O candidato troll que pode ganhar o Brasil

Jair Bolsonaro poderá ser o próximo Presidente do Brasil? Para uns, isso é um pesadelo que não pode realizar-se. Outros rezam, literalmente, para que tal aconteça. Seguro é que, quando fala, este capitão na reserva tem o dom de irritar muita gente. Mas o verdadeiro problema é o país ter chegado à polarização a que chegou.

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A voz é doce e não é certo que ela tenha sequer 16 anos, a idade a partir da qual o voto é facultativo no Brasil, um país onde é obrigatório votar dos 18 aos 70 anos. Com o seu violão, Débora Maciel compôs uma música para Jair Bolsonaro, em jeito de hino religioso, que enviou para o site no Facebook do candidato da extrema-direita brasileira, depois de este ter sido esfaqueado no ventre. “Força/Nós estamos aqui de joelhos orando por você/ e te desejando ânimo, coragem/ nós te desejamos toda força...”, diz o refrão desta canção, um hino ao seu ídolo cantado com verdadeira emoção.

A iniciativa de Débora puxa a lágrima, e um dos cerca de 5000 comentários que o vídeo tinha na sexta-feira identificava a adolescente como pernambucana — do Nordeste, uma região do Brasil onde mais de metade dos eleitores prometiam guardar o seu voto nas presidenciais para Lula da Silva. Mas há sempre quem prometa que nunca mais votará no Partido dos Trabalhadores de Lula, apesar de muitos terem beneficiado com os programas sociais da governação de esquerda.

Exemplo disso é Mariana Fernandes, locutora de rádio de 24 anos, de Capitão Andrade, uma cidade de Minas Gerais. Contou à revista Veja que passou a infância a distribuir panfletos de Lula da Silva, ao vender verduras de porta em porta com a família. “Sempre o idolatrei. Via-o como ‘pai da nação’”, conta. Hoje, vai votar Bolsonaro, e espera convencer a sua mãe a fazer o mesmo. “Percebi que ele ajudava o povo com dinheiro roubado do próprio povo”, afirma, referindo-se ao programa Bolsa Família.

E há também o universo dos outros eleitores. A classe alta, ou a classe média-alta, que se sente revoltada com a corrupção, a crise de insegurança, que não existe apenas no Rio de Janeiro, embora o Rio se tenha tornado um expoente dessa crise, que se revoltou com a incapacidade demonstrada pelo Estado para funcionar e da resposta às necessidades básicas dos cidadãos e veio para rua a partir de 2013.

“É uma parcela do eleitorado que vive nas periferias que está descontente com a classe política por conta dos escândalos de corrupção e dos altos níveis de violência que afectam, principalmente, as áreas periféricas”, disse à BBC Brasil Lucio Rennó, da Universidade de Brasília. “Quem tem conseguido dialogar com este eleitorado é Jair Bolsonaro. Ele fala a língua desses eleitores e faz isso com naturalidade.”

Militares ou eleições?

Fawzi Maufel Ali, técnico de informática de Brasília, de 41 anos, hesitou entre João Amôedo, do Partido Novo, um candidato libertário, com ideias pró-mercado e conotado com a nova direita (bem à direita), e Bolsonaro. Acabou por optar pelo capitão na reserva Jair Messias Bolsonaro. Apesar de, ao contrário do que diz Bolsonaro, Maufel Ali acreditar que o Brasil viveu uma ditadura militar (1964-1985). “O meu pai foi afectado pela ditadura. Eu sei que ela ocorreu. Houve sim, e não é como ele diz. Só que eu não acredito também na narrativa da esquerda, defendo um meio-termo”, disse à Veja.

Muitos dos que apoiaram e exigiram a cabeça da Presidente Dilma Rousseff e do ex-Presidente Lula deixaram-se assim encantar por Bolsonaro, político há 27 anos, mas que se apresenta como um campeão do anti-establishment, do politicamente incorrecto, como um impoluto num país de corruptos — apesar de a sua fortuna ter sido feita durante a sua carreira como deputado.

Foi neste caldo que se deu um avanço da extrema-direita no Brasil que o historiador e cientista político veterano Boris Fausto, de 87 anos, considera inegável, numa entrevista de finais de Agosto ao jornal Estado de São Paulo. Foi um caldo que surgiu quase sem ser notado. “Estamos à beira do abismo, numa situação muito complicada. Há uma crise institucional muito grave”, avalia. “Bolsonaro é, nitidamente, um candidato que entrou no jogo, mas que também aceita regras fora do jogo democrático”, realça.

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Acção de campanha em São Paulo Nacho Doce/Reuters

O desmoronamento das garantias do Estado está por trás desta explosão da extrema-direita. “O que nos levou a isso foi a corrosão do jogo democrático. Corrupção, descrença nos candidatos e nos partidos, seja à esquerda ou à direita. Isso proporcionou o avanço da extrema-direita e o crescimento da ideia de um regime forte. Essa ideia vem sempre associada aos militares, porque, na cabeça de alguns, se alguém tiver de implantar um regime forte são eles, os militares”, afirmou Boris Fausto.

