Impérios inconstantes: revolucionários e futuristas
Uma campanha pelos lagos da Lombardia e planícies do Pó onde escritores, cineastas e arquitectos encenaram mundos que cristalizavam o seu imaginário revolucionário. Stendhal, Marinetti, Visconti, Rossi, Garibaldi. Lugares que revelam a tensão resultante de fronteiras e identidades constantemente negociadas.
Na última parte desta viagem, regressamos ao Mediterrâneo, passando pelos lagos da Lombardia e pelos lugares que inspiraram narrativas de escritores, cineastas e arquitectos. Partimos de Griante, na margem do lago de Como, passando por Milão e pelas planícies do rio Pó até à Ligúria, e terminando em Nice. Este percurso permite-nos reflectir sobre o breve momento de entusiasmo republicano, no seguimento das Guerras Revolucionárias Francesas, que deu origem à República Cisalpina. Vamos encontrar marcas de conflitos num território cujas fronteiras foram constantemente negociadas, os lugares resultantes das migrações internas do pós-guerra e os monumentos que celebram a luta pela unificação de Itália. Estas paisagens revelam as tensões entre a imposição de fronteiras artificiais do Estado-nação sobre o mosaico orgânico de múltiplas identidades.
Perdido em Waterloo
Depois de entrar em Itália, seguimos o rio Mera, passando por Chiavenna. Aqui há um contraste entre a beleza das montanhas e a banalidade dos pavilhões que pontuam a strada statale. Entramos no braço norte do lago de Como, seguimos para sul pela margem oeste e ao passar por Dongo recordamos Fabrice, marchesino del Dongo, o herói de A Cartuxa de Parma (1839) de Stendhal.
Continuamos até Griante à procura das “colinas de formas admiráveis que se precipitam sobre o lago com encostas tão singulares” que permitem “reter todas as ilusões das descrições de Tasso e Ariosto. Tudo é nobre e terno, tudo fala de romance, nada nos lembra a fealdade da civilização”.
Foi nestas margens que Fabrice passou “o inverno melancólico” da sua infância, no castelo de Grianta — onde o seu pai professava “um ódio vigoroso pelo Iluminismo” e cujas paredes “negras e antigas eram agora os símbolos e outrora os instrumentos da tirania”. Quando recebe a notícia de que Napoleão escapou de Elba, decide atravessar os Alpes com a intenção de se juntar ao seu exército — apesar dos seus 16 anos — para “morrer ou vencer com esse homem marcado pelo destino,” porque “ele queria dar-nos uma pátria” — il voulut nous donner une patrie. Nesse mesmo dia Fabrice passa as montanhas entre Griante e Menaggio.
Procurámos recriar esse percurso explorando os caminhos entre Griante e o Sasso San Martino — o enorme rochedo que paira sobre a pequena vila. Acompanhados por borboletas cor de laranja, subimos o trilho de seixos redondos até descobrir, escondida entre a vegetação, a Capella degli Alpini. Lá dentro encontramos murais em que alpinistas enfrentam tempestades de neve, ao lado das listas de nomes que homenageiam os caduti nas duas grandes guerras.
Lembramo-nos de como Fabrice chega eventualmente aos campos de batalha de Waterloo e pouco a pouco descobre que “a guerra não é, portanto, esse nobre e mútuo impulso de almas amantes da glória que ele tinha imaginado a partir das proclamações de Napoleão”. Esse é o final da sua infância, em que a única inocência que mantém é a de ainda se interrogar “se o que testemunhou era uma batalha e, além disso, se essa batalha era Waterloo?”
Foi enquanto se “passeava à beira do lago, na avenida de plátanos sob a Casa Sommariva” que Fabrice decidiu partir para essa batalha. Essa casa pertencia a Gian Battista Sommariva, um dos líderes da República Cisalpina. No prefácio da sua Constituição (1797), Napoleão afirma: “Durante muitos anos não existiu república em Itália. O fogo sagrado da liberdade foi extinto e a melhor parte da Europa esteve sob o jugo de estrangeiros. Incumbe à República Cisalpina mostrar ao mundo (...) que a Itália moderna não decaiu e que ainda é digna de liberdade.”
