Bolsonaro esticou o Brasil para a direita, Haddad vai tentar puxar para a esquerda

Se antes das eleições o parlamento brasileiro já era imensamente fragmentado com 25 partidos representados, agora passou a haver 30, ultrapassando em muito as possibilidades de representação ideológica. “Houve uma onda de direita porque esta foi capaz de propor rostos novos quando se verifica um cansaço total com os políticos tradicionais”.

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O presidente do Partido Social Liberal (PSL), junto a um cartaz de Bolsonaro Antonio Lacerda/EPA

A matemática não favorece Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT), na segunda volta das presidenciais. Para ganhar ao candidato da extrema-direita, Jair Bolsonaro, precisará de convencer alguns eleitores como Maria Máximo, de 75 anos, vendedora de bonecas de pano numa banquinha na Praça da República, no centro de São Paulo, que não foi votar no domingo. “Não votei e não vou votar. A olho nu não vejo competência em nenhum deles para ser Presidente da República. O único que tinha era Lula, e o prenderam. No Haddad eu não voto. Não vejo nele a cara de um homem que possa comandar o Brasil.”

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A matemática não favorece Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT), na segunda volta das presidenciais. Para ganhar ao candidato da extrema-direita, Jair Bolsonaro, precisará de convencer alguns eleitores como Maria Máximo, de 75 anos, vendedora de bonecas de pano numa banquinha na Praça da República, no centro de São Paulo, que não foi votar no domingo. “Não votei e não vou votar. A olho nu não vejo competência em nenhum deles para ser Presidente da República. O único que tinha era Lula, e o prenderam. No Haddad eu não voto. Não vejo nele a cara de um homem que possa comandar o Brasil.”

Bisneta de portugueses – “da Ilha da Madeira”, frisa esta mulher de cabelo grisalho, preso num carrapito não muito apertado, rosto bonito –, não é uma abstencionista convicta, como o segurança negro que está ali ao lado e que ela desafia: “Miro, você votou?” “Eu não, nunca votei. Em quem votaria? Porquê perder meu tempo votando? São todos demagogos”, responde, e afasta-se.

“Eu não aprovo essa atitude. Mas prenderam a pessoa em quem eu ia votar e os políticos criaram toda essa crise”, explica Maria Máximo. “E eu ainda tenho casa, tenho carro. Aí nessas ruas de trás há tantas famílias encostadas na rua, porque não têm casa, não podem pagar. Põem a culpa no PT, mas todos têm a culpa”, afirma, ressentida. “No dia em que o nosso Presidente [Lula da Silva] for solto, o nosso Brasil vai melhorar.”

Fragmentação

Jair Bolsonaro teve 46,1% dos votos válidos, e encabeçou uma enorme vaga direitista, que fez com que o partido que apoia a sua candidatura, o Partido Social Liberal (PSL), se tornasse a segunda maior bancada no Congresso: terá 52 dos 513 lugares de deputados da Câmara, quando nas legislativas de 2014 tinha apenas dois. Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do candidato presidencial, conhecido por declarações machistas – entre as quais “mulher de direita é mais bonita e higiénica” – , foi eleito deputado federal por São Paulo, com um recorde: teve mais votos do que qualquer outro na história brasileira: 1.843.715, diz o jornal Estado de São Paulo.

“É de sublinhar que o nível cultural dos deputados diminuiu muito. O PSL é um partido que não existe, é uma sigla de aluguer, como dizemos no Brasil. Esses deputados que se elegeram são pessoas youtubers que fazem proselitismo contra gays, ou porte de arma, por exemplo”, explica ao PÚBLICO o historiador da Universidade de São Paulo, Lincoln Secco.  

O maior partido no Congresso continua a ser o PT, com 56 deputados. “Nenhum partido fez uma grande bancada mas, no panorama geral, o Partido dos Trabalhadores ainda ficou muito bem. Mas o PT governou 16 anos, é normal haver uma reacção conservadora. Mas sobretudo houve um cansaço com a velha política”, considera Esther Solano, da Universidade Federal de São Paulo, e coordenadora do livro O ódio como políticaA reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo), um livro lançado no início de Outubro, que reúne estudos de 15 investigadores sobre o papel e consequências da intolerância e do ódio em diferentes áreas sociais.

A novidade, nestas eleições, é que apenas a direita – a extrema-direita – conseguiu propor novos candidatos, novos nomes, e ideia de novidade, diz Esther Solano. “Muitos grandes políticos brasileiros foram rejeitados pelos eleitores, o que é uma coisa extraordinária, e vingaram candidatos novos, por exemplo no governo de Minas Gerais”.  

