Vincent Lindon: “Se faço os filmes que faço, não é porque esteja apaixonado por interpretar. É um meio de fazer o bem e de fazer política”
De um actor com uma missão — a empatia, ser o espelho das pessoas comuns — há novas, mantendo-se irredutível a melancolia. Filmes para ver na Festa do Cinema Francês e a seguir nas salas: A Aparição, sobre um repórter de guerra que persegue os factos e é abalroado pelo invisível; Em Guerra, sobre um sindicalista que perde a guerra na fábrica — as cores do sacrifício neste homem-espelho. O mundo como lugar de violência e a jornada para o habitar: eis o início desta entrevista.
Um miúdo com uma pistola de brincar em punho no seu home movie burguês... numa rubrica da TV francesa que se chamou Empreintes, aquele que é hoje um actor, uma star e um militante da empatia que tem feito do homem comum a estrela dos seus filmes, olhou para a sua infância. Vincent Lindon, 59 anos, habitava um paraíso triste que parecia a mansão de O Regresso a Howard’s End, o pai ausente pelo divórcio e uma mãe que parecia a Faye Dunaway de The Thomas Crown Affair e não tinha tempo para se interessar pelo filho... por isso as unhas roídas e os tiques de Vincent, por isso aquela arma de brincar, por isso a odisseia em adulto pelas provas de amor, por isso aquilo que faz hoje: como uma vingança, impõe ao mundo burguês protegido das suas origens o mundo proletário e o desamparo das pessoas comuns que escolheu interpretar, tornando-as visíveis e transformando-as em heróis. Sendo ele, por isso, o herói — é essa a sua condição, como se viu pela comoção que acompanhou a consagração em Cannes 2015 e nos Césares 2016 da sua interpretação de um desempregado em A Lei do Mercado, de Stéphane Brizé.
Desta evolução da “persona” Lindon, um daqueles actores “à antiga”, sempre “ele” quando recebe a personagem, o contrário da metamorfose, os seus dois últimos filmes, A Aparição, de Xavier Giannoli, e Em Guerra, de Stéphane Brizé, trazem novas — mantendo-se a irreversível melancolia, como se decorresse ainda a busca pelo paraíso que Vincent perdeu. Vamos poder ver esses filmes em antestreia durante a Festa do Cinema Francês, que decorre neste momento em Lisboa e alastrará a várias cidade do país.
Em A Aparição (dia 5, 6ª, às 21h30, no Corte Inglês, em Lisboa, e a partir de dia 11 em distribuição comercial), interpreta um repórter de guerra contratado pelo Vaticano para investigar a veracidade dos testemunhos de uma vidente — o que faz o céptico Lindon ser abalroado pelo invisível.
Em Guerra (dia 14, 21h30, Cinema São Jorge, e nas salas a 1 de Novembro) é a quarta colaboração do actor com o realizador de A Lei do Mercado e é o filme mais problemático da dupla. O actor interpreta um líder sindical que perde a guerra na fábrica. A missão de Lindon como actor cruza-se aqui, numa personagem sem intimidade, espelho dos desejos e frustrações do grupo, com espectáculo sacrificial.
Os seus filmes frequentemente mostram o mundo como lugar de violência e contam a busca de uma personagem para o conseguir habitar. A Aparição [Xavier Giannoli, 2018] e Em Guerra [Stéphane Brizé, 2018] dão-nos coisas novas e mais extremas dessa narrativa. No primeiro caso, o encontro com a fé de uma personagem obcecada com a verdade dos factos e que afinal se encontra com o invisível; no segundo, alguém que não consegue escapar aos dados do mundo real, e é essa a sua tragédia e a origem de um acto final de violência. Que ressonâncias têm em si estas narrativas, visto que escolheu protagonizá-las?
Como actor não escolho uma causa. Leio argumentos, e propõem-me muitos, dois ou três por semana. Se faço cinema hoje, é para contar alguma coisa que precede algo que vai acontecer ou que sucede a algo que está a acontecer. O cinema é importante para mim por ser um veículo, por ser o testemunho dos meus contemporâneos, de como vai o mundo. Espero que a minha notoriedade sirva para fazer filmes que falem de nós, que conte algo do nosso país, ou da Europa, ou do mundo, ou da filosofia humana num dado momento, hoje, para que daqui a 40 ou 50 anos, ao verem-se esses filmes, se possa dizer: “Era assim.”
