso em comum. E é isso que está a vista neste museu.

Isso não quer dizer que o museu não tenha esse papel de promoção da integração europeia…

Bem, nós não somos um instrumento de promoção, somos um museu de História. Há uma grande diferença entre uma coisa e outra. Mas decididamente, o museu pode chamar a atenção das pessoas para aquilo que é comum e que partilhamos enquanto europeus, em vez daquilo que estão habituadas a ver sob o ponto de vista nacional, ou até com um olhar ainda mais local. Aqui percebe-se que há uma imensidão de coisas que os europeus partilham, e que começam a ser avaliadas e compreendidas de uma maneira distinta se estivermos alerta e conscientes da existência dessa comunalidade.

A exposição permanente do museu assume a forma de uma narrativa cronológica de tendências: percebemos quais são os temas comuns e as experiências partilhadas por todos os povos da Europa. Entre todos os tópicos, qual ou quais lhe parecem ser mais relevantes nos dias de hoje?

Nós tínhamos três critérios para a selecção do que iríamos mostrar no museu, e a relevância nos dias de hoje era exactamente um deles. Os outros dois critérios tinham a ver com os processos que nasceram na Europa e que depois se espalharam e manifestaram em todo o continente. Pareceu-nos ser essa a melhor maneira de seleccionar, porque a história europeia é interminável e daria para encher uma casa dez vezes maior do que esta. Por isso, para lhe responder à pergunta, penso que todos os tópicos são relevantes para os dias de hoje, as migrações, os movimentos nacionalistas… Há muita coisa que as pessoas podem aprender com a História, se admitirem que se pode aprender com ela. Uma dessas lições, que penso ser muito importante, é que todas as crises do processo contínuo de integração europeia foram sempre ultrapassadas. Houve sempre a capacidade de encontrar respostas e soluções para as crises da União Europeia.

É interessante perceber que muitos fenómenos históricos continuam a manifestar-se actualmente. Por exemplo, percebemos aqui que muitas das razões que estão por detrás do “Brexit”, ou da ascensão de partidos populistas ou da reacção aos fluxos migratórios, não são nada de novo na Europa.

Sim. Tomemos como exemplo os movimentos nacionalistas que começaram a surgir no século XIX. Nós explicamos o que eles pretendiam alcançar, na sua génese, e também mostramos como esses movimentos se fortaleceram no século XX e levaram à exclusão de diferentes grupos. Partindo do ponto de vista do século XIX e o seu contexto histórico, conseguimos ver realmente quais foram as linhas de desenvolvimento e como foi a evolução desse fenómeno. E o mesmo é válido para os tópicos, como por exemplo a imigração. Nesta narrativa cronológica, nós conseguimos seguir a evolução desses fenómenos através dos diferentes períodos da história.

Isso quer dizer que estamos constantemente a reviver a história, ou que continuamos a ser influenciados pelas mesmas forças e as mesmas ideias de há um século ou mais?

Bem, espero sinceramente que não estejamos a reviver a história porque isso seria horrível. Mas muitas ideias continuam a ter um enorme impacto na maneira como vivemos ainda hoje. Vejamos por exemplo a ideia do Estado-nação, que é homogéneo do ponto de vista étnico e linguístico. Essa é uma ideia que até é relativamente nova, numa perspectiva de longo prazo, tem pouco mais de 200 anos. Do ponto de vista dos historiadores é uma coisa nova. Mas para as pessoas, ou melhor, para muitas pessoas, está perfeitamente estabelecido que um território tem de ter uma única língua, um único grupo étnico. Isso continua a alimentar conflitos e divisões, o que é uma pena, até porque ao longo de séculos os europeus viveram sem essa ideia.

Recomendaria que os líderes europeus viessem visitar este museu? Chamaria a atenção deles para alguma sala em particular?

Líderes europeus? Claro que como directora do museu só posso recomendar que toda a gente o venha visitar! Mas penso que seria útil — e nós gostaríamos que isso acontecesse — que o museu estivesse incluído numa espécie de programa de treino ou de estágio para os agentes políticos e para os diplomatas. Porque acredito realmente que jogamos um papel importante na explicação dos fenómenos históricos — não só os perigos históricos como também a resolução das crises históricas. Nós demonstramos como as visões políticas permitiram sempre que a Europa evoluísse e andasse para a frente. Ou seja, não mostramos só a parte negativa, também mostramos que as crises levaram à criação de algo tão positivo quanto a União Europeia. Por isso sim, definitivamente toda a gente devia visitar este museu.

Nestes últimos anos, a Europa esteve mergulhada em crises — do euro, das migrações… — que afectaram os países de maneiras muito distintas. Alguns sentiram muito o impacto da crise, outros nada. Não acha que essas experiências tão diferentes levam a que os problemas, e também as soluções, não sejam entendidos como europeus?

