Igreja Católica: “O cisma não está à vista, está escondido”

Ataque dos ultraconservadores da Igreja católica contra o Papa é visto entre a sociedade civil como “perverso” e “oportunista” por este ter tocado nos maiores problemas da história da instituição: o corpo/sexo e o papel da mulher. É o embate do “encobrimento” contra a “abertura”.

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O Papa Francisco atravessa o momento mais crítco do seu pontificado Reuters/ALESSANDRO BIANCHI

Dois escritores, um psiquiatra, uma eurodeputada e um professor, vozes conhecidas da sociedade civil, falam sobre o momento actual da Igreja Católica. Que dizem? Os católicos irlandeses devem inspirar os portugueses na denúncia de "quem se aproveita da instituição para a perverter"; Francisco uniu católicos e não católicos num ideal de humanidade e, se se radicalizar, perde; acontece adolescentes homossexuais em transição precisarem de ajuda para fazer o caminho e os pais também.

Daniel Sampaio, psiquiatra

O pedido de desculpas é muito importante mas não é suficiente. É preciso não silenciar casos que existam e ser implacável com as pessoas culpadas. São necessárias medidas correctoras e não apenas arrependimento.

[Também] as declarações do Papa Francisco [sobre o que podem os pais fazer perante a manifestação de homossexualidade de um filho] não foram claras. É preciso explicar muito bem. Numa criança é difícil detectar a manifestação de homossexualidade, com um adolescente pode haver ajuda psicológica ou psiquiátrica para lidar com a situação, mas não numa perspectiva curativa, que é muitas vezes o que leva os pais a pedirem ajuda. Esse esclarecimento é importante porque as declarações do Papa abrem caminho a considerarmos a homossexualidade uma doença. Por isso, precisam de ser contextualizadas. No reconhecimento de homossexualidade há sempre uma fase de angústia por parte do próprio, pelo que deve ser dado ao adolescente a possibilidade de falar com um técnico, e também aos pais.

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Do papado de Francisco, Daniel Sampaio, agnóstico, destaca "abertura" aos não católicos Rui Gaudêncio

As ligas de apoio à homossexualidade valorizam pouco as dificuldades dos pais em lidar com a orientação sexual do seu filho ou filha. Ninguém escolhe ser homossexual, é um processo que demora anos, sempre com muita angústia dos próprios e dos pais. São situações difíceis em que é preciso ajudar os pais a lidar com estas situações.

Sou agnóstico, o que significa que não combato a ideia de Deus mas não tenho fé. Vejo que houve abertura deste Papa aos católicos não praticantes na aproximação destes à Igreja. É uma mensagem muito humana, mas o tempo vai passando e são precisas respostas. A tónica é que os ultraconservadores estão a aproveitar as dificuldades para obstaculizarem as reformas. Estão a aproveitar a ambiguidade para fazer um caminho de retrocesso, que condeno. As questões do celibato, da homossexualidade, do preservativo têm a ver com as pessoas do século XXI. A igreja tem de se abrir com prudência, mas tem de se abrir.

Ana Gomes, eurodeputada

O escândalo da pedofilia é gravíssimo e seriíssimo, tem sido desvalorizado e encoberto desde sempre. Se houve Papa que lidou com isto tem sido Francisco. Por isso, o que está a acontecer é uma forma de aproveitamento perverso e oportunista contra este Papa que em muitos aspectos foi inovador e progressista e o oposto do establishment conservador que permitiu durante séculos o problema da pedofilia se mantivesse.

Há países onde a sociedade civil, os fiéis, têm tido um papel absolutamente fundamental para a Igreja reconhecer, mudar procedimentos e controlos. O nosso país não está nesse conjunto. Espero que os católicos portugueses sérios se inspirem nos exemplos dos irlandeses que têm vindo a público denunciar quem se aproveita da instituição para a perverter. Nisto, estamos a revelar um défice democrático.

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Ana Gomes diz que o Papa irrita o "establishment reaccionário" Miguel Manso

Não concordo com o Papa Francisco em muitos pontos, mas representa uma Igreja atenta, mais aberta às pessoas e o establishment reaccionário não o tolera porque é contra os seus cânones. Temo que [o que está a acontecer] seja um ataque, utilizado de forma perversa, contra o Papa naquilo que é inovador e de aproximação a novas realidades.