Fomos visitar a Villa Sommariva, em Tremezzo, um palácio branco à beira do lago, pousado sobre um jardim do século XVIII. No átrio, encontramos o busto de Sommariva — a sua toga pregada com uma fíbula redonda —, cuja melancolia o aproxima mais dos heróis românticos do seu século do que dos astutos senadores romanos. Quando, em 1802, não foi designado vice-presidente da República de Italiana — o novo nome da República Cisalpina —, decidiu abandonar a vida pública e dedicar-se a expandir a sua colecção de arte. Caminhando pelas salas pálidas, encontramos vestígios dessa colecção — Palamède (1808) e Terpsichore (1811) de Antonio Canova, e o friso monumental L’Entrée d’Alexandre le Grand dans Babylone (1828), de Bertel Thorvaldsen. Do jardim, olhamos as montanhas sobre a margem leste do lago, no sopé das quais uma outra villa branca espelha a Casa Sommariva.
Ao atravessarmos o lago até Bellagio, essa villa branca transforma-se na Villa Melzi, rodeada pelos seus extensos jardins. Quando olhamos para trás, a Villa Sommariva dissolve-se na sombra do Sasso San Martino.
Caminhamos ao longo do lago até ao jardim da Villa Melzi, passamos por grutas românticas, um gazebo oriental e uma capela neoclássica. Na orangerie, encontramos alguns despojos da República Italiana (1802-1805), da qual Francesco Melzi d’Eril era vice-presidente, como um exemplar da Constituição e uma gravura do seu perfil ao lado do de Napoleão. Esta república foi rapidamente substituída pelo Reino de Itália, sob o I Império Francês, aqui testemunhado por uma águia imperial — aigle de drapeau — que servia de estandarte aos regimentos da Grande Armée.
Melzi mandou construir esta villa em 1808, para onde se retirou apesar de continuar a ser chanceler do Reino de Itália. Após a abdicação de Napoleão em 1814, o Congresso de Viena devolveu este território ao Império Austríaco, o que deu origem ao Reino Lombardo-Veneto. Para além deste reino, o mapa de Itália ficou nessa altura dividido entre o Reino de Nápoles e das Sicílias a sul, um conjunto de pequenos estados no Centro e o Reino da Sardenha-Piemonte no Norte. Em Viena, os representantes das monarquias redesenharam o mapa da Europa para tentar impedir a consolidação do republicanismo, impondo um conjunto de fronteiras geográficas arbitrárias cujo resultado foram tensões que duraram todo o século XIX até conduzirem à I Guerra Mundial, em 1914.
O velho futurista
No centro de Bellagio, passamos por lojas antigas que protegem as montras do sol com toldos escuros que evocam procissões fúnebres. Lembramo-nos que Filippo Tommaso Marinetti morreu em Bellagio. Em 1909, nas páginas de Le Figaro, publicara o Manifeste du Futurisme, apelando a uma rebelião contra os museus, bibliotecas e academias — “esses cemitérios de esforços desperdiçados” — para livrar Itália dos seus bandos de “professores, arqueólogos, cicerones e antiquários” e, em vez disso, glorificando “as marés polifónicas da revolução nas capitais modernas”, elogiando “o vibrante fervor nocturno dos arsenais e estaleiros incendiados por violentas luas eléctricas”.
Esse programa artístico tinha uma componente política, que o levou a fundar o Partito Futurista Italiano em 1918. Foi no ano seguinte que Marinetti e os seus seguidores participaram numa reunião na Piazza San Sepolcro em Milão, em que fundiram o seu partido com o recém-formado Fasci Italiani di Combattimento, liderado por Benito Mussolini. Os participantes nessa reunião fundadora passaram a ser conhecidos como sansepolcristi.
O Mediterraneo Futurista, publicado em Agosto de 1942, comunica a partida de Marinetti — aos 65 anos — como “voluntário para a frente Russa [cumprindo] um daqueles gestos de alto patriotismo que sempre caracterizaram a sua vida de poeta freneticamente enamorado pela pátria”. No cabeçalho, sobre um desenho de uma cidade futurista que evoca a Città Nuova de Antonio Sant’Elia, podemos ler “F. T. Marinetti Sansepolcrista — Accademico d’Italia.”
Em 1943, depois do Armistício de Cassibile, as forças alemãs invadiram o Norte de Itália, o que conduziu à instituição da Reppublica Sociale Italiana, que ocupou a metade norte do território Italiano e estabeleceu a sua capital em Salò — na margem oeste do lago de Garda.
Enquanto esperamos pelo barco — traghetto — para regressar a Tremezzo, reconhecemos o lugar de uma das cenas do filme Rocco e os Seus Irmãos (1960), de Luchino Visconti. Prosseguimos até Cernobbio — no extremo sudoeste do lago de Como —, onde encontramos a Villa Erba, a casa da avó de Visconti. Foi aqui que o realizador passou os verões da sua infância e regressou para a montagem de Ludwig (1973), sobre o monarca que patrocinou a estada de Richard Wagner em Lucerna. Este foi o último filme da “trilogia alemã” que inclui Morte em Veneza (1971) — inspirado no romance de Thomas Mann — e Os Malditos (1969) — cujo título original, La Caduta degli Dei, tem origem no último capítulo da tetralogia de Wagner, O Anel do Nibelungo.
