América, junto às chamas
Um italiano branco chegou a uma comunidade de Nova Orleães flagelada pelo crack e pela violência policial, e o resultado podia ser uma canção sobre a sensação de inferno: What You Gonna Do When The World is on Fire?, de Roberto Minervini.
O título parece uma canção, restos de um documentário que o italiano Roberto Minervini queria fazer em Nova Orleães sobre a história da música afro-americana. Foi ao longo do percurso — por isso ele diz que faz os filmes por instinto — que What You Gonna Do When The World is on Fire? fez inversão de marcha em direcção ao presente e se tornou um filme sobre o lugar onde as chamas são mais infernais na América: um bairro negro. Isto aconteceu quando, no bar de Judy Hill, onde a ouvia cantar, Minervini e a sua equipa começaram a ouvir também a(s) sua(s) história(s) marcadas a fogo pelo crack.
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O título parece uma canção, restos de um documentário que o italiano Roberto Minervini queria fazer em Nova Orleães sobre a história da música afro-americana. Foi ao longo do percurso — por isso ele diz que faz os filmes por instinto — que What You Gonna Do When The World is on Fire? fez inversão de marcha em direcção ao presente e se tornou um filme sobre o lugar onde as chamas são mais infernais na América: um bairro negro. Isto aconteceu quando, no bar de Judy Hill, onde a ouvia cantar, Minervini e a sua equipa começaram a ouvir também a(s) sua(s) história(s) marcadas a fogo pelo crack.
É decisivo, em What You Gonna Do When The World is on Fire? (a concurso na 75.ª edição do Festival de Veneza), essa chegada de um italiano branco (que vive em Houston, Texas) no momento certo a uma zona pobre de Nova Orleães, entre Baton Rouge e Jackson, onde 70 por cento da população é negra e flagelada pela droga e pela violência policial – com o seu património de baleados, como Alton Sterling e Philando Castile. Isto é, no momento certo para as personagens contarem as suas histórias, reclamarem através delas o protagonismo das vidas que a História lhes tirou e poderem libertar a palavra que já não conseguem suster. Quer sejam Judy Hill, os miúdos Rolando e Titus, que a mãe tenta que escolham caminhos diferentes dos do pai que está na prisão, ou os homens e as mulheres do New Black Panthers Party for Self Defense, que Trump colocou na “terrorist watch list” ao contrário do que fez com o Klu Klux Klan.
What You Gonna Do When The World is on Fire? é receptáculo dessa urgência. Judy Hill, na conferência de imprensa, disse: “Foi como se estivéssemos à espera de Roberto”, mesmo que não lhe tivesse passado pela cabeça que “aquilo” era um filme. Minervini emocionou-se, disse que era injusto atribuírem-lhe o filme, o filme pertencia-lhes. Com a montagem e a fotografia a preto e branco dos seus habituais Marie-Hélène Dozo e Diego Romero, e com o método habitual de filmar, filmar o mais possível, sem nada escrito, à espera do “momento mágico” em que tudo parece ficção, o realizador de Louisiana: The Other Side (2015), Stop the Pounding Heart (2013) ou Low Tide (2012) acaba por fazer, afinal, um documentário musical: What You Gonna Do When The World is on Fire? é como uma canção, síntese feita com a urgência comovente das palavras e um continuum unificado pela fotografia e pela montagem. Entre duas sequências do Mardis Gras em Nova Orleães, então, “a sensação” do inferno, o lugar onde as chamas mais queimam nos Estados Unidos da América.
“Great american film”
É da América como inferno que fala também o filme que mais divide no concurso, The Mountain, de Rick Alverson (concurso) — afastou decididamente os que gostam dos que não gostam. E é claramente do presente que fala, apesar dos anos 50 e da sua preciosa e abstracta existência com os cenários e o mobiliário que fazem a, digamos assim, “reconstituição”. Jeff Goldblum é um lobotomista, Tye Sheridan, que há cinco anos foi premiado em Veneza como jovem talento emergente por Joe, de David Gordon Green, é o jovem que não se despega dele nas visitas a hospitais e corredores de asilos onde o médico emprega métodos “inovadores” em mulheres. É uma relação ambígua e reprimida num universo castrador e de emoções congeladas, o fascismo, a inércia e o conformismo. Bem, é isso e às tantas pode ser outra coisa qualquer, porque o realizador de The Comedy (2012) e Entertainment (2015) está sobretudo interessado em afirmar as marcas do seu “great american film” (não será em vão que se invocou por aqui o nome de Paul Thomas Anderson) e a maior parte da experiência de The Mountain é uma exasperante contemplação de naturezas mortas e de umbigos – por exemplo, os incompreensíveis solos e coreografias de Denis Lavant, que está ali para sinalizar, é claro, a pertença do filme a uma “família”.
É junto de um processo de libertação, podemos sentir assim, que se coloca Charlie Says, de Mary Harron (fora de concurso). “Charlie” é Charles Manson. O filme fala-nos de três raparigas, Susan Atkins, Leslie Van Houten e Patricia Krenwinkel, na altura da comutação da sua pena de condenação à morte — pelo assassinato de Sharon Tate e amigos na casa da actriz e de Roman Polanski, a 9 de Agosto de 1969, e, na noite seguinte, do casal LaBianca — em prisão perpétua. Nesses dias depois do massacre, as três meninas da família Manson ainda estavam debaixo do feitiço de Charlie, sem palavras próprias (“Charlie says”...). Mas tiveram a oportunidade de interagir, em aulas na prisão, com uma pesquisadora e professora, Karlene Faith.
É a oportunidade, então, para o espectador do filme, muito antes do anunciado projecto de Quentin Tarantino sobre aquele Agosto de 1969 que acabou com os anos 60 (Once upon a Time in Hollywood), “ver” a interacção no rancho, perceber o que levou raparigas da classe media a aderir à seita, ver, enfim, Manson em acção. Sim, é a lógica do docudrama, essa de dar a ver como foi, e é verdade que não vamos encontrar aqui a liberdade e a iconoclastia de um anterior filme de Harron, o Psicopata American(2000). Mas é curioso como o flashback, com toda a sua previsibilidade, pode ser também, como aqui, um utensílio de libertação: cada uma das raparigas de Charlie encontra a sua própria voz e o filme de Harron também.
Não é nada evidente que Jacques Audiard tenha ido ao western fazer alguma coisa de especial ou que de lá tenha trazido algo para o cinema. Filmou em Espanha e na Roménia, com John C Reilly, Joaquin Phoenix e Jake Gyllenhaal, a América da corrida ao ouro e da matança. Nada de mais. The Sisters Brothers (concurso) consegue sobretudo que os actores se recriem dentro de moldes já conhecidos, iludindo dessa forma a sensação de esgotamento com o bonding do reconhecimento. Mas mantém-se enigmática a razão que atraiu o realizador de O Profeta ao Oregon de 1850. E continua por demonstrar que pode haver western depois de Imperdoável (1992), de Clint Eastwood. Se calhar até se confirma, com The Sisters Brothers e com The Ballad of Buster Scruggs, dos Coen, filmes que há uns anos atrás estariam muito bem “fora de competição” num festival a mostrar as suas estrelas e os seus valores de produção, que não, já não faz sentido que haja.