A sensação Robert Mapplethorpe em Serralves
No Museu de Serralves, a partir da próxima quinta-feira, podemos explorar 20 anos do trabalho de Robert Mapplethorpe e confrontarmo-nos com uma arte guiada pelo gosto da composição e a procura da perfeição da forma. E o desejo de fazer retratos de corpos, sujeitos e pessoas às quais o enquadramento da máquina e o gesto do artista conferiam uma dignidade inédita e incontestável. O prazer também entra no museu.
Tente-se a descrição de uma fotografia que pode vista no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, a partir do próximo dia 20. Nu, quase de perfil, Dennis Speight segura, com as duas mãos, um ramo de jarros. O corpo, tonificado, mostra-se numa pose recta, mas há algo no olhar que complexifica o retrato: uma timidez ou, antes, uma fragilidade indiscernível, expectante. Estarão aqui três, senão os três, vértices da retrospectiva que a instituição museológica, com a curadoria do seu director, João Ribas, dedica a Robert Mapplethorpe (1946-1989): a natureza-morta, o retrato, a sexualidade. São eles que organizam o espaço em que aparecem as 179 obras escolhidas pelo curador nos arquivos da fundação homónima, criada pelo artista em 1988. A selecção é diversa, se não mesmo contrastante. Há imagens que já fazem parte da cultura visual comum (como aquelas que imortalizaram Patti Smith), imagens que, nos finais do século XX, originaram nos Estados Unidos controvérsia e episódios de censura e, por fim, imagens pouco ou nada conhecidas (das crianças, de interiores de habitações, da fachada de um prédio). Nessa diversidade, o visitante percorre os 20 anos da obra de Robert Mapplethorpe, reencontrando ou descobrindo histórias, imaginários, modos de fazer, questões em que a arte, a política e a sociedade se cruzam, para continuarem a falar connosco, no presente.
A exposição tem uma ordem cronológica e arranca com colagens e esculturas, assinalando os primeiros anos de actividade e a inspiração em Marcel Duchamp e, sobretudo, no artista e cineasta americano Joseph Cornell. “O Robert Mapplethorpe começa a experimentar pintura e escultura e só muito mais tarde começa a tirar fotografias. O início da fotografia dá-se com uma câmara polaroid que lhe é emprestada por Sandy Daley, uma cineasta que viveu com ele e Patti Smith, no Hotel Chelsea [em Nova Iorque]. Ele faz fotografias e usa-as também para fazer colagens.” É nas e com as colagens que assomam, pela primeira vez, as questões da sexualidade queer e os nus eróticos masculinos. O artista apropria-se de imagens de revistas de fitness e musculação, de teor homoerótico, que adquire em bancas de revistas nas ruas de Nova Iorque. (Estas incursões são relatadas por Patti Smith em Apenas Miúdos, livro de memórias da cantora e compositora, traduzido em 2011 pela Quetzal.) São essas imagens que vai introduzindo no seu trabalho, explorando, por um lado, o corpo na sua representação escultórica e enquanto sujeito e objecto de desejo sexual. “Não eram revistas necessariamente pornográficas”, diz o curador, “mas tinham um teor que podia ser ou foi interpretado enquanto forma de passar conteúdos homoeróticos, como se fossem hipermasculinos. Havia esse jogo com a hipermasculinidade, que servia de cavalo de Tróia na divulgação de conteúdos homoeróticos.”
Um mundo num rectângulo
A natureza marginal, quase secreta, mas, sobretudo, privada do gozo dessas imagens é afim de outra experiência da intimidade – a da própria polaroid. “É uma tecnologia instantânea”, esclarece. “Permite aos próprios participantes na imagem ver o resultado e reagir, algo que para nós se tornou uma coisa banal. Na prática do Mapplethorpe, tinha que ver com uma intimidade que, por sua vez, se relaciona com a sexualidade, com o próprio corpo de um modo não normativo. Ao registar de modo instantâneo o retrato, a polaroid permite estabelecer essa relação de proximidade com o sujeito. A fotografia era um acto, uma performance controlada entre o artista e o objecto.”