Da margem do lago, em frente à Villa Erba, conseguimos ver ao longe duas estruturas na cidade de Como, o Tempio Voltiano (1927) e o Monumento ai Caduti (1930-33), que apesar de contemporâneos são muito diferentes. O primeiro é um edifício neoclássico e celebra Alessandro Volta — o inventor da bateria e membro do governo da República Cisalpina. O segundo é um projecto de Giuseppe Terragni baseado num desenho futurista de Sant’Elia.
Em Como, encontramos a Casa del Fascio (1932-36), um projecto de Terragni cujo carácter escultórico e abstracto evoca as matrizes geradas pelos algoritmos geométricos de Sol Lewitt. A sua praça, que tenta recriar um espaço público romano, e a sua fachada serviam de lugar de encenação do espectáculo político fascista, de acordo com o seu programa enquanto sede administrativa local de propaganda e “educação social”.
Continuamos a nossa viagem para sul em direcção a Milão, onde fomos visitar a Villa Necchi-Campiglio (1935), que durante a II Guerra Mundial foi requisitada para ser a residência de Alessandro Pavolini, que chefiava o Ministero della Cultura Popolare — Minculpop. Esta casa foi projectada por Piero Portaluppi para as irmãs Necchi — Nedda e Gigina — e Angelo Campiglio — o marido de Gigina — uma família da alta borghesia industriale lombarda que durante a guerra se refugiou no Piemonte.
Entramos pelo portão da Via Mozart, percorremos o jardim que vai revelando lentamente o percurso até à entrada da casa, a partir da qual se vê a piscina, previamente camuflada pela vegetação. No interior, os espaços sociais são austeros e sumptuosos, pontuados por obras do Novecento Italiano — Sironi, Di Chirico, Morandi — e percebe-se porque foi utilizada como décor do filme Eu Sou o Amor (2009), de Luca Guadagnino. Passamos pelo jardim de Inverno que parece suspenso numa nuvem verde, com uma escultura de bronze de Adolfo Wildt, que representa Parsifal. Algumas das salas já não correspondem ao desenho original de Portaluppi, adoptando um estilo neo-barroco que tenta camuflar a austeridade modernista por vezes conotada com a estética do regime fascista.
No final da guerra, Pavolini fugiu em direcção aos Alpes e foi capturado — tal como Mussolini — próximo de Dongo.
Imigrantes milaneses
No último capítulo de Vida de Henry Brulard (1890) — a autobiografia da adolescência de Stendhal —, este desenhou um mapa para explicar a sua chegada a Milão em 1800. Seguindo as suas referências, atravessamos o canal — hoje Via Senato —, passamos pelos arcos da Porta Nuova e seguimos a Via Manzoni até à Casa d’Adda — onde Stendhal ficou alojado nessa primeira estada — cuja fachada ainda não estava terminada e “mostrava os tijolos ásperos como San Lorenzo, em Florença”.
Stendhal escreveu: “Esta cidade tornou-se para mim o mais belo lugar da terra. Não sinto o mesmo afecto pela minha pátria (...) Milão foi para mim, entre 1800 e 1821, o lugar onde constantemente desejei habitar.”
Passamos pela Via Monte Napoleone e pela Via dei Bigli até chegar à Via Morone, uma rua estreita que invulgarmente serpenteia até revelar pouco a pouco a Piazza Belgioioso.
Esta pequena praça é dominada pelo elegante Palazzo Belgioioso — cujos frescos mostram as aventuras dos heróis de “Tasso e Ariosto”. O chão da praça está totalmente coberto por seixos redondos de vários tons que formam padrões geométricos raros. Era aqui que Stendhal visitava Métilde Dembowski, que em Vertigo (1990) W. G. Sebald descreve como “uma mulher de grande beleza melancólica”.
Continuamos o nosso caminho até ao teatro La Scala, é aqui que Stendhal coloca a Comtesse Pietranera — tia de Fabrice —, uma personagem baseada em Métilde: “Jovem, brilhante, leve como um pássaro (...) a sua beleza era o menor dos seus encantos: onde encontrar uma alma tão sincera que nunca age com cautela, que se abandona totalmente ao ímpeto do momento.”
Terminamos em frente ao Duomo e lembramo-nos da cena inesquecível de Rocco e os Seus Irmãos, onde Rocco — Alain Delon — se encontra com Nadia — Annie Girardot — na cobertura da catedral.
