Destino de metade das lamas das ETAR sem rastreio
Dados dizem respeito ao primeiro semestre deste ano. Governo e quem trabalha no sector desvalorizam alerta da Zero, mas admitem problemas no encaminhamento destes resíduos que podem ser valorizados para uso agrícola mas, nalguns casos, são depositados em terrenos sem descontaminação.
O cenário é o de um terreno algures no interior do país, pejado de lamas escuras. A fotografia, que um ex-funcionário de uma empresa de gestão de resíduos nos mostra, é a de uma descarga ilegal de lamas resultantes da depuração dos efluentes de uma estação de tratamento de águas residuais (ETAR) domésticas, sem qualquer descontaminação. Situações destas, ilegais, dão origem, por vezes, a denúncias. Mas ninguém conhece a dimensão do problema. Em muitas situações, as descargas são feitas “com a conivência, e até a pedido”, dos proprietários dos terrenos. Portugal tem um registo electrónico do fluxo deste tipo de resíduo, mas na primeira metade deste ano os números indicam que não há informação sobre o destino dado a metade das quase 262 mil toneladas de lamas produzidas.
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O cenário é o de um terreno algures no interior do país, pejado de lamas escuras. A fotografia, que um ex-funcionário de uma empresa de gestão de resíduos nos mostra, é a de uma descarga ilegal de lamas resultantes da depuração dos efluentes de uma estação de tratamento de águas residuais (ETAR) domésticas, sem qualquer descontaminação. Situações destas, ilegais, dão origem, por vezes, a denúncias. Mas ninguém conhece a dimensão do problema. Em muitas situações, as descargas são feitas “com a conivência, e até a pedido”, dos proprietários dos terrenos. Portugal tem um registo electrónico do fluxo deste tipo de resíduo, mas na primeira metade deste ano os números indicam que não há informação sobre o destino dado a metade das quase 262 mil toneladas de lamas produzidas.
Em causa está um tipo de resíduo contaminado, em quantidades variáveis, por alguns metais pesados, compostos orgânicos e organismos patogénicos, mas que, se correctamente descontaminado, pode ter como destino principal a valorização agrícola — seja por deposição directa no solo, obedecendo a um plano de gestão de lamas, seja por incorporação em processos de compostagem, de que resulta um correctivo orgânico, para venda a qualquer agricultor. Estes processos estão sujeitos a legislação específica “de forma a evitar efeitos nocivos para o homem, para a água, para os solos, para a vegetação e para os animais”, como se lê num relatório da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), referente ao período de 2010-2013.
O relatório confirma uma queixa antiga dos ambientalistas, mostrando discrepâncias, que chegam a ser de 27%, num dos anos, entre o valor declarado por entidades produtoras — a maioria das quais ligadas ao grupo público Águas de Portugal (AdP), que gere quase mil ETAR — e os valores contabilizados nos vários destinos previstos. Há anos que Rui Berkemeier, antigo porta-voz da Quercus para a área dos resíduos e actual responsável, na associação ambientalista Zero, por este sector, vem alertando para estas disparidade, mas a sua preocupação perante o destino incerto de um pouco mais de metade das quase 262 mil toneladas produzidas só no primeiro semestre deste ano não é acompanhada pela secretaria de Estado do Ambiente, tutelada por Carlos Martins, que tem também uma experiência anterior no sector das águas.
A Zero pediu à APA os valores da primeira metade do ano, resultantes do preenchimento, obrigatório, desde 1 de Janeiro, das guias electrónicas de acompanhamento de resíduos. As e-GAR foram instituídas com o objectivo de garantirem a possibilidade de uma monitorização online, imediata, dos fluxos dos vários tipos de resíduos produzidos no nosso país, permitindo uma melhor acção de fiscalização e punição de infracções. No caso das lamas, os primeiros seis meses do ano mostram que as entidades que gerem as ETAR enviaram pouco mais de 130 mil toneladas para os designados “destinos finais” — entre os quais se destaca a incorporação em processos de compostagem, que geram um fertilizante agrícola —, mas que, no caso das 147 mil toneladas de sedimentos entregues a outras empresas licenciadas para lhes dar um destino final, falta informação sobre o destino de 89% dessas lamas. Estas empresas apenas registaram o encaminhamento de cerca de 16,5 mil toneladas para destinos previstos na lei.