Neste grupo de imagens, incluem-se os retratos de Candy Darling, actriz transexual e musa de Andy Warhol, de Sam Wagstaff, curador, coleccionador, amante e companheiro de Mapplethorpe, de anónimos em Fire Island, praia frequentada pela comunidade homossexual da Costa Leste dos EUA (uma das raras imagens em que o artista trabalha fora do cenário controlado do estúdio), de uma mulher que só o nome “Lucy” identifica. Nota-se já a atenção do artista à geometria e à composição, que se tornará mais saliente e nunca mais o abandonará. “Na sua obra, há sempre uma tensão, uma suspensão dialéctica entre o conteúdo emotivo e político da imagem e a sua construção e composição”, diz João Ribas. “Isso é mais marcado a partir de 1975, quando começa a trabalhar com uma câmara completamente manual, a Hasselblad. Tem um enquadramento muito específico e há uma certa tentativa de ver o mundo, de criar um enquadramento do mundo, com a sua geometria. Seja o mundo representado pela imagem de uma flor ou um retrato. Há sempre esta ideia da construção, da presença da luz, da tonalidade da imagem, da ideia de transpor o mundo para um pedaço de papel num quadrado, num rectângulo.”
Dentro desse rectângulo vamos encontrando objectos e sujeitos na condição de modelos. Flores, estátuas (uma referência óbvia ao seu gosto pelo classicismo e a escultura; alguns retratos podem vistos como esculturas), amigos, amantes, mulheres, artistas, celebridades, homens, brancos e negros. As referências ao homoerotismo e ao desejo homossexual manifestam-se nas imagens de nus masculinos, dos pénis, erectos ou não. A história da arte, e nesta a da fotografia, confronta-se, em Robert Mapplethorpe, com um tópico que, argumenta o curador, as duas se demitiram de tratar: “Para ele, não havia grande diferença entre fazer uma fotografia do sexo masculino ou de um objecto. Havia, nesse sentido, um grande interesse por questões inerentes à história da fotografia, mas ao mesmo tempo era sensível à sexualidade ou à figura do negro na história da fotografia e, em particular, no retrato e nas imagens mais sexuais. Como o próprio artista disse, a dada altura, não havia um grande fotógrafo na história da fotografia que tratasse a sexualidade ou o corpo humano como um tema importante, ao contrário, por exemplo, do que tinha acontecido na história da escultura. Ele considera que a fotografia tinha de certa forma ignorado o corpo masculino, que, no seu caso, era também objecto de uma certa orientação sexual.”
Práticas do corpo
Para lá da sexualidade queer e da erotização dos corpos masculinos, a exposição mostra imagens que roçam a pornografia ou até a violência com alusões directas a parafilias, em Helmut e Brooks, ou a práticas em que está implícita a dor, como as controversas Clothespinned Mouth, ou Jim and Tom. Será acertado ou justo interpretá-las como violentas? “Não considero, de todo, que sejam imagens violentas”, responde o curador. “Simplesmente, por uma razão: são imagens que registam práticas do corpo. São versões não normativas de prazer, de sedução; de dar e receber prazer. Em si não constituem actos violentos. Podem não se enquadrar na sensibilidade dominante do que é um corpo normativo, ou de um corpo masculino que sai dos padrões de experiência heteronormativa e branca.” Foi por causa destas, entre outras imagens (que compõem a série X Portfolio), que a obra de Robert Mapplethorpe foi objecto, já depois da morte do artista em 1989 (vítima de sida), de censura nos Estados Unidos. Nesse ano, a exposição itinerante The Perfect Moment foi cancelada na Corcoran Gallery of Art, em Washington, antes de o público se poder confrontar, ainda no mesmo ano, com os trabalhos do artista na Contemporary Arts Center, em Cincinnati. Era o culminar das “guerras culturais” nos EUA (embora não necessariamente o seu fim), no rescaldo das quais a obra de Robert Mapplethorpe se tornaria mais reconhecida, debatida e estudada.
No entanto, e embora a polémica se tenha atenuado, algumas fotografias – nomeadamente as que registam o universo das práticas sadomasoquistas, nas quais o artista se envolvia – continuam a motivar interpretações controversas, como as de Slavoj Žižek. No livro Violência, publicado em 2008, o ensaísta esloveno escreve que as fotografias das torturas perpetradas em Abu Grahib por soldados americanos lhe fazem lembrar as fotografias de Mapplethorpe. “Isso não faz sentido”, comenta João Ribas. “Estamos a falar de relações consentidas, com uma grande intimidade, em que Mapplethorpe está a controlar ou em que participa. O Žižek está a falar de uma violência que é a do Estado, com o mecanismo de uma guerra, para criar uma situação de humilhação sobre um corpo ou corpos que são tratados como excepções à humanidade. Estão em registos e sítios em que não há qualquer relação com a cidadania, são extrajurídicos. Não faz sentido equacionar uma situação extrajurídica, extrapolítica, em que tudo o que associamos aos padrões dos direitos humanos está a ser violado, com situações que remetem para práticas amorosas, que exploram formas de um corpo expressar, dar ou receber prazer. Não há relação nenhuma.” Para o curador o que está em causa é uma ética que enfatiza o direito do corpo de se expressar, de amar, de fazer, de desejar. “Trazemos mais às imagens em termos de preconceitos e em termos de questões moralistas, quando devíamos reflectir sobre a liberdade de amar em contextos em que há consenso sobre a liberdade do que um corpo pode fazer. Não se trata de orientações sexuais, mas de o corpo poder ser uma espécie de paisagem erótica. Explorar essa questão acho que faz todo o sentido. Lembro também que essas fotografias foram feitas em telemóveis por pessoas que estavam em posição de poder, que não tinham qualquer cumplicidade com a comunidade com que se relacionavam. São situações que não são comparáveis.”