É a pensar no início deste filme que conduzimos para leste na direcção da periferia, em busca do Quartiere Filzi — para onde Rocco, os irmãos e a mãe vão viver quando chegam a Milão. Este é um projecto de habitação social promovido pelo Istituto Fascista Case Popolari, desenhado por Franco Albini, em 1932, e um exemplo do racionalismo italiano. Visconti escolheu este lugar para representar as habitações despojadas que alojavam os recém-chegados das migrações do Sul rural para o Norte industrializado resultantes das enormes alterações económicas provocadas pela unificação de Itália.
O filme termina no lado oposto da cidade, à entrada da fábrica da Alfa Romeo em Sportello, onde Rocco — que decidiu regressar ao Sul — se despede do irmão Ciro antes de este se dissolver na massa de operários que são engolidos pelo portão da fábrica.
Atravessamos toda a cidade até Gallarate na periferia oeste de Milão, passando pelo parque urbano que hoje ocupa o lugar dessa antiga fábrica.
Chegamos ao conjunto de habitação colectiva Gallaratese II (1967-74), projectado por Aldo Rossi e Carlo Aymonino, como resposta à crise habitacional do pós-guerra.
A intenção dos arquitectos era a de desenhar uma cidade ideal, com diferentes tipos de habitação, espaços públicos e comércio, que se percorresse a pé. Apesar de se sentirem ecos conceptuais e formais da Unidade de Habitação de Le Corbusier — que visitámos em Marselha —, as soluções encontradas aproximam-se mais da complexidade gerada pela sedimentação e sobreposição das cidades medievais — passamos por várias praças, arcadas, escadas, até a um anfiteatro ao ar livre.
A visão utópica deste conjunto de habitação social não resultou — durante anos os edifícios estiveram abandonados — e hoje formam um condomínio fechado, somente acessível às famílias que ali habitam.
Ao reflectir sobre o projecto de Gallatarese II, Rossi afirma que este “elucida a [sua] ideia principal sobre a cidade e os lugares onde vivemos: que devem ser vistos como parte da realidade da vida humana, [sendo] como cópias de diferentes tempos e observações: (...) pátios plenos de vozes e encontros (...) exerciam o mesmo fascínio que (...) as casas dos monges na Certosa di Pavia”.
O frio do Pó
Atravessamos a planície do Pó para visitar essas casas, organizadas em torno de um grande claustro onde 23 cartuxos viviam em reclusão e silêncio. Também a Cartuxa de Pavia foi projectada como uma cidade ideal. Foi construída durante o século XV por ordem do duque de Milão, Gian Galeazzo Visconti, tendo sido durante vários séculos o lugar de retiro espiritual dessa família.
O complexo da Cartuxa é todo vermelho-terracota, com a excepção do mármore branco da fachada da igreja e dos apartamentos dos príncipes.
A dualidade entre estas duas cores recorda-nos o contraste entre o bloco horizontal branco e os edifícios terracota de Gallatarese II.
Rossi escreveu a sua Autobiografia Scientifica (1981) inspirado na autobiografia de Stendhal: “Precisamente porque escrevo uma autobiografia dos meus projectos que está ligada à minha história pessoal, não posso deixar de lembrar o efeito que a leitura de Vie de Henry Brulard teve em mim quando era menino. Foi talvez através dos desenhos de Stendhal e dessa estranha mistura entre autobiografia e plantas de edifícios que adquiri os primeiros conhecimentos de arquitectura.”
Pouco depois de deixarmos a Cartuxa de Pavia, cruzamos o rio Pó. Rossi, num texto a propósito do fotógrafo Luigi Ghirri, descreve estas planícies: “Se visitássemos as vilas abandonadas devastadas pelas grandes cheias do Pó, não encontraríamos sinais de morte, mas apenas alguns fragmentos miseráveis. Por vezes, penso no passado como um arqueólogo: como alguém que vive num mundo cujas aparências e mecanismos são familiares, mas que perdeu o sentido do que o rodeia.”
Isto faz-nos lembrar a visita de Stendhal a Marengo “no dia 27 de Setembro de 1801”. Nós percorremos o terreno da Batalha de Marengo, entre Castelceriolo, San Giuliano e Torre Garofoli, numa tarde sombria, onde encontrámos árvores despidas, numa paisagem marcada pelo abandono melancólico.
No ano anterior Stendhal tinha atravessado os Alpes com o exército de Napoleão que marchava em direcção a essa batalha. Os seus pensamentos divagavam entre recordações literárias de “Calderòn [de la Barca] fazendo as suas campanhas em Itália” e os “devaneios baseados em Ariosto e La Nouvelle Héloïse”; considerava-se um observador que só participava para testemunhar os grandes eventos.
