Acórdão que desvaloriza violação é assinado por presidente do sindicato dos juízes

Para o presidente do Observatório Nacional de Violência e Género, o acórdão da Relação do Porto poderá violar a lei. A penalista Teresa Pizarro Beleza, considera que este acórdão "parece revelar mais uma vez uma estranha insensibilidade em matéria de graves atentados contra a liberdade pessoal".

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Rui Gaudêncio

Uma mulher de 26 anos foi violada por dois homens quando se encontrava desmaiada na casa de banho de uma discoteca. Os violadores foram o barman e o porteiro da mesma discoteca. Os factos, ocorridos em Novembro de 2016 em Vila Nova de Gaia, foram dados como provados pela justiça, mas os criminosos ficaram em liberdade com pena suspensa, uma sentença confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, que considerou que “a ilicitude [praticada] não é elevada”, uma vez que “não há danos físicos [ou são diminutos] nem violência”. O acórdão foi assinado por dois magistrados. E um deles é o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Ramos Soares.

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Uma mulher de 26 anos foi violada por dois homens quando se encontrava desmaiada na casa de banho de uma discoteca. Os violadores foram o barman e o porteiro da mesma discoteca. Os factos, ocorridos em Novembro de 2016 em Vila Nova de Gaia, foram dados como provados pela justiça, mas os criminosos ficaram em liberdade com pena suspensa, uma sentença confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, que considerou que “a ilicitude [praticada] não é elevada”, uma vez que “não há danos físicos [ou são diminutos] nem violência”. O acórdão foi assinado por dois magistrados. E um deles é o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Ramos Soares.

“Enquanto presidente não fez qualquer acórdão. Quem o assinou, e concordou com o seu teor, foi o juiz Manuel Soares, que por acaso é presidente da associação sindical.” A afirmação é da secretária-geral da mesma associação, Carla Oliveira, a quem o juiz Manuel Soares delegou a tarefa de falar com o PÚBLICO. 

Esta magistrada ressalva que não leu o acórdão em causa, que só sabe dele o que foi reproduzido pela imprensa, mas não tem dúvidas de que se tratou de “uma decisão jurídica acertada”, já que a sentença se pronunciou pela manutenção da pena suspensa decidida antes pelo tribunal da primeira instância, sendo esta a única matéria que estava em causa, insiste. “Até cinco anos de prisão [os violadores foram condenados a quatro anos e meio] a pena pode ser sempre suspensa, independentemente do crime praticado”, explicita.

Quanto aos pressupostos em que a Relação do Porto baseou esta sua decisão, Carla Oliveira é também peremptória: “Não vi nada que me chocasse.” Afirma também que não lhe parece existir ali “uma desvalorização” do crime praticado.

Para além de considerar que a ilicitude do que foi feito “não é elevada”, o acórdão defende que “a culpa dos arguidos situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade na prática dos factos”.

Numa nota enviada ao PÚBLICO ao início da madrugada deste sábado, mas com a data de sexta-feira, a ASJP repete alguns dos argumentos de Carla Oliveira e acrescenta: "Não é verdade que o tribunal tivesse considerado que o crime de abusos sexual de pessoa incapaz de resistência ocorreu num ambiente de sedução mútua; essa qualificação refere-se ao contexto que antecedeu a prática dos crimes e que foi tida como relevante para a determinação da pena."

A nota refere ainda que "os tribunais não têm agendas políticas ou sociais nem decidem em função das expectativas ou para agradar a associações militantes de causas, sejam elas quais forem; a agenda dos tribunais é a aplicação das normas e princípios legais e a justiça do caso concreto".

Lei em causa

A professora catedrática de Direito Penal da Universidade Nova de Lisboa Teresa Pizarro Beleza já tinha lido o acórdão quando foi abordada pelo PÚBLICO. Diz que “este parece revelar mais uma vez uma estranha insensibilidade em matéria de graves atentados contra a liberdade pessoal, em especial na esfera sexual”. “Neste caso, seria evidente que o estado de inconsciência convertesse em abuso grave tudo o que acontece, por impossibilidade de ser manifestada uma vontade real por parte da vítima”, frisa.

O sociólogo Manuel Lisboa, presidente do Observatório Nacional de Violência e Género, ressalva que não conhece o caso em pormenor, mas não deixa de apontar que o acórdão “pode ferir as convenções internacionais de direitos humanos e também a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres, de que Portugal é signatário”.

Ou seja, especificou, “poderá estar em causa uma clara violação da lei”. Na sequência de outro acórdão polémico da Relação do Porto, em que o suposto adultério de uma mulher era apontado como atenuante para as agressões de que foi vítima, o Conselho Superior de Magistratura decidiu instaurar um processo disciplinar aos dois juízes que o subscreveram, Neto Moura e Luísa Arantes, que ainda está em curso.

Mudar formas de ver

O psicólogo e dirigente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), Daniel Cotrim, alerta que a decisão de manter a pena suspensa transmite um sinal que pode ser “perigoso”. “Existem vários estudos que mostram que há uma tendência para a repetição destes fenómenos precisamente porque do ponto de vista judicial se registou um tratamento benigno”, explica Cotrim.

Considera também que mais uma vez a justiça portuguesa “encontra uma série de atenuantes para o que devia ser considerado um crime grave” e que isso acontece sobretudo porque “a vítima é uma mulher”. E ao contrário do que se pressupõe no acórdão em causa, afirma que as marcas de uma violação “podem subsistir para sempre”, o que ainda será mais provável neste caso porque não lhe foi garantido acompanhamento desde o início: “O estatuto de vítima especialmente vulnerável foi ignorado pelo tribunal que inicialmente julgou o caso, quando é à magistratura que compete a sua aplicação.”

Teresa Pizarro Beleza refere que já ensinou o tema “crimes sexuais” em vários sítios e que constatou, nesta experiência, que “é difícil fazer compreender a muita gente o que está em causa, nestes 'incidentes', dada a dimensão de desequilíbrios de poder no contexto das relações de género”.

A penalista defende que “é essencial que as universidades e o Centro de Estudos Judiciários, que forma os nossos magistrados, desenvolvam formação e investigação nesta área”. O que por si só não resolverá o problema, porque “o mais relevante, e mais difícil, é conseguir uma alteração radical na percepção social destes assuntos”. "São milénios de tradição de submissão e desigualdade que pesam sobre nós” e não é “fácil mudar formas de ver que tanto nos condicionam, quantas vezes de forma inconsciente”.