Ninguém duvida de que uma parte destes resíduos vai parar a terrenos agrícolas ou florestais, sem qualquer tratamento prévio. Só não se sabe é quanto. A APA assume no relatório citado que as discrepâncias podem ter origem em usos à margem da lei e afirma que o Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (Sepna), da GNR, actuam perante situações flagrantes, ou denúncias. E, perante isso, o secretário de Estado do Ambiente considera que, como “todas as descargas ilegais reportadas” são objecto de intervenção de fiscalização, “se essas ocorrências tivessem a expressão referida pela Zero seriam seguramente muito significativos os processos de reclamação”. O que não acontece, é um facto.
Parte das lamas é líquido que se evapora
Aliás, Carlos Martins, que nestas como noutras questões polemizadas pela associação, acusa a Zero de fazer “leituras simplistas dos números”, argumenta que a associação não leva em devida conta que a operação de armazenagem conduz a uma perda de peso [das lamas] na ordem dos 30%, coincidindo, neste aspecto, com o que foi explicado ao PÚBLICO por fonte de uma empresa do sector.
O secretário de Estado acrescenta também que “a compostagem determina a perda do estatuto de resíduo e que, por essa via, as e-GAR deixam de constituir fonte de informação para monitorização do fluxo”. Mas este argumento “não faz qualquer sentido”, nota Rui Berkemeier, insistindo que a e-GAR é feita previamente, e que não há guias monitorizando a entrega destes resíduos para unidades de compostagem, ao contrário do que aconteceu com as lamas enviadas para este destino directamente pelos produtores.
As regras para as e-Gar, podem estar a mascarar o destino dado a estes resíduos, o que leva Rui Berkemeier a pedir uma clarificação do seu uso, por parte da APA, sob pena de o seu efeito, positivo, de rastreamento, se perder. A mesma empresa que descreveu ao PÚBLICO a importância das perdas resultantes por evaporação, explica que, quando as firmas que gerem as lamas têm os armazéns nas mesmas instalações das unidades de compostagem, não passam guia da transferência dos sedimentos para essas unidades. E relata outra questão: “Há concursos específicos para valorização agrícola em que, na realidade, as lamas, por falta de higienização”, não podem ser depositadas no solo, “e têm de ser estabilizadas ou encaminhadas para outros destinos à responsabilidade do operador que ganhou o concurso para um destino diferente daquele que terá de dar posteriormente ao resíduo”. Ou seja, apesar das boas intenções, as e-GAR “nem sempre fecham o ciclo de operações associadas a este resíduo”.
Contratos abaixo do preço
A Zero não desarma, e pede mais fiscalização a estas discrepâncias dado que, com as guias electrónicas, é possível ver, rapidamente, quem possa estar em incumprimento. Já o secretário de Estado deixa claro que as “preocupações” do Ministério do Ambiente e Transição Energética em relação a esta matéria passam pela “diversificação de formas de valorização mais do que no rastreamento das quantidades”. Sobre isso, no sector, há queixas de demora excessiva, que pode chegar aos dois anos, para emissão de um Plano de Gestão de Lamas, que implica a intervenção de entidades do Ambiente e da Agricultura, e sem o qual qualquer deposição directa, num terreno, é ilegal. E Carlos Martins responde a essa preocupação prometendo dar “prioridade” à articulação com o Ministério da Agricultura para “fomento da valorização agrícola e para a celeridade nos processos de licenciamento”.
Mesmo que factores como a evaporação, ou encaminhamento para outros usos não reportados, mas conformes, possam explicar parte do desvio nos números, entre os ambientalistas e no sector não há dúvidas sobre a existência de actividade à margem da lei, potenciada, até, pela própria concorrência existente, que gera um esmagamento dos preços: o factor determinante na escolha dos seus prestadores de serviço, assume a AdP. A empresa contactada pelo PÚBLICO queixa-se precisamente deste problema, assumindo haver “empresas que ganham contratos abaixo do valor de mercado”, pedindo valores “que na maioria das vezes nem pagam os custos de transporte”. Algo que associa aos concursos públicos “com preços base demasiado baixos e períodos contratuais demasiado curtos (maioria de 1 a 3 anos) que não permitem às empresas do sector estabilidade financeira para grandes investimentos”.