No entanto, como Sebald descreve em Vertigo, quando Stendhal chega a Marengo, “exactamente quinze meses e quinze dias” depois da batalha que ocorreu no 25 Prairial, An VIII do calendário revolucionário, “olha para a planície e repara nas poucas árvores despidas, e vê, espalhados por uma vasta área, os ossos de talvez 16.000 homens e 4000 cavalos que ali perderam as vidas, já brancos e brilhantes com o orvalho”. Foi este o fim da sua inocência.
O anjo da História
Continuamos para sul, deixamos a planície do rio Pó, atravessando os montes que separam a Lombardia da Ligúria. Seguimos até Quarto, na periferia leste de Génova, para visitar o lugar de onde Giuseppe Garibaldi embarcou com a Spedizione dei Mille — um milhar de voluntários — a caminho da Sicília no dia 5 de Maio de 1860, um dos momentos cruciais do processo de unificação de Itália.
Chegamos ao final da tarde, o Mediterrâneo estava sombrio e as nuvens cinzentas suspensas no céu azul. Descemos até à água, onde sentadas nas rochas algumas pessoas aproveitavam o final do Verão. Dali são visíveis vários monumentos que celebram a partida de Garibaldi — a bandeira de Itália, um marco com uma estrela no topo e uma lista com os nomes dos mil revolucionários que se juntaram a Garibaldi. Lembramos o filme O Leopardo (1963), de Visconti, baseado no romance homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, que representa os anos que se seguem ao fim da monarquia dos Bourbon no Reino de Nápoles e a fusão deste com o Reino de Itália.
No filme, Tancredi, representado por Alain Delon, junta-se aos Garibaldini na luta das ruas de Palermo contra as tropas do reino de Nápoles. Ele é um jovem ambicioso que aproveita as oportunidades criadas pelas mudanças de poder dessa época conturbada — a sua lealdade mudando constantemente de acordo com a conveniência — para reflectir com o seu tio, Fabrizio, príncipe de Salina, que as coisas vão mudar para que tudo possa ficar na mesma.
As nuvens adensam-se colorindo o mar de chumbo, e nós permanecemos em silêncio, pensando sobre o ímpeto ancestral de atravessar o Mediterrâneo, que desde Ulisses permanece como um desafio para as errâncias peripatéticas dos audaciosos.
No dia seguinte, em Génova, caminhamos sob a arcada da Via XX Settembre até ao Largo Sandro Pertini, onde encontramos o Monumento a Garibaldi em frente ao Teatro Carlo Felice — cujo nome homenageia o rei da Sardenha, que o encomendou em 1824. Este teatro de ópera foi bombardeado durante a II Guerra Mundial, tendo ficado em ruínas durante décadas, sendo finalmente renovado, segundo o projecto de Aldo Rossi em 1991.
Do teatro original só restaram as colunas do pronau e a inscrição latina coroada por um anjo. Uma figura trágica, com um braço despedaçado, erguido sobre os destroços da catástrofe, “ele gostaria de parar um momento, para ressuscitar os mortos e reconstruir o que foi destruído”. As suas asas parecem abertas pela “tempestade que sopra do Paraíso [e o empurra] irresistivelmente para o futuro, para o qual tem as costas voltadas”. Nas melancólicas palavras de Walter Benjamin, “aquilo a que chamamos o progresso é esta tempestade”.
Conduzimos para oeste, na última parte da nossa viagem, ao longo da costa da Ligúria, e passamos a fronteira em direcção a Nizza, ou como é conhecida hoje, Nice. Foi o local onde nasceu Garibaldi, um território que fazia parte do Reino Sardenha-Piemonte e foi negociado com Napoleão III em troca da Lombardia após a Batalha de Solferino, em 1859.
Neste contexto de fronteiras nacionais em constante negociação, de identidades culturais em permanente conflito, relembramos as personagens que nos acompanharam ao longo desta viagem viagem — Gray, Rousseau, Sebald, Stendhal — e as palavras de Beauvoir sobre a tia de Fabrice, Sanseverina: “‘uma alma sempre sincera, que nunca age com cautela, que se entrega totalmente à impressão do momento;’ (...) ela não é senão a sublime e imprudente aventura que escolheu viver”.
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Estes ensaios, escritos e fotográficos, são o resultado de uma investigação sobre territórios e entusiasmos partilhados desde os percursos diários passados a ler Stendhal e Mann — no comboio entre Amsterdão e Roterdão em 2001— e o final desta longa viagem.