Mulheres com tomates – e os filhos delas
Na segunda edição, o evento organizado pela NUTS juntou filhos e filhas para falarem da influência das mulheres fortes da vida de cada um.
Todos os chefs que tentavam fazer algo de original e procuravam produtos diferentes conheciam Maria José Macedo e a sua Quinta do Poial, em Azeitão. E todos acharam que a sua morte, inesperada (sabia-se que estava doente mas ninguém queria acreditar que a doença teria aquele desfecho), seria o fim de um projecto de produção de legumes e ervas aromáticas biológicas que nasceu quando muito poucos em Portugal tinham já despertado para isso.
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Todos os chefs que tentavam fazer algo de original e procuravam produtos diferentes conheciam Maria José Macedo e a sua Quinta do Poial, em Azeitão. E todos acharam que a sua morte, inesperada (sabia-se que estava doente mas ninguém queria acreditar que a doença teria aquele desfecho), seria o fim de um projecto de produção de legumes e ervas aromáticas biológicas que nasceu quando muito poucos em Portugal tinham já despertado para isso.
“A minha mãe morreu sábado à noite e na terça-feira estávamos a entregar encomendas aos chefs”, contou a filha de Maria José, Joana Macedo, durante a segunda edição do Mulheres Com Tomates, um debate organizado pela NUTS Branding (comunicação ligada à alimentação, um projecto de Patrícia Conde e Laura Lopes) e integrado na Lisbon Food Week, que decorreu nos primeiros dez dias de Outubro.
Joana vem das áreas de dança, cinema e design e a relação que tinha com a agricultura era apenas através da mãe, que um dia abandonou o trabalho como economista, e França, onde viviam, porque, como resumiu a filha, “acreditava que podia transformar o mundo a partir de um hectare e meio em Azeitão”. Com a morte de Maria José, Joana não teve tempo para pensar. “Na agricultura não se pode fechar a porta”, explicou ao público que assistiu ao debate Mulheres Com Tomates no Second Home, em Lisboa.
Esta segunda edição da iniciativa da NUTS tinha como tema "As Sementes", centrando-se não apenas nas histórias de mulheres marcantes nas suas áreas, sempre ligadas à comida, mas também nas dos filhos ou filhas. Em torno da mesa, para um debate moderado por Sandra Nobre, sentaram-se Leonor Freitas, dos vinhos da Casa Ermelinda Freitas, Joy Jung, proprietária do hotel algarvio Vila Joya, Madalena Mota, dos açorianos Chás Gorreana, Leopoldo Calhau, cozinheiro de momento sem restaurante, e Niccolò Corallo, chocolateiro da loja Bettina e Niccolò Corallo, projecto que tem com a mãe em Lisboa.
Ao contrário do que tinha acontecido na primeira edição, em que o debate se centrou muito na discriminação das mulheres nas cozinhas, este ano houve mais espaço para ouvir as histórias de cada um e encontraram-se algumas coincidências. Se Joana se viu, de um dia para o outro, com um negócio nas mãos do qual não sabia praticamente nada, Joy Jung perdeu a mãe muito jovem e herdou aquele que tinha sido o projecto da vida de Cláudia, o hotel Vila Joya.
Quando as mães eram vivas, tanto Joana como Joy sentiam ciúmes desse "irmão" diferente que era o projecto que as privava muitas vezes da presença quer de Maria José quer de Cláudia. “Aquela quinta era o irmão mais novo que se odeia porque rouba toda a atenção da mãe”, contou Joana, confessando que “foram precisos alguns anos para fazer as pazes com a Quinta do Poial”. “O meu pai disse numa entrevista que o Vila Joya era a minha irmã gémea”, recordou, por seu lado, Joy.
Hoje, a proprietária do Vila Joya, depois de anos de dúvidas, de inseguranças, de necessidade de se impor e de se fazer respeitar pela equipa (o chef Dieter Koschina foi inicialmente dos mais duros com ela, apesar da amizade que os une) diz que já sente “a criança” como sendo dela. Joana ainda não está aí – Maria José morreu há dois anos e foram dois anos em que não teve praticamente tempo para pensar, até porque, afirma sem estados de alma, “ninguém" acreditava nela, "zero”.
Até que ponto estes filhos fizeram uma escolha consciente e pensada? Será que foram os projectos que, de alguma forma, os escolheram a eles? Niccolò cresceu em África e viveu a maior parte da vida em São Tomé, entre as plantações de cacau do pai, Cláudio Corallo e da mãe, Betina – que, como contou o filho, se apaixonou por Cláudio quando tinha 14 anos, casou com ele aos 18 e com ele teve três filhos, antes de se separarem há uns anos, o que a fez vir para Lisboa, onde tem hoje a loja de chocolates com Niccolò.
“No meu caso não foi uma escolha”, disse o jovem chocolateiro, “trabalhei mais ou menos desde os nove anos, desde que tenho memória”. O que precisou foi de ganhar o respeito dos outros – a esse esforço não é alheia a barba que entretanto deixou crescer –, provar que, apesar de franzino, quando se dedicava a alguma coisa era bom. “Era pequeno, magro e novo, mas trabalhava muito.”
O mesmo enfrentou, embora noutra época, Leonor Freitas que, apesar de vir de uma linhagem feminina à frente da produção de vinho em Setúbal, sentia-se sempre desconfortável quando numa reunião era a única mulher na sala. “No início não podia errar. Agora já posso”, declarou. Foram três gerações de mulheres que se viram à frente da casa porque os maridos morreram cedo. “Tive que me afirmar, mas depois as pessoas começaram a acreditar”, explicou, recordando a desconfiança com que algumas das suas ideias mais inovadoras foram inicialmente recebidas.
Mais uma vez surgiram as semelhanças quando Madalena Mota contou a sua experiência. Tal como Leonor, também ela se afastou inicialmente do negócio familiar, estudou noutras áreas, teve outros trabalhos – mas “esses foram paixões, este é amor”, garantiu, falando com entusiasmo do percurso que têm os Chás Gorreana, marcado também, muitas vezes, pela capacidade e vontade de inovar.
Talvez o único na mesa que escolheu a sua actual actividade sem ter o peso de herança familiar tenha sido Leopoldo Garcia Calhau, que um dia decidiu trocar a arquitectura pela cozinha e abriu primeiro o Sociedade, na Parede, e depois o Café Garrett, em Lisboa, recentemente encerrado.
Mas, mesmo nesse caso, por trás desta paixão mais recente está a memória dos sabores alentejanos, herdada da mãe (e do pai) e de uma outra mulher, a tia Comba, que criou a mãe depois de os pais desta terem morrido, e que, quando ela casou, a ensinou a cozinhar “por correspondência”, enviando receitas nas cartas que lhe escrevia. É do saber dessa tia, e das mãos da mãe, Joana, que ainda hoje sai o pudim de noz que Leopoldo nunca deixa de servir nos seus restaurantes e que, claro, levou com ele para a mesa das Mulheres com Tomates.