Mas primeiro que tudo leio uma boa história. Não abro um argumento dizendo para mim próprio: “Quero contar a história de uma personagem que vai tentar perceber se acredita ou não em Deus.” Ou: “Ah, é uma personagem que se bate para levar uma greve até ao fim.” Digo “sim” a uma história e depois debruço-me sobre uma personagem. E não quero reflectir muito sobre ela. O que é interessante é não saber demasiado, porque as pessoas na vida não sabem o que lhes vai acontecer três segundos depois. Leio uma vez o argumento, para ver se me agrada, e não volto a ler. Quero chegar virgem à rodagem. Se sei tudo por antecipação, inconscientemente preparo-me para reagir desta forma ou de outra, e o resultado não será natural.
Para A Aparição, por exemplo, não coloquei a questão de saber se duvidava ou se a fé me interessava. Avançava dia a dia, chegava ao plateau e fazia a cena como se a descobrisse fazendo-a. Para estar à altura da personagem. Estar, eu, Vincent Lindon, à frente ou atrás da personagem, isso não me interessa.
O mesmo para Em Guerra. Falei muito com o realizador, mas não me meto numa fábrica durante três meses para saber tudo, tudo o que se passa, sob pena de estar à frente da personagem quando o que interessa é reagir no momento. É isso que faz a verdade da vida. Quando se fazem filmes próximos da vida, gosto de trabalhar da mesma maneira que se vive.
Mas não é por acaso que certas histórias o tocam e outras não. E depois é um desses actores que, tal como os actores franceses e americanos de outro tempo, antes de mais é ele próprio. O que faz com que, por exemplo, vendo vários dos seus filmes de seguida se tenha a sensação que é também “autor” deles. É como se presenciássemos as várias vidas de uma personagem. Acontece descobrirmos — num filme mais longínquo, La Moustache [Emmanuel Carrère, 2005], por exemplo — que a inquietude das suas personagens de hoje já estava “lá”.
Percebo exactamente o que quer dizer, mas para mim é difícil falar disso, não queria soar pretensioso. Os actores de que gostei muito, muito, muito na minha vida quase não mudam de cara, de penteado, vemo-los vestidos quase sempre da mesma maneira de filme para filme, e, contudo, o que fazem é diferente. Alguém como Gary Cooper, alguém como Cary Grant ou John Wayne, Lino Ventura ou Jean Gabin... essa gente fez uma multitude de filmes diferentes e parece que nunca mudava — mas mudava enormemente, porque se deixava transportar pela narrativa. Prefiro confiar numa história, casar-me com um argumento, ser como o seu acompanhante, de uma fidelidade extrema a uma história, em vez de pintar o cabelo de loiro, colocar um bigode, encher-me de artefactos. No fim de contas, ser eu mesmo.
Uma vez um realizador disse-me: “Nunca fui tanto um autor, nunca fui tão inventivo como quando realizei um filme por encomenda, porque adaptei à minha mão, à minha medida, um exercício obrigatório.” Penso o mesmo dos actores. Quanto mais nos mascaramos, quanto mais fazemos trabalho de composição, mais isso é um biombo para continuarmos nós mesmos no interior. Quanto mais nos mostramos com as roupas ou com o físico de todos os dias, mais nos expomos e mostramos coisas de nós que não utilizamos na nossa vida e que colocamos ao serviço do filme.
Diz-me que os filmes que faço são também filmes “de” Vincent Lindon. Penso também o contrário. Invisto tanto nos papéis para que as pessoas que vão ao cinema possam dizer: “Vejo-me nele.” Sou tanto mais eu nos filmes quanto permito às pessoas que se identifiquem comigo. Sou uma espécie de homem tipo a que as pessoas se podem agarrar.
A propósito de fidelidades, a sua relação com o realizador Stéphane Brizé. Ele disse uma vez: “Vincent Lindon c’est moi.” Queria com isso dizer que você era a melhor versão dele. Interessante que isso se passe entre duas pessoas de origens tão diferentes: ele o proletário, você o burguês. E é o burguês que, através dos filmes, faz o proletário.
O bizarro é que se sou dos actores burgueses do cinema francês, sou aquele em que se investe nos papéis de proletário. Isso talvez se deva a ter sido educado por um pai que era extremamente próximo das pessoas de baixa condição e que não passava socialmente sem essas pessoas mais fracas: só gostava de comer com os seus trabalhadores, só gostava de partir em férias com os seus trabalhadores — nunca com os do seu meio social, que não lhe interessavam, aborreciam-no. Fui educado por um pai que me inculcou esses valores e que me dizia que eu estava melhor numa quinta com os camponeses e com as vacas do que a chegar a uma discoteca de Ferrari. É uma caricatura, mas é para ir directo ao assunto.
