“Acredito muito que mudo o mundo”
Ana Paula tem 26 anos e é médica. Depois de Moçambique, Angola e Grécia, prepara-se para o Bangladesh. "É preciso ir lá para doer". Missão: Possível.
Moçambique, Angola, Grécia e Bangladesh. Não é um catálogo de uma agência de viagens. Nem sequer os destinos turísticos na lista de desejos para as 12 passas. Desta história não fazem parte postais ilustrados ou poses no Instagram, hotéis frondosos ou refeições abundantes. “Não consigo”, vinca Ana Paula Cruz, que aos 26 anos não concebe “viajar por turismo”. Nunca o fez. “Não consigo visitar um país para o ver”, repete. “Preciso de ter as pessoas, preciso de as abraçar e de as sentir e de lhes dar alguma coisa de volta. Não concebo um turismo egoísta de só receber. Contribuir economicamente para o crescimento daquele país não me chega. Não vou pelos sítios, vou pelas pessoas. Só dou. Dou tudo.”
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Moçambique, Angola, Grécia e Bangladesh. Não é um catálogo de uma agência de viagens. Nem sequer os destinos turísticos na lista de desejos para as 12 passas. Desta história não fazem parte postais ilustrados ou poses no Instagram, hotéis frondosos ou refeições abundantes. “Não consigo”, vinca Ana Paula Cruz, que aos 26 anos não concebe “viajar por turismo”. Nunca o fez. “Não consigo visitar um país para o ver”, repete. “Preciso de ter as pessoas, preciso de as abraçar e de as sentir e de lhes dar alguma coisa de volta. Não concebo um turismo egoísta de só receber. Contribuir economicamente para o crescimento daquele país não me chega. Não vou pelos sítios, vou pelas pessoas. Só dou. Dou tudo.”
Lokas é médica. Nasceu em Celorico de Basto, estudou no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto, e trabalha num centro de saúde em Freamunde. No próximo dia 21 de Outubro agarra numa licença sem vencimento e parte rumo ao Bangladesh (directamente ao campo de refugiados de Cox’s Bazar) e à sua quarta missão humanitária que irá de encontro aos rohingyas, que fogem aos milhares para escapar a uma “limpeza étnica”, palavras da ONU. Há décadas que a minoria muçulmana é perseguida, torturada e assassinada na Birmânia. “Tornou-se um problema muito real e muito violento. As Nações Unidas falam em genocídio. Adoro a minha vida aqui, as pessoas que posso cuidar todos os dias como médica cá, mas sou precisa lá. Dói muito, mas vou. Claro que vou. É uma merda. Vai ser horrível. Sei que vou chorar muitas vezes. Não ir é hipócrita, é fecharmo-nos em nós e nos nossos problemas pequeninos. É achares que o mundo é do nosso tamanho. E não é, é muito maior”, acentua Ana Paula, que volta “mais atenta” sempre que volta.
No fundo, algo lhe repete “faz qualquer coisa, não te acomodes”. “Eu tenho 26 anos! Ninguém me diz que o mundo é assim e que não pode ser doutra maneira. Somos do mundo e o mundo é responsabilidade nossa. Se está a dar merda ali, precisas de fazer alguma coisa. Siga.” Trata das burocracias e faz uma mochila em três tempos. “Preciso de ver os bebés que nasceram de violência e de violações em massa, preciso de ver estas mamãs que estão tão magoadas, de saber o que é esta dor para saber como posso curá-los. Não consigo esperar. Não é para o ano, é agora. É urgente. Há tanta coisa a acontecer tão difícil que temos que falar sobre isso. Como é que acontece aqui, no nosso mundo casa?”
No fundo, e à superfície, sente a “necessidade de ir onde dói a sério”. Diz ter “consciência do mundo” em que vive. Não aceita as coisas como são e deseja que a história seja diferente — e faz por isso. Olha por “pessoas que estão longe dos olhos e, portanto, longe do coração”. “São pessoas que morrem longe”, resume.
