Ir e voltar à Sardenha
A ilha italiana é uma espécie de Caraíbas na Europa. São várias, e sempre boas, as razões para lá voltar, entre elas a oportunidade de gozar um Verão não muito caro, parte das vezes mais barato do que no Algarve, sabendo procurar.
Foi preciso um cão para quebrar a minha promessa de não escrever sobre a Sardenha, ilha onde já passei férias 12 vezes desde 2004. Queria manter o segredo de umas Caraíbas europeias a duas horas de voo, preservar um sortilégio que me continua a encantar, guardar para mim um gozo que começou por ser lúdico e visual e agora é também sentimental. São várias, e sempre boas, as razões para voltar à ilha italiana, entre elas a oportunidade de gozar um Verão não muito caro, mais barato do que no Algarve, parte das vezes, sabendo procurar. Como em qualquer outro destino turístico, são de evitar, sempre que possível, os meses de Julho e Agosto.
Nos primeiros anos, viajámos sem destino certo não com um cão, mas com um miúdo na altura de 13 meses na cadeirinha do banco de trás do carro alugado. São essas viagens de navegação à vista que permitem encontrar alojamento onde menos se espera, perguntar aos locais onde podemos passar a noite e onde se come bom e barato.
Foi assim que ficámos numa pequena vivenda com um jardim de meio hectare sobre o mar, com um inconveniente – a cama tinha um colchão de água, o que fazia com que as noites fossem passadas sobre ondas rebentadas sempre que se mudava de posição! À falta de alojamento em Capo Coda Cavallo, a 30kms a sul de Olbia e com uma esplêndida vista sobre a ilha de Tavolara, o gerente de um aldeamento, vendo a criancinha, disse-nos que podíamos ficar em casa dele.
Dali íamos a pé para a praia de Lu Impostu, a dois passos da Cala Brandinchi, mais conhecida por Tahiti, dada a sua extraordinária beleza. Ficámos amigos e voltámos três anos seguidos. Foi com Carlo Palese que descobrimos a comida de montanha, nomeadamente um queijo azul com lombriguinhas sempre a mexer… A montanha sarda, assim como a sua comida de enfarta-brutos que faz lembrar a do interior nortenho português, é uma outra história que não cabe aqui. É a história dos agroturismos, a melhor forma de conhecer o interior sardo.
Faltam-me alguns dedos para conhecer a Sardenha como a palma da minha mão. Os guias ajudam, bem entendido, assim como as revistas monotemáticas italianas de viagem, Meridiani, Condé Nast Traveller ou In Viaggio, entre outras. Claro, fui à famosa Costa Esmeralda, a norte, para ver como vivem os milionários nos seus superiates, mas foi no sul que vi ao largo do ultrafino Fort Village o ainda maior iate do Abramovich, que em tempos contratou o Mourinho para o seu Chelsea Futebol Club.
Faltam-me, a norte, o arquipélago da Maddalena, a língua de Stintino e a ilha de Asinara mas, em compensação, a sul, já fui por duas vezes às ilhas de S. Antioco e de S. Pietro. É nesta ilhota que se concentra a indústria de pesca do atum e se secam as suas ovas (bottarga), bem como as mais vulgarizadas e menos salgadas mas igualmente muito saborosas ovas de tainha, que se comem fatiadas finas com aipo aos quadradinhos e um fio de azeite, ou em grânulos que tradicionalmente polvilham o spaghetti alle vongole veraci (amêijoas verdadeiras). É na sua capital, Carloforte, que o restaurante Al Tonno di Corsa só serve atum fresco, desde a entrada à sobremesa. Falta-me, a oeste, o golfo de Oristano mas ainda não me sobra, a leste, o golfo de Orosei, onde estive este ano.