Sempre gostei de conviver com as forças vivas do país: as pessoas que fazem o país, os trabalhadores, os artesãos. São essas pessoas que me apaixonam, gosto da forma como pensam e por vezes detesto a forma como pensam, porque, por exemplo, politicamente não reflectem para além do seu próprio nariz e escolhem a facilidade; mas gosto de estar no meio deles. Aborreço-me com as pessoas “da alta”. E as pessoas que me aborrecem mais no mundo são os actores de cinema. Não me relaciono com eles. Se faço os filmes que faço não é porque esteja apaixonado por interpretar. Os meus colegas adoram ser actores, adoram interpretar personagens. No meu caso foi um acaso. É um meio, para mim, de fazer o bem e de fazer política. É o meu meio de intervir e de tentar ajudar as pessoas. Só interessa ser uma estrela, se se pode ajudar a fazer filmes que, por dizermos sim, vão poder ver a luz do dia. É servir alguma coisa. Penso frequentemente que quando eu desaparecer... estou pensar na frase de um actor de cinema de que gosto muito: “Deixarei sem pesar este métier grotesco”...
... quem disse?
Anthony Hopkins...
Estou-me nas tintas para a minha imagem. Não quero saber se estou bem ou mal penteado, o que as pessoas vão achar ou não, é-me indiferente — e é essa a melhor maneira de conseguir ser amado por todos, estar-se completamente nas tintas. É a diferença entre seduzir e ser um sedutor. Ser sedutor não me interessa nada. Faço o que faço, quando faço e como quero fazer. Se isso agrada, tanto melhor.
Voltando a Brizé...
Um dia veio ter comigo com a personagem do carpinteiro de Mademoiselle Chambon [2009] a dizer que pensava em mim. Tocou-me muito essa história do carpinteiro com a professora da escola do filho. Entendemo-nos de forma maravilhosa, falamos muito, Stéphane e eu. Não paramos de nos questionar durante um filme e nunca estamos de má fé. Dizemos tudo, faço perguntas e ele não tem medo de se questionar. Isso cria um casal de cinema. Não sou eu que sou fiel, ele é que é fiel. É ele que escreve e regressa a mim. Não sou eu que vou ter com ele com uma pistola: “Aviso-te que o próximo filme será comigo.” São os realizadores que são fiéis, não são os actores. Ele propõe e eu disponho.
Nos quatro filmes que fez com Brizé [Mademoiselle Chambon, 2009; Quelques heures de Printemps, 2012, A Lei do Mercado, 2015; Em Guerra, 2018], os dois primeiros passam-se no espaço de intimidade, e com A Lei do Mercado há uma abertura ao espaço público. Como se expusesse os dados fundamentais de uma personagem, a dos filmes anteriores, ao mundo, resultando nisso uma certa violência.
Mas Pater [2011], em que interpreto o primeiro-ministo de França e Alain Cavalier o presidente, também era isso, também era um filme muito violento. Como Welcome [Philippe Lioret, 2009] sobre os imigrantes de Calais... La Crise, de Coline Serreau [1992], sobre um homem que perde o seu emprego e a sua mulher no mesmo dia, já era um filme muito político...
Exactamente, por isso comecei por dizer que os seus filmes falam de uma coisa violenta, a adequação ao mundo. A questão sobre Brizé era para chegar à transição de A Lei do Mercado para Em Guerra. É impressionante e traumático como no primeiro tínhamos acesso à intimidade de uma personagem e no segundo, embora existindo fragmentos de uma vida privada, a personagem está desprovida disso, todo ele é apenas luta pública.
É uma personagem em guerra. Quando alguém está em guerra, não há tempo para mais nada a não ser para estar em guerra. Quando o Presidente da República está em campanha eleitoral, as imagens que vemos dele são as comícios, aviões, helicópteros. Não estamos a vê-lo no seu salão a beber chá ou café ou a passear os cães no jardim. Este é um homem da fábrica, a fábrica vai fechar, ele é dirigente sindical: se o cinema for para outro lado, desliga-se da personagem.
Sobre a relação entre os dois filmes: num eu não digo nada, no outro não páro de falar. Em A Lei do Mercado a personagem é muito introvertida, de tal forma que o espectador se pergunta: “O que é que ele pensa?” Em Em Guerra grito a toda a gente na sala: “Levantem-se, partamos juntos para o combate.” Um não tem nada que ver com o outro. Como se trata do mesmo realizador e do mesmo actor, as pessoas acreditaram que era o mesmo filme ou uma sequela. Nada que ver, nada.