Percebeu em 2015 que era “do mundo”. “A casa vai ser longe do sítio onde nasci”, entendeu em Moçambique, sem telemóvel ou redes sociais, “livre” e com quatro t-shirts e a missão de vacinar crianças, de fornecer cursos de primeiros socorros nas escolas e de ajudar os adolescentes a olhar para o futuro. “Não vi ninguém morrer, mas vi pessoas a passar muitas dificuldades numa aldeia esquecida do mundo. É difícil mudar a pobreza crónica. Antes de mudar tens que os capacitar, têm que crescer com a mudança e não impor coisas”, explica Ana, habituada a “plantar sementes sem saber se vai dar fruto”, sem ter essa “expectativa”. “Acreditas que vão sair dali coisas boas e percebes que os frutos não são para ti.”
No ano seguinte, precipitou-se no seu horizonte Lesbos (com a Plataforma de Apoio aos Refugiados) e uma mensagem clara da Europa para os refugiados: “Eu tolero que estejas cá, mas não te aceito, não te acolho”. Num bloco cheio de informação, Lokas foi escrevendo o nome das pessoas “isoladas e esquecidas” que se foram cruzando no seu caminho. “Ninguém te vê”, assinala hoje. “Sobreviveste apesar de tudo o que viste, viveste e apesar de tudo o que te morreu. Quando voltamos destes sítios voltamos com a responsabilidade destas pessoas que fizemos nossas e que ninguém quer ouvir. A voz deles na Europa está super-silenciada porque são árabes e são muçulmanos, as pessoas têm medo e desconfiam deles, ‘O que é que estão cá a fazer? Vão-nos roubar os empregos’... Eu tenho a responsabilidade de falar da história de vida deles, de falar do quão bons eles também são. O mundo anda tão distraído que achamos que eles são maus ou que são terroristas. Uma coisa que aprendi muito com eles é que quem foge da guerra não foge apenas para não morrer, foge para não ter que matar, para não ter que pegar numa arma.”
E depois Angola (três meses entre Cacanda e Lóvua com o Serviço Jesuíta aos Refugiados) e o reflexo de picos de violência que ecoou de conflitos étnicos na República do Congo, “valas comuns, aldeias queimadas, feridas recentes, feridas abertas, indiferença”. “Chegavam com feridas de catana para suturar”, lembra Ana Paula, com um olhar mais curativo, 500 casos de malária por semana, mulheres grávidas que perderam os bebés porque estiveram demasiado tempo em trabalho de parto e pessoas com necessidades básicas: “água, luz e sangue”. “Nunca vi morrer tanta gente só porque o mundo não quer saber. No dia anterior estas pessoas estavam a fugir com a dor de perder a família inteira e de se perderem a eles.” Quando a médica parava, Lokas andava pelo campo, olhava para as pessoas, dizia uma palavras em lingala (“A branca fala lingala!”), dava-lhes a mão e avançava. “É isso que os cura, a capacidade de os ver.” Estavam mil pessoas quando chegou. Ficaram dez mil quando partiu.
“Os números”, diz, “são abstractos”. “Não falam da dor real das pessoas. Não nos falam nem de nomes, nem de corações, nem de histórias de vida. Não nos tocam na pele. O mundo é mesmo grande. Há tanta coisa a acontecer que precisamos de ir lá ver com os nosso olhos. Siga, por favor! Não vou ficar! Não vai dar! Tem que nos doer inteiro, patadas directas. Quero estar sempre muito susceptível à dor deles e sentir tudo. E arranjar estratégias para no dia seguinte estar power on. Voltamos sempre destes sítios com o coração em pedacinhos. Mas é uma dor necessária que toda a gente tem que sentir. É preciso ir lá para doer. É preciso estar lá quando chove nas tendas ou quando não há água para ninguém. Falem de nós.”
Quer continuar a ir, mas “pelas razões certas”. “Estou a estudar o mundo”, diz. “O mundo dá-me a conhecer o mundo”. Só admite visitar um país para o ver quando o mundo estiver curado. “Dentro de dez anos”, brinca. “Acredito muito que mudo o mundo. Mudamos todos.”