Orson Welles e Robert Mitchum: quando a noite caiu sobre os últimos dos moicanos
Duas personagens crepusculares, e com elas o crepúsculo de um certo cinema americano, compareceram no 75.º Festival de Veneza. Uma delas, o mítico Orson Welles, ressuscitou agora graças ao dinheiro Netflix: experiência melancólica e especulativa, o resgate de The Other Side of the Wind.
Aquela cena em que a personagem de Quinlan, em A Sede do Mal (1958), agarra um ovo e o esborracha foi um acaso, um impulso do momento do actor Orson Welles, um acidente. Esse filme foi o início da sua ruína, da descrença dos produtores, que fugiam dele como o diabo da cruz, e levou a exilar-se de Hollywood durante quase duas décadas o tipo que – azar dos azares, toda a gente o lembrava disso – fizera o “maior filme de todos os tempos” quando tinha apenas 25 anos.
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Aquela cena em que a personagem de Quinlan, em A Sede do Mal (1958), agarra um ovo e o esborracha foi um acaso, um impulso do momento do actor Orson Welles, um acidente. Esse filme foi o início da sua ruína, da descrença dos produtores, que fugiam dele como o diabo da cruz, e levou a exilar-se de Hollywood durante quase duas décadas o tipo que – azar dos azares, toda a gente o lembrava disso – fizera o “maior filme de todos os tempos” quando tinha apenas 25 anos.
Quando quis reavivar a sua carreira nos anos 1970 da Nova Hollywood, porque nessa altura os “jovens turcos” achavam que ele era o papa e tudo parecia possível de novo, Welles lembrou-se desse ovo de A Sede do Mal, desse acidente. O seu regresso em grande a Hollywood, com o filme que permitiria fechar um círculo com O Mundo a Seus Pés (1941), seria uma coisa nunca antes vista, sem argumento, improvisada, um filme à procura do que pudesse acontecer – como telefonar ao amigo Peter Bogdanovich para filmar. Nessa mesma manhã, Bogdanovich partia do aeroporto de Los Angeles a caminho do Texas e de A Última Sessão, mas sem problema, aproveita-se a auto-estrada sobre a qual os aviões já voam a rasar, e filma-se aí.
Bogdanovich, mas também Mercedes McCambridge, Susan Strasberg, Claude Chabrol, Paul Mazursky, Dennis Hopper, you name it… foram convocados para fazerem de realizadores, críticos, actores, personagens da comunidade de cinema que pairava em redor de Jake Hannaford, um grande autor que regressava a Hollywood depois de anos de exílio para fazer a sua obra máxima – nada de confusões entre a ficção e a realidade, segundo Welles The Other Side of the Wind não contava uma história autobiográfica, seria uma sátira, com argumento do realizador e da sua amante, Oja Kodar.
Durante alguns anos, todos eles andaram a filmar pedaços de cenas, a preto e branco ou a cores, por exemplo da festa com que Hollywood recebia o regresso de Jake Hannaford, mas nem sequer havia actor a fazer de Jake Hannaford. Depois houve: John Huston, amigo de Welles, e tal como ele alguém com capacidade de carregar a sua própria mitologia.
Foi assim desde 1970: dinheiro que aparecia e desaparecia com os produtores (ou com a Revolução Iraniana, que congelou as posses de um familiar do Xá disposto a investir); uma consagração do American Film Institute, em 1975, em que Welles depositou, sem sucesso, a esperança de que podia “vender”-se e chamar financiadores; e o fim da Nova Hollywood, com Tubarão e Star Wars, a dar a estocada final, colocando Welles na prateleira do passado. Orson Welles morreu em 1985 sem ter concluído o filme sobre Jack Hannaford, mítico e alcoólico cineasta que regressava a Hollywood para concluir The Other Side of the Wind mas morria antes de cumprir a missão. É esse filme incompleto que pode ser hoje espreitado, imaginado, graças ao dinheiro Netflix e ao produtor Frank Marshall. Foi apresentado no Festival de Veneza como acontecimento especial juntamente com o documentário They’ll love me when I’m dead, de Morgan Neville, que conta esse período da vida de Welles tendo como título uma declaração que vários afirmam ser do realizador mas que ele negou alguma vez ter proferido.
É como um dos narizes com que Welles se mascarava habitualmente nos filmes. The Other Side of the Wind está cheio deles. Por exemplo, o filme dentro do filme, aquele que Jack Hannaford está a fazer: segundo Welles, era o estilo de cinema que ele nunca adoptaria. Onde passa mais do que uma ironia contra a “noia” de Antonioni e contra o vazio trabalhado pelos novos cinemas desses anos, o de Bertolucci e o da Nouvelle Vague, mas onde se descobre também uma extraordinária primeira vez para ele, o erotismo, com uma cena de sexo dentro de um carro protagonizada por Oja Kodar que ainda hoje, sobretudo hoje, é assombrosa.