Miguel Real, escritor

A Igreja é uma instituição sempre em crise, porque vive fora do tempo profano e com regras próprias. Agora esta instituição encontra-se numa crise muito forte. O conjunto de nós nervosos da instituição está a embater fortemente com o tempo do mundo profano – viu-se com a questão do aborto irlandês, um país que era profundamente católico, hoje com um primeiro-ministro assumidamente homossexual, um país que está a mudar. Toda a Europa está a atingir uma fase civilizacional que não se coaduna com uma instituição fora do tempo: a sua própria história, a indumentária dos sacerdotes de carácter medieval, já não se adequam ao nosso tempo, por outro lado é isso que dá grande singularidade à Igreja Católica.

A igreja de hoje perdeu o poder de legislar sobre os povos, de os orientar. É respeitada mas não seguida, por exemplo na questão do preservativo. Como está fora do tempo faz a sua própria escola, retiros, músicas, mas sem poder objectivo.

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Miguel Real: "O Papa Francisco não parece ser um radical" Pedro Cunha

O celibatarismo e o estatuto da mulher são os dois grandes problemas, do ponto de vista histórico, que estão a embater contra um clero que, até pela sua formação em seminários, não pode aceitar com facilidade. A mulher é um problema desde S. Paulo (ser inferior) e o corpo/sexo é-o desde o concílio de Trento.

Este papa que veio do fim do mundo parece que quer resolver isto, não de forma radical, mas isso tem gerado no alto clero da cúria romana uma grande intranquilidade. O tempo deles é o de Pio XI e Leão X, e agora aparece uma nova igreja com este Papa.

Este embate procura provocar uma radicalização no Papa Francisco, para depois refazer o avanço e tomar de novo o poder. Se se radicalizar, ele perde. No entanto, o Papa Francisco não parece ser um radical e tudo pode acabar em águas de bacalhau, como aconteceu com a Igreja em relação ao lucro e ao capitalismo.

Eduardo Paz Ferreira, professor universitário

Depois de João XXIII, Francisco foi o único papa que passou uma mensagem capaz de unir católicos e não católicos num ideal de humanidade e de empenho contra os males da sociedade.

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Paz Ferreira: Francisco passou uma "mensagem capaz de unir católicos e não católicos" PÚBLICO

Cinquenta anos depois, Francisco, com ainda maior vigor, declarou guerra às injustiças de um mundo cruel, desigual e desumano. O mundo que cerca Francisco é pior [do que então]. A classe política em geral degradou-se e no interior da Igreja instalaram-se gatos gordos e viciados que não hesitam face aos riscos que correm nas manobras mais torpes.

As mais recentes elevações a cardeal deixam alguma esperança.

Lídia Jorge, escritora

Este era o momento que se adivinhava. O Papa Francisco está a mexer em estruturas profundas da Igreja tradicional. O cisma não está à vista, está escondido. Há uma Igreja arcaica escondida que encontrou forma de ajustar contas num aspecto fútil. Tenho esperança num esclarecimento, que pode ir à ruptura. Se assim for, que seja feita porque a Igreja precisa de um esclarecimento.

Estou convencida que o Papa irá ultrapassar [este confronto]. É um homem profundamente misericordioso, age com grande alegria, age nas grandes causas e nas questões de consciência privada trata-as em privado.

Nos primeiros tempos de nomeação do Papa encontrei escritores argentinos que o acusavam de ser reaccionário e de encobrir torcionários. Confrontado com isso, foram os factos que os desmentiram e viu-se que era inocente. A prova de que estavam errados é a sua abertura aos homossexuais.

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Lídia Jorge: "O cisma não está à vista, está escondido" Pedro Cunha

A igreja mais arcaica encontra na inacção aparente do papa um pretexto para lutar por duas coisas: o sistema neocapitalista que ele tem derrubado com as várias encíclicas e as questões sexuais, homossexuais, e o papel das mulheres e dos recasados.

Viganò representa as pessoas contra a abertura do Papa. Elas é que estão na estrutura de encobrimento total dos abusos e do marasmo criado à volta destas situações anómalas, elas é que são defensoras do estatuto arcaico e aparecem assim de forma surpreendente a dizer que o Papa sabia e não agiu.

Que as pessoas fora da Igreja os católicos comuns reclamem eu compreendo, se ele tem um segredo tão grande, onde estão os prevaricadores, se ele se calou, temos o direito e o dever de reclamar. Agora, os próprios de dentro da Igreja, os reaccionários, os que são contra a mulher, contra a abertura das questões sexuais? A razão está totalmente do lado do Papa Francisco.

O bairro das Flores é o bairro mais violento de Buenos Aires. Foi lá que o Papa nasceu e cresceu. Ele sabe esperar e lutar.

Depoimentos recolhidos por Lurdes Ferreira e Ana Sá Lopes