Como é que Brizé lhe apresentou esse filme?
Nunca me apresenta. Vejo o Stéphane de três em três dias. Por exemplo, neste momento já me fala do filme seguinte. Já me diz: “Gostaria de falar das pessoas lá de cima, dos quadros, dos patrões e das suas depressões nervosas e esgotamentos.” Porque é gente que todos os dias faz coisas contra a sua humanidade, e que faz isso para ganhar dinheiro e alimentar a família, ou seja, também se sofre lá em cima, de uma outra maneira de como se sofre cá em baixo. Cá em baixo morre-se de fome, lá em cima morre-se de depressão nervosa. Ele quer filmar isso, e começa a falar-me. Não me apresenta nunca um filme por inteiro, vamos falando aos poucos.
Filma desde os anos 80...
Desde 1985.
Mas foi bem mais tarde que as coisas se tornaram mais interessantes, intensas. Estava já com 40 anos. Porquê? Porque o seu investimento passou a ser outro?
Há um momento para tudo. Nós, actores, não somos todos iguais. O meu peso, a minha voz, a minha corpulência, tudo isso aconteceu mais tarde. A alguns acontece mais cedo. Há quem já esteja feito para a competição aos 25 anos. Mas aos 50 já cá não está. Há algo que desaparece. Outros precisam de tempo. Em jovens parece que não estão verdadeiramente aqui, mas de repente acontece algo e... estão na corrida e até ao final da vida. Comigo aconteceu por volta de 1996, a minha voz mudou, o meu peso mudou. Morgan Freeman também esperou anos antes de estar pronto, antes de estar “lá”. Outros começam logo muito jovens, como Matt Dillon, mas algo se perde depois.
A propósito, em La Moustache contracenava com Mathieu Amalric, um actor de uma família diferente da sua. Representa o que de forma grosseira podemos resumir como o actor francês depois da nouvelle vague. Está mais próximo de Jean Gabin e de Lino Ventura...
Talvez esteja mais próximo de Jean-Paul Belmondo...
Também, de acordo.
Mas Jean-Paul Belmondo é um actor da nouvelle vague...
De facto, ele esteve com Godard e com outros, mas o que o singulariza é a forma como estabeleceu um laço com o que existira antes, com os “velhos”, Gabin, Ventura, por exemplo, e com cineastas que foram, para os críticos que seriam a nouvelle vague, o “cinéma de papa”.
Para mim nunca houve o “velho” cinema. Houve o “grande cinema”. Assim como não sei exactamente o que quer dizer nouvelle vague. Não há uma vida nova, continuamos a vida. Essa vaga que chegou não teria existido sem o que aconteceu antes. Diz-se que nouvelle vague é Godard, Chabrol e Truffaut e que a nouvelle vague é A Bout de Souffle, filme de 1959. Mas Um Homem e Uma Mulher (Claude Lelouch) é de 1966, não é nouvelle vague? É super nouvelle vague. Para mim é mais simples: há grandes filmes, grandes realizadores, grandes actores, ponto final, parágrafo.
Lembra-se como se falava de Claude Sautet ontem? Há 15, 20 anos era “velho cinema” ou “cinema de papa”, como diziam, ou “cinema burguês” e “cinema de direita”. Depois de ter morrido, tornou-se intocável, como se fosse Jean Renoir. E como se fala de Claude Lelouch hoje?
Alguma vez se sentiu isolado, no cinema francês, em termos de modelos de actor?
Compreendo o que quer dizer. Mas não penso nisso. Há aquela frase de Vontade Indómita [King Vidor, 1949]. Um jornalista cruza-se com a personagem de Gary Cooper, de quem ele não gosta, e diz-lhe: “Quando você lê o que escrevo sobre si, o que é que pensa de mim?” Gary Cooper vira-se para ele: “Não penso nunca em si.” É o mesmo: é-me indiferente. Não olho nunca para o prato do vizinho. Interessa-me o meu prato.
Quando era jovem, pensava sempre que a festa-surpresa mais divertida era sempre aquela em que eu não estava. Como é que era a vida onde eu nunca estava? Decidi há algum tempo que o local que interessa é onde estou. Mesmo que não se passe nada. Os meus colegas actores rodam cinco filmes por ano, e, desses cinco, há dois ou três a que eu disse não e que eles fizeram. Faço menos, mas isso cai-me muito bem. Li, não gostei. Se eles gostaram, que o façam. Não lamento nada. Há artistas que têm a seguinte filosofia: “Não quero aquilo que ele tem, mas não quero que o tenha.” Eu marimbo-me. Não podia ser de outra maneira. Senão a minha vida estaria lixada. Mais valia que me suicidasse. Talvez lamente não ter feito coisas que gostaria de ter feito. Não posso lamentar não ter feito coisas que recusei.