Cerca de 15% dos eleitores responde “sim” à pergunta “Você é a favor de um golpe militar em vez da organização de eleições presidenciais?”, no inquérito do site Atlas Político, que depois é calibrado por um programa informático. Andrei Roman, fundador e director executivo da consultora que produz esta plataforma de monitorização da opinião pública, considera que este valor corresponde à base de apoio a Bolsonaro — e é também próximo do mínimo necessário para passar à segunda volta, num cenário de grande polarização, disse em entrevista ao El País Brasil.

Apoio da elite

Bolsonaro, com o seu jeito tosco — capaz de dizer a uma deputada numa discussão sobre criminalidade e sobre um preso por violação que não a violaria porque ela era feia demais —, não está só. Embora confesse não entender nada de economia, deixa toda essa importante pasta da governação nas mãos de Paulo Guedes, um economista doutorado na influente Universidade de Chicago, cuja escola inspirou as políticas liberais de recuperação e reconversão nos países ex-comunistas europeus e também de várias nações latino-americanas — a chamada “terapia de choque”.

Guedes defende que a expansão dos gastos públicos no Brasil nos últimos 30 anos “corrompeu a democracia e estagnou a economia”. O Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), defende, sempre foram parecidos. “Na política brasileira, depois de 20 anos de um regime militar associado politicamente à direita, houve uma reacção a isso que foi de esquerda. Foi absoluta, hegemónica, e é natural e compreensível que assim tenha sido”, disse ao jornal El País Brasil. “O que pode perguntar é porque é que foram tão incompetentes e depois de 30 anos não chegaram a resolver os problemas da educação, da saúde...”

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Apoiantes de Jair Bolsonaro numa manifestação de apoio ao candidato de extrema-direita na Avenida Paulista, São Paulo Cris Faga/NurPhoto via Getty Images

Causou surpresa a ligação a Bolsonaro de Paulo Guedes, considerado um dos grandes pensadores do liberalismo económico no Brasil. As poucas posições que o candidato antes expressou sobre economia permitiam classificá-lo como um estatista — mas ele assume que nada percebe do assunto.

O economista, no entanto, causou grande inquietação — numa entrevista ao jornal Valor Económico, quando lhe perguntaram se se afastaria caso sentisse que Bolsonaro apresentava propostas que não se coadunassem com a democracia. Ele garantiu que se afastaria, sim, dizendo não acreditar que o candidato de 63 anos, que continua a ser um militar do fundo do coração, desse esse passo. Mas acrescentou: “Posso estar errado.”

É sobretudo a elite brasileira que apoia Bolsonaro, e a elite masculina, que detém o poder. Segundo a pesquisa divulgada na última segunda-feira pelo instituto Datafolha, a rejeição de Bolsonaro entre o eleitorado feminino é de 49%. Num estudo de Agosto do Ibope, outro instituto de sondagens, os eleitores do deputado federal eleito pelo Rio de Janeiro são sobretudo dos estratos sociais mais escolarizados e mais ricos, e é apoiado por duas vezes mais homens do que mulheres. O também capitão na reserva é apoiado por 32% dos mais ricos — o triplo do valor que atinge entre os mais pobres.

Jovens na rede

Mas são também os jovens que estão com Bolsonaro, como acontece noutros países em que candidatos de extrema-direita têm bons resultados eleitorais — veja-se, por exemplo, Marine Le Pen, em França. Um estudo do Observatório das Eleições — uma colaboração de centros de investigação de várias universidades brasileiras — mostra que é entre os eleitores mais jovens que Bolsonaro tem mais apoiantes. Mais precisamente, nas camadas dos 16 aos 24 anos, e dos 25 aos 24 anos. No total, 60% dos eleitores de Bolsonaro têm menos de 35 anos.

No entanto, numa actualização posterior do estudo, o professor de Ciência Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro João Feres Júnior, salienta que a página do Facebook de Lula tem fãs muito mais activos do que a de Bolsonaro. Isto “levanta suspeitas sobre o real alcance da página de Bolsonaro, uma vez que seus usuários são exímios clicadores de likes, mas compartilham pouco e comentam ainda menos. Seriam eles usuários humanos?”, interroga o investigador.

Muito se tem falado sobre a falta de presença que a propaganda de Bolsonaro terá na campanha de televisão e rádio — uns míseros oito segundos — e de como isso será decisivo. Geraldo Alckmin, candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB, centro-direita), graças à sua política de alianças com os vários partidos que formam o chamado “centrão”, terá uma enormidade de tempo de exposição nos media, o que é tradicionalmente apontado como uma vantagem.

