First Man: não temos a Lua, mas temos a estrela
Uma forma de tentar continuar o sucesso da narrativa Hollywood-Lido sem pactuar com ela da forma mais óbvia: Damien Chazelle abre esta noite o Festival de Veneza com um delicado Ryan Gosling na pele de Neil Armstrong.
Primeiras declarações do presidente do júri da 75.ª Mostra de Veneza, Guillermo del Toro: Netflix ou não Netflix, um filme é um quadrado, o que interessa é o que se passa dentro dele, o que está fora é irrelevante. Guillermo del Toro é cineasta mas também é produtor, está a produzir cinco filmes, três deles realizados por mulheres, isso “não é um gesto, isso é uma necessidade”.
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Primeiras declarações do presidente do júri da 75.ª Mostra de Veneza, Guillermo del Toro: Netflix ou não Netflix, um filme é um quadrado, o que interessa é o que se passa dentro dele, o que está fora é irrelevante. Guillermo del Toro é cineasta mas também é produtor, está a produzir cinco filmes, três deles realizados por mulheres, isso “não é um gesto, isso é uma necessidade”.
Primeira distinção no Festival de Veneza, Vanessa Redgrave, 81 anos, o Leão de Ouro à carreira. Voz grave, presença frágil, pensamento vibrante e alerta. Num curto período de tempo, em conferência de imprensa, “pintou” a Inglaterra da Segunda Guerra Mundial, dependente das vozes da rádio, dos boletins meteorológicos que davam conta do estado dos mares e dos ventos que traçavam a sorte dos soldados ingleses — foi ali que, para ajudar os compatriotas, Vanessa se filiou, criança, no teatro e na imaginação. Mas os factos, diz, são a sua exigência, em nome deles recusou condecorações e fez discursos fracturantes em noites de prémios e congratulações, e por causa deles realizou o documentário Sea Sorrow (2017), sobre a tragédia dos imigrantes que procuram abrigo na Europa, e considera que “os governos europeus perderam o sentido da realidade”, isto é, a sua humanidade.
Agora, da Terra à Lua: First Man, de Damien Chazelle, faz esta noite a abertura da 75.ª Mostra de Veneza. Primeiras impressões após o visionamento para a imprensa: é, se calhar, um filme que procura um lugar, não podendo aproximar-se muito, sob pena de se destruir, de coisas como 2001, Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968) e Os Eleitos (Philip Kaufman, 1983). Mas ao contar a aventura da corrida espacial da missão da Apollo 11, que fez aterrar o primeiro homem na Lua, o