É daqui, da Cala Gonone, que partem a toda a hora os pequenos barcos de passageiros que levam os veraneantes para as diversas e belas praias só acessíveis por mar. Não se esqueça de incluir na ida de meia hora uma visita à Grotte del Bue Marino, com um quilómetro de extensão. É de Orosei, a hora e meia por estrada de montanha, que se chega à labiríntica vila de Orgosolo, outrora famosa pelos seus bandidos e sequestradores, terra de emigração, de lutas políticas antifascistas e sindicais cuja história ficou estampada em frescos nas fachadas dos edifícios. Ainda hoje prossegue essa tradição de um dramatismo popular interventivo com graffiti denunciando todas as injustiças do mundo, as passadas e as recentes.
Mas o Sul é sempre o Sul, associado ao imaginário que o sol proporciona a todos os que procuram o retempero individual e familiar. E tem sido no Sul da Sardenha que temos passado férias nestes últimos anos. Foi graças à Isabel, perita em encontrar a solução de última hora e recurso, e o destino mais remoto, que conhecemos e mais tarde nos tornámos amigos de Aldo Bertorino. Há alguns anos instalou-nos no seu apartamento de Pinus Village e tem sido desde então o jovial companheiro que sempre encontra o que procuramos.
Foi nesta praia que a magia do Sul nos apanhou durante um piquenique na praia seguido de banho quase à meia-noite com a lua cheia a nascer sobre o mar. Não é um aldeamento turístico, é um aldeamento dos sardos e passar férias só entre italianos é um prazer de algazarra latina e de cheiros a legumes, peixe e carnes grelhadas à varanda ou nos jardins. Tem sido o Aldo e a sua família que nos ajudaram a descobrir e a ficar na zona. Uma vez levou-nos de barco de borracha a Porto Zafferano, uma praia interdita numa zona militar por ter sido alvo de tiros de treino da aviação italiana. Ainda se viam na areia restos de bombas e aletas de mísseis.
Chia, a meia hora de estrada a oeste de Cagliari, foi considerada a melhor praia de Itália no ano passado e tem sido o nosso destino preferencial nos últimos anos. É um conjunto de vários areais, tem dois ou três hotéis dissimulados, um parque de campismo, alguns restaurantes, vivendas esparsas e o popular Mongittu, uma pastelaria mini-mercado onde toda a gente se encontra antes da praia para comer um cornetto alla marmellata e um cappu (croissant com compota e cappuccino), o pequeno-almoço típico dos italianos.
Cinquenta quilómetros a leste da capital está a popular e massificada Villasimius. Tem bons areais, mas passe por lá como por praia vindimada e avance até Sant’Telmo e depois até Costa Rei. A primeira localidade tem pequenos alojamentos e uma praia muito sossegada e a segunda, mais popular, um extenso areal.
São várias as razões para voltar à Sardenha e uma delas, não ficando em hotéis, é a de poder comprar legumes, frutas e queijos, os pecorinos, de preferência, aos agricultores locais que montam as suas bancas nas estradas, de levar o típico Carasau, um excelente pão ázimo, comprar tainhas pequenas onde as houver e preparar a refeição em casa, acompanhada com os poderosos tintos sardos, em especial o Cannonau.
Não sei se o que me faz voltar a esta ilha é a gente sarda, acolhedora, simples e despretensiosa. Não sei se são as vistas para as torres catalãs de vigia e defesa centenárias que povoam o litoral, se as misteriosas ruínas nuraghi, habitações milenares de origem desconhecida, se são as suas calas (praias pequenas) em recantos acidentados e escondidos, se é a água baixa, quente e turquesa na sua limpidez, se são suas gastronomias costeira e de montanha, em especial a bottarga e o leitão, se as aldeolas do interior com excelentes pizzas a 5 euros, se os rosáceos das formações rochosas.
A vinda da Luna permitiu-nos descobrir praias desertas ou partilhadas por meia dúzia pessoas, o que é um privilégio, porque nos devolve o sossego do silêncio e a contemplação intemporal da paisagem envolvente.
Como dizia Alexandre O’Neill, há mar e mar, há ir e voltar. Voltar à Sardenha é como voltar à despreocupada imaginação infantil no que ela tem de ausências da realidade, daí o sortilégio que me encanta.