Num retrato/entrevista à televisão francesa, Empreintes, falou de três actores, Alain Delon (“plus beau a regarder qu’une belle femme”), Depardieu, alguém que chegou e determinou uma nova fasquia para os actores franceses, e Lino Ventura — que sempre me pareceu uma “ascendência” do actor Lindon. Você fala dele como uma presença sólida, como um pai. Havia papéis que Ventura não aceitava, por questões morais, por exemplo. São questões para si também?
Não, nada mesmo. Mas é curioso, porque o que as pessoas me dizem mais é que tenho um lado Gabin. Mas é verdade que hoje, desde que um actor se torne fisicamente forte, diz-se que “tem um lado Ventura” ou “um lado Belmondo” ou um “lado Gabin”. Um dia fazem-se as contas e haverá 25 actores com um lado Ventura. É como uma marca. A verdade é que sou mais comparado a Gabin, o que até prefiro, porque a carreira de Gabin é política, mesmo que não se dê conta disso. Nos filmes da Frente Popular, no Jour Se Lève [1939, Marcel Carné], na Bête Humaine [Jean Renoir, 1938], no Des Gens sans Importance de Verneuil [1956], ele acompanha as grandes correntes políticas, fala da França de 36, fala da França dos anos 50, o que não é o caso de Ventura, que não fazia filmes engagés — fez um, L’Armée des Ombres [1959], de [Jean-Pierre] Melville. É um actor menos engajado de que gosto muito, mas não por uma questão de ética.
A minha ética é aceitar bons argumentos. Posso interpretar um monstro, alguém que faça coisas ignóbeis, com a condição de que o argumento seja tão bom que, ao interpretar esse mau, vou ajudar as pessoas a odiarem-no ainda mais — dessa forma levo o bem às pessoas e afasto-as do mal. Em A Lista de Schindler [Steven Spielberg, 1993], a forma como Ralph Fiennes faz de Amon Goeth mostra até que ponto a personagem é ignóbil e isso ajuda as pessoas a odiarem-no ainda mais.
Tenho alguns princípios éticos, no entanto: sou dos poucos actores que praticamente não fizeram publicidade, que não fizeram voz off de desenhos animados... essa é a minha ética. Quando uma casa me oferece roupa para vestir e fazer publicidade, recuso, compro com o meu dinheiro. Não vou a soirées de lançamento de produtos. Isso para mim é importante.
A questão com Ventura não tem que ver com corpulência, é uma questão de silêncios e de melancolia.
Compreendo.
Posso perguntar-lhe sobre a sua melancolia, que está tanto nas personagens? De onde é que vem?
Melancolia ou nostalgia... não posso evitar, é inato. Há actores que têm no rosto e na forma de se mexer qualquer coisa de melancólico, como outros têm qualquer coisa de perverso. Há uns que são escolhidos para os papéis simpáticos, há outros que têm ar inteligente. Outros têm um ar mais lunar. São coisas que não se controlam. Há pessoas que quando as vemos no ecrã nos dá vontade de rir. A outras queremos proteger. Talvez aceite o meu lado feminino, talvez aceite as minhas fraquezas de infância. Há um lado forte e voluntarioso, e talvez seja a mistura dos dois... Não decido pôr a minha melancolia nos filmes. Não tenho controlo sobre isso. Mas se me pergunta se sou melancólico na vida... sou muito, muito, muito nostálgico, terrivelmente nostálgico. É a minha falha, o meu drama. Penso com muita melancolia quando estou no momento posterior, e é que isso que me dá nostalgia. Sou nostálgico do momento passado. Estou raramente no presente. Penso frequentemente no amanhã e terrivelmente no ontem, e muito, muito pouco no que faço, ou seja, faço as coisas de forma muito instintiva e despreocupada em relação ao que me aconteceu e ao que quero que me aconteça.
Está a fazer-me perguntas e eu a dizer-lhe coisas em que não costumo pensar, é o drama das entrevistas, vou parar de dar entrevistas. Não quero dizer-lhe coisas sobre as quais não tive tempo de pensar. Daqui a três anos, quando for ler, vou rir-me dos disparates que disse. Estou a dizer-lhe isso hoje, porque estou com um humor mais alegre, falo com mais energia. Se me tivesse falado ontem, isto teria sido mais lacónico, mais triste.