O prazer no museu
Realce-se que estas imagens constituem um grupo muito específico de trabalhos que, em termos temáticos, o artista viria a abandonar um ano depois. Constituem um conjunto numa carreira de 20 anos. A exposição também é feita de uma profusão de retratos, de imagens de flores, de interiores e até de exteriores que atestam a complexidade da obra de Mapplethrope contra os clichés ou o sensacionalismo. São disso exemplos, entre outras, a fotografia de Marianne Faithfull, as imagens de crianças, os seus múltiplos auto-retratos, do sátiro ao rebelde rockabilly, os movimentos imobilizados, do bailarino Bill T. Jones, as poses de Philip Glass e de Robert Wilson. Ainda sobre a controvérsia das imagens, o curador acrescenta: “A ideia de uma exposição de Robert Mapplethorpe cria, de imediato, a expectativa de que há uma coisa errada, de que as pessoas têm de ser protegidas de alguma coisa. Ora, considero que as pessoas têm o direito de serem confrontadas com coisas que saem das suas zonas de conforto, do mesmo modo que considero que não devem ser obrigadas fazê-lo. Ao mesmo tempo, tenho de respeitar a integridade do artista e estamos a falar de um grande artista da segunda metade do século XX. Temos de ter todos estes aspectos em consideração e para tal houve um trabalho curatorial. No fim, só me resta dizer que a exposição tem de ser experienciada.”
Reconhecido como grande artista, autor de fotografias que se tornaram indissociáveis do imaginário e da cultura, da memória do século XX, persiste por vezes a percepção que Mapplethorpe habita a periferia do mainstream da arte contemporânea, que é um artista que certos teóricos e historiadores de arte tendem a esquecer. Como exemplos, mencionem-se Rosalind E. Krauss ou Benjamin H. D. Buchloh. “Quem conhece o trabalho desses autores, sabe que têm uma visão muito particular da história da arte moderna e contemporânea. É uma escola muito específica, com uma versão teleológica do que é arte. Tudo o que entra nessa evolução e teologia faz sentido e é objecto de reflexão. Já o conteúdo, simplesmente conteúdo, como seriam, se quiser, as fotografias do Mapplethorpe, não funciona. Mas isso não significa que o considerem um artista irrelevante, muito pelo contrário.”
Um dos críticos que mais defenderam a obra do autor de capa de Horses, de Patt Smith, foi o americano Dave Hickey, autor de livros como The Invisible Dragon e Air Guitar. Com uma verve apaixonada, encontra beleza nas fotografias mais sexuais de Mapplethorpe e critica o museu de arte contemporânea como um espaço que elimina a experiência do prazer no encontro com as obras de arte, substituindo aquele pela procura do significado e a teorização. “Não foi o único intelectual a dar a atenção merecida ao artista”, acrescenta João Ribas. “Destaco os textos que lhe consagraram a Joan Didion e a Susan Sontag, duas enormes figuras culturais do século, duas intelectuais extremamente abrangentes. A Sontag, em particular, foi uma intelectual como já não existe e com uma enorme projecção cultural em comparação com outras figuras que possam ter excluído o Mapplethorpe. O Hickey foi exactamente crítico da postura dos outros autores que já referimos. Rejeitava, nesses modelos teóricos, a omissão do prazer, do prazer de olhar uma obra. Por acaso, identifico-me mais com a escola da Rosalind E. Krauss e do Benjamin H. D. Buchloh, mas um museu tem de ser mais abrangente do que uma certa teoria ou história de arte."