Não tenho a menor dúvida. Essa foi também uma dificuldade, um desafio, que sentimos aqui no museu. Tínhamos que criar uma narrativa que fosse fácil de compreender por alguém que não tivesse o mínimo conhecimento, alguém que não soubesse sequer localizar as datas da Segunda Guerra Mundial. E por outro lado, tínhamos que dar conta da diversidade de perspectivas e experiências. Já que falou nisso, deixe-me dar o exemplo da crise financeira, que é um tópico complicado. Nós montámos um painel (uma audio-station) com vários especialistas a quem pedimos que falassem do assunto, de forma a explicar todos os pontos de vista existentes nessa matéria. E fazemos o mesmo em muitos outros pontos da exposição. Isto é, nós estamos constantemente a introduzir parêntesis nesta nossa grande narrativa aparentemente unificada, para dar conta das diferentes perspectivas, para mostrar as diferentes formas de olhar para o passado para lembrar que existem diversas memórias do passado.

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Contanze Itzle é a directora do museu que "não mostra só a parte negativa, também mostra que as crises levaram à criação de algo tão positivo quanto a União Europeia" Hugo Neves

E não lhe parece que essas narrativas nacionais, que até podem ser contraditórias sobre o mesmo assunto, tornam mais difícil a compreensão da tal linha comum ou do alcance europeu desses temas?

Seguramente. Mas nós não temos de fazer uma oposição. Tal como disse no princípio, há muitas maneiras de olhar para a história. Pode olhar para a história da sua família, pode olhar para a história da sua cidade, para a história do seu país. E depois pode ter uma perspectiva europeia, ou se quiser até mesmo uma perspectiva global. Importante é que estas perspectivas coexistam: não podemos olhar para apenas uma e encará-la como a verdade, ignorando todas as outras, porque é só olhando para esse conjunto que aprendemos. Podem ser perspectivas opostas, mas são complementares.

Será que as pessoas desconfiam da integração europeia, por pensarem que não se dá a devida atenção à sua especificidade?

E também à sua linguagem. De cada vez que comunicamos, temos de perceber para quem estamos a falar. Nós aqui no museu reescrevemos os nossos textos muitas vezes, até chamamos um educador para olhar para eles do ponto de vista do visitante. Os curadores e historiadores podem escrever de uma maneira muito complicada, e o que nós queremos é que o visitante que já chega cansado ao quinto andar ainda possa apreciar a exposição! Os museus agora dispõem de várias formas de transmitir a mensagem, áudio, vídeo, porque algumas pessoas são mais auditivas, outras são mais visuais. A comunicação tem de ser transmitida da maneira que melhor se ajusta à audiência.

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Casa da História Europeia Benoit Bourgeois

Na História, existe um risco de controvérsia pela forma como as coisas são apresentadas, e o museu tem sido alvo de críticas por não dar muito crédito a figuras nacionais muito queridas. Qual é a sua opinião?

É muito difícil, e é um processo longo. Um museu de História é construído de uma forma muito diferente de um museu de arte, que parte de uma colecção. Como disse, nós usámos como critérios de selecção a relevância para os dias de hoje, a origem europeia dos fenómenos e a sua dispersão pelo continente. Foi assim que determinámos quais os tópicos que queríamos abordar, porque havia muitos outros. E depois escrevemos uma história. Estabelecemos a cenografia, com uma empresa de design, e seleccionámos os objectos, os documentos, os ficheiros de som e de imagem que sustentam a narrativa.

A exposição tem centenas de objectos, provenientes de todos os Estados membros da UE. Como foram escolhidos, os países tiveram alguma intervenção, podem ser substituídos?

Na verdade temos milhares de objectos, que vieram de mais de 300 museus e colecções particulares de toda a Europa. Esta é uma exposição permanente temporária, em que os objectos vão mudando com o tempo, ou porque são demasiado sensíveis à luz e só devem ser expostos por um período de tempo, ou porque são precisos noutras exposições ou simplesmente porque os empréstimos chegam ao fim. A escolha desses objectos foi um dos desafios da montagem do museu, porque em alguns sítios existem bases de dados informatizadas que nós pudemos consultar, e noutros não. Por isso enviámos cartas a dizer o que pretendíamos mostrar na nossa exposição, ou a pedir peças de um determinado período, e recebemos uma ajuda preciosa de equipas de curadoria que nos responderam com ideias, sugestões. Também aconteceu termos de adaptar o conteúdo por não termos conseguido encontrar um objecto raro. Ou então recorremos ao vídeo, que é uma boa maneira de passar a mensagem quando não temos uma peça para mostrar.

Qual é a sua opinião: existe uma identidade europeia, ou devemos antes referir-nos a uma herança europeia?

A nossa tendência aqui é ver as coisas no plural, e é por isso que não falamos numa memória europeia mas em memórias. Quanto à identidade, existe o perigo de usar esse conceito como algo que é imposto de cima para baixo. E as pessoas podem ter várias identidades, aquela que as relaciona com a sua família, a que as liga ao seu país, e isso não impede que ao mesmo tempo se identifiquem como europeus. Nós preferimos trabalhar com o conceito da memória, porque é um conceito crítico e que evolui a toda a hora, não está fixo nem pode ser cristalizado. Pelo contrário, com a identidade existe um risco de se fixar uma descrição de umas certas características que depois não se adequam à tal diversidade de perspectivas. Assim, quando trabalhamos com a ideia de memória colectiva, conseguimos enquadrar os diversos pontos de vista e também o facto de que ela está sempre a mudar e a evoluir.