É um contraste profundo, aquele que a estilização e as cores do filme dentro do filme contrapõem ao estilo “documental” das imagens, a maior parte delas a preto e branco, do mundo que rodeia Jack Hannaford, e em que Welles, o homem dos travellings, dos planos-sequência e dos tectos a perder de vista, cerra o seu ajuste de contas com Hollywood e consigo próprio sobre grandes planos dos seus amigos e convidados. E em que vai destruindo, com a vertigem da montagem, o sentido das coisas, em ultima análise o próprio filme, como se só assim se restituísse o caos da realidade. É algo só para poucos, e ainda assim esta à beira do suportável (há quem saia da experiência a desejar que ela tivesse ficado no domínio do mítico e do invisível), e que, por exemplo, quando tentado pelo documentário They’ll Love Me When I’m Dead, em jeito de homenagem e imitação, fica preso da brincadeira cabotina.
É impossível saber o que seria The Other Side of the Wind. Se o que vemos está mais próximo de hoje do que dos anos 70 – como se Welles tivesse percebido primeiro do que nós o fulgurante vazio da distinção entre “ficção” e “realidade” –, está também preso da crónica incompletude e de uma impotência wellesiana. É tremendamente melancólico experimentar The Other Side of the Wind. Acabar um filme, para Welles, era morrer um pouco?, pergunta-se em They’ll Love Me When I’m Dead.
O king of cool
Há ovos de improviso também na carreira de Robert Mitchum, na cena de violação de O Cabo do Medo (J. Lee Thompson, 1962): esborrachou-os e besuntou com eles Polly Bergen, esbofeteou-a, horrorizou-a, e, depois do “corta”, saiu do seu transe, abraçou-a, afagou-a, desculpou-se – e Polly apaixonou-se.
Nos anos 90, o fotografo Bruce Weber, à custa de flores e de bolos (e às vezes de livros), convenceu Mitchum a deixar-se retratar num documentário, filmando-o em bares e restaurantes de hotéis, rodeado de amigos e de jovens actrizes à procura de uma sorte. Entrou num estúdio de gravação, onde Mitchum, Marianne Faithfull e Rickie Lee Jones trabalhavam num projecto com canções de Julie London, álbum que nunca chegou a ser concluído. Nice girls don’t stay for breakfast era uma dessas canções, e ficou como título do resultado desses encontros com o actor. O material fora arrumado por Weber a um canto com a morte de Mitchum em 1997; só recentemente voltou a ele e estruturou o filme, exibido no festival na secção Veneza Classici.
Porquê Mitchum, o tipo que se estava a marimbar, que tinha o objectivo de ser um vadio mas nunca uma estrela de cinema? Porque o corpo do actor, e a masculinidade tão segura de si que parecia permitir-se estar adormecida, razão, também, da sua ameaça (e no entanto, ou por causa disso, o genérico é com Micthum em drag, cenas de um Girl Rush de 1944), são hoje assumidos pelo fotógrafo como a imagem original dos corpos masculinos que fotografa e que o celebrizaram. Mitchum ficou associado à infância e à intimidade de Weber de forma profunda, aliás: estando os pais à beira do divórcio, as escapadelas da mãe para se encontrar com o amante em restaurantes e bares, levando com ela o filho como disfarce, punham a criança em contacto com a fauna masculina desses espaços, homens com vozes de whisky que aos olhos do miúdo eram versões de Robert Mitchum.
À sua fantasia, Robert Mitchum, Bruce Weber faculta o cenário, o álcool, o tabaco, os bares de hotéis e as raparigas, apaparicando-o com coisas de que o actor gostava, tal como fez com Chet Baker no documentário Let’s Get Lost, de 1988. Nice Girls Don’t Stay for Breakfast permanece sempre perante essa armadura, nunca há a tentativa de a desvendar – encontraria uma impossibilidade pela frente, de qualquer forma. Há aquele pedaço em que uma neta conta um episódio do passado em que o avô saiu para o jardim e para a piscina com uma caçadeira, porque o mundo seria melhor sem ele. Há aquele momento em que Mitchum, a contragosto, se explica: quando lhe perguntam “como estás?”, responde “pior”, porque não quer que lhe aconteça como a Lex Barker, que disse que estava bem e foi fulminado por um ataque cardíaco (Mitchum não queria ser surpreendido.) De Shirley MacLaine, um dos seus amores, fica a definição de um homem complexo e tímido ao ponto do desprendimento emocional. Como naquele plano final em que a câmara parece despedir-se dele na noite, ele fica a olhar com embaraço, como que perguntando o que estão ali a fazer os dois, e depois esboça uma “saída”, tipo “sou o último dos moicanos, não é?”, não convicto dessa sua existência, porque de qualquer forma não tinha convicções sobre o que estava a fazer “aqui”, e assim tomba a escuridão sobre o king of cool.