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Acção de campanha em Brasília, no início de Setembro Joédson Alves

“Alckmin tem muito mais tempo do que precisa, mas a questão é como você preenche esse tempo. Não adianta ter todo o tempo do mundo se a sua estratégia de comunicação está errada ou se simplesmente não consegue superar as vulnerabilidades do candidato”, explica ao El País Brasil Andrei Roman, do Atlas Político. “A campanha de Alckmin partiu para a luta tentando desacreditar Bolsonaro, mas o eleitorado deste é muito convicto e não vai mudar para Alckmin. E quem não gosta mesmo de Bolsonaro é a esquerda, que também não gosta de Alckmin.”

Sobretudo depois do ataque à faca que sofreu — e do qual dificilmente recuperará antes da primeira volta das presidenciais —, a 7 de Outubro, Bolsonaro terá forçosamente oportunidade de demonstrar o quanto vale uma campanha feita nas redes sociais, que é quase o seu habitat natural. A sua página no Facebook tem cerca de seis milhões de seguidores, é de longe o que tem mais, seguido de Lula, que serve de página também para promover a candidatura à presidência do agora candidato do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad, que tem perto de 3,9 milhões.

Mas o número de seguidores não é tudo: João Amôedo, do Partido Novo, um candidato libertário, com posições próximas da nova direita brasileira, não tem mais de 3% das intenções de voto, mas a sua página no Facebook é seguida por 2,4 milhões de pessoas.

É mais importante avaliar o nível de envolvimento dos seguidores com a página — e aí Bolsonaro e Lula/Haddad ganham. Sobretudo Bolsonaro, porque muitos utilizadores vão à página de Lula para o criticar, sublinha Bruno Ferreira da Paixão, autor de uma análise sobre o nível de envolvimento dos seguidores nas páginas dos candidatos no Facebook. De qualquer forma, é na página do candidato de extrema-direita que há mais reacções às publicações, com posts que, seja verdade ou não, são feitos em discurso directo do candidato.

O “mito”

Na verdade, é nas redes sociais que muitos eleitores, sobretudo os jovens, encontraram pela primeira vez Bolsonaro, senão em pessoa pelo menos nos múltiplos memes em que ele aparece. Um deles, que se tornou alcunha, põe a cara do capitão na reserva no corpo de Will Smith, no cartaz do filme pós-apocalíptico I Am Legend, que no Brasil teve o título Eu Sou o Mito. Dessa forma, Bolsonaro passou a ser “o Mito”, ou até “Bolsomito”. Há outras variantes, e também depreciativas, como “bolsonazi” e outras impublicáveis.

Gabriel Araújo, estudante de Administração de 22 anos, descobriu Bolsonaro pela primeira vez em 2013 através de um meme no Facebook. Foi na altura dos protestos que começaram por ser contra o preço dos transportes e depois se tornaram um movimento contra a Presidente Dilma e contra Lula. Araújo estava desencantado com a política e foi dessa forma improvável que descobriu o político em quem diz que vai votar para Presidente, explicou à BBC Brasil.

Do Facebook passou para o YouTube, onde procurou vídeos de Bolsonaro — e há muitos, pois desde 2010 que o agora candidato se tornou presença frequente nos programas de entretenimento da televisão brasileira, segundo um trabalho de doutoramento de Victor Piaia e Raul Nunes em Sociologia, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, citado pelo site Intercept Brasil. Esta experiência mediática ajudou o ex-capitão a tornar o seu discurso mais natural, e a aprender a andar na corda bamba, sempre no limite entre o aceitável e o que muitos dizem ser homofobia, racismo, misoginia e elogio da violência e do fascismo.

“Vi Bolsonaro pela primeira vez em 2014, num vídeo no Facebook. Ele não fala nada para agradar ao povo, ou para parecer politicamente correcto”, disse à BBC Jéssica Melo da Silva, de 19 anos.

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Rodolfo Buhrer/Reuters

Estes eleitores jovens nem levam muito a sério as tiradas mais polémicas do candidato. Gabriel Araújo não acredita que Bolsonaro seja racista. “Sou negro e não votaria em ninguém racista”, afirma.

Jair Bolsonaro criou uma personagem mediática, alguém que diz uma série de barbaridades porque fala o que lhe passa pela cabeça e não tem receio de o dizer, e é contra o politicamente correcto — uma ideia em voga da nova extrema-direita. “Joga com a incerteza sobre o seu discurso, diz Moysés Pinto Neto, da Universidade Luterana do Brasil, citado pela BBC. “Num vídeo gravado em 1999, disse que mataria pelo menos 30 mil pessoas no Brasil. Ele está falando sério ou não? Não dá para saber.”

Mas essa persona torna-o atraente. Essencialmente, Bolsonaro aprendeu a ser um troll da Internet, mas com um discurso conservador e temente a Deus, e captando o apoio das elites e das forças económicas. Será suficiente para ter a vitória? Nestas eleições, prognósticos só depois do jogo.