Uma composição controlada
A expectativa de um encontro ou de um reencontro com a obra de Robert Mapplethorpe passa também por um imaginário da relação que temos com o retrato de certas figuras, e em particular pelo modo como as capturou num instante, concentrado nas questões da composição, da luz e da tonalidade. O retrato afigura-se, aliás, com um dos temas centrais da exposição e aquele no qual se pode explorar o sentido da sua influência em artistas que trabalham, essencialmente, com a fotografia. “É importante sublinhar que o que ele fez está mais relacionado com a fotografia do século XIX e com o modelo clássico da pintura. Temos de nos lembrar que, quando começa a tirar fotografias, ele próprio é um coleccionador de fotografia. A fotografia era desvalorizada, tratada como um meio. E ele consegue nos anos 70 juntar uma colecção de fotografias do século XIX, algumas da autoria de [Félix] Nadar, por preços ridículos.”
Esta relação material e sensível com arte fotográfica nos seus primórdios acaba por moldar o seu fazer e a relação com o outro retratado. “Foram muito raros os retratos realizados fora do estúdio. A condição novecentista, a ideia dos tableaux vivants fotográficos foram grandes influências para ele. Repare que a grande maioria das imagens correspondem a interiores. As excepções, como a da bandeira americana, são simbólicas.” Acrescente-se a este modo de fazer um método que se tornou traço recorrente e reconhecido na sua obra, como documentam o livro de Patti Smith e o documentário Look at The Pictures, que integrou o Doc Lisboa em 2016. “A sessão fotográfica era mínima. De uma prova de contacto, há dez imagens. Outros fotógrafos tiram 20, 40, centenas. A composição era completamente controlada. A luz era quase sempre natural, a composição era feita na câmara. Ele era obsessivo no enquadramento, nada era casual. Procurava uma perfilhação na forma.”
Dar dignidade aos sujeitos fragilizados pela história
Este controlo pode ser testemunhado nos retratos de homens negros, nus, devidamente identificados, amantes, amigos ou modelos. Imagens que remetem ora para uma representação de sujeitos da comunidade negra homossexual, ou para a representação estilizada do corpo masculino. A maioria fez parte da exposição Black Males, apresentada em 1986, e que valeu a Mapplethorpe críticas do artista conceptual Glenn Ligon e do poeta e activista Essex Hemphill, ambos afro-americanos homossexuais. No centro da polémica estava a representação daqueles indivíduos como meros sujeitos sexuais e o facto de enquanto imagens poderem contribuir para o estigma racial do afro-americano. “Sim, foram críticas válidas”, admite João Ribas. “Mas há que voltar às imagens para ver qual era a relação que ele tinha com essas figuras e perceber que havia uma questão que era histórica, política, pessoal e estética. A questão política continua a ser a ameaça que o corpo negro representa e que sofre. No contexto dos EUA, foi sempre objecto das mais horrorosas violências e continua a ser visto como uma ameaça, não apenas em termos raciais, mas também sexuais. Basta lembrarmo-nos do filme O Nascimento de Uma Nação (1915), do D. W. Griffith. Depois há a não-presença do corpo negro na história de arte e, em particular, na da fotografia. Quanto à questão pessoal, vamos consultar as provas e descobrimos que ele fazia os retratos destas pessoas. Era um trabalho muito profundo de várias sessões, com grande intimidade e muitos casos sem teor sexualizado.”
Sem eliminar a oportunidade das críticas, João Ribas propõe que atentemos na particularidade do olhar de Robert Mapplethorpe, na sua sensibilidade à vida dos retratados ou na crítica à realidade que subtil, distante ou poética se torna bastante elucidativa na fotografia Pila e Pistola. “Não eram só negros, mas homens negros homossexuais, cuja sexualidade era associada com a violência, a doença e a repressão. O artista trouxe-os para a fotografia e com os seus nomes. O corpo negro continua a ser um corpo fragilizado e o Mapplethorpe deu-lhe dignidade. Quem é que morria de sida quando as fotografias foram tiradas? Quem era considerado desumano? Ainda hoje, nos Estados Unidos, a violência é direccionada e continua a ser direccionada para o corpo negro. Repito, a crítica é valida, pois temos de ter conta que há um problema de representação. Quem representa e como representa? Claro que essa questão tem de ser levantada. Por exemplo, quando grandes artistas ocidentais trabalham questões que não são ocidentais. Veja-se a realidade dos refugiados quando tratada por artistas ocidentais. Isso também é criticado e não deixa de ser um trabalho fundamental. A crítica não implica que os trabalhos não preservem a dignidade dos temas e daquilo que é representado.”