O Movimento da Democracia Brasileira (MDB), do Presidente Michel Temer, que durante décadas foi uma das maiores forças nos governos de coligação de todo o espectro político, caiu para a quarta posição na Câmara, com apenas 34 deputados. Antes tinha 66. Várias das suas principais figuras, como Eunício Oliveira, o presidente do Senado, não conseguiram a reeleição.

O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que foi o terceiro maior partido em 2014, caiu para nono. Na verdade, menos de metade dos deputados conseguiu a reeleição. E se antes o Parlamento já era imensamente fragmentado, com um 25 partidos representados, com estas eleições passará a haver 30, ultrapassando em muito as possibilidades de representação ideológica.

Cansaço com a velha política

“Houve uma onda de direita porque esta foi capaz de propor muitos nomes novos, rostos novos na política, quando se verifica um cansaço total com os políticos tradicionais”, explica Esther Solano.

“A extrema-direita aproveitou-se muito do cansaço das pessoas, da sua frustração. Não é que haja muitas pessoas fascistas, o que há é muita gente cansada com a velha política”, diz a investigadora. “É um paradoxo: a direita é que está a oferecer coisas novas às pessoas no Brasil. Um pouco como na Europa, infelizmente”, considera.

Esther Solano desenvolve um trabalho de investigação na periferia da cidade São Paulo que implica falar com ex-eleitores do Partido dos Trabalhadores que agora optaram por votar no candidato da extrema-direita. O que eles lhe dizem é que “Bolsonaro lhes oferece uma oportunidade de uma coisa diferente”. De algo novo que as pessoas não sabem bem o que é. “Dizem vamos dar-lhe uma chance. Ele oferece a ideia de ser uma pessoa forte, com a mão dura, que pode por ordem na sociedade e ainda ir contra o PT.”

Só que tudo isto é no campo das ideias, frisa a investigadora. Bolsonaro nunca concretizou o seu programa, mal participou em debates presidenciais – e nunca esteve frente a frente com Fernando Haddad, o seu opositor na segunda volta. A sua campanha passou-se nas redes sociais, guerreou com memes na Internet, frases feitas e guerra suja de fake news. “Muito como o Trump é uma figura do Twitter, mas há uma diferença importante. Donald Trump tinha poder quando chegou à Casa Branca. Bolsonaro vem da baixa política, pelo que terá dificuldades se chegar a governar. Falta-lhe dinheiro, ligações, poder”, salienta Esther Solano.

Levá-lo ao debate

Fernando Haddad teve 29,3% dos votos válidos na primeira volta de domingo. O petista tem de tricotar uma aliança puxada mais ao centro, para obter o apoio dos rivais da primeira volta. “O PT tem de convencer também eleitores que votaram em Bolsonaro ou que votaram em branco”, afirmou o historiador Lincoln Secco. Esse universo é grande: 68% dos eleitores não deram o seu voto ao ex-capitão do exército que faz da promessa de mão dura contra o crime a sua bandeira.

“É uma tarefa improvável, mas não impossível”, afirma Secco.

Há que tentar um equilíbrio difícil, para convencer Mário Máximo, a vendedora de bonecas de pano da Praça da República, e eventuais eleitores arrependidos de Bolsonaro a irem carregar no 13, o número do PT, na urna electrónica, a 28 de Outubro. “Os eleitores não podem sentir que está a romper com o ideário que o levou para a segunda volta, nem pode ser visto como sendo demasiado do ‘sistema’”, diz o historiador.

Mas a própria existência de uma segunda volta foi uma má notícia para Jair Bolsonaro, considera Secco. O candidato de extrema-direita “aumentou a sua liderança sem dizer nada, usando o argumento de que não podia comparecer a debates por recomendação médica, e só deu entrevistas a jornalistas que o apoiavam, ou de canais propriedade de apoiantes”, sublinhou.

“Se participar em debates com Haddad, vão verificar-se duas coisas: primeiro, a sua despreparação, sobre em questões económicas. Ele não sabe mesmo o que dizer. E segundo, o seu programa, elaborado pelo economista Paulo Guedes, é mesmo muito confuso, e contém medidas muito impopulares, como o fim do 13.º mês, praticamente acabar com a Segurança Social, a questão dos salários desiguais entre homens e mulheres”, elabora Secco.

Claro que o Bolsonaro pode sempre optar pela fuga, e não ir a debate nenhum com Haddad. “Mas isso será uma fragilidade, para um candidato cujo único ponto programático é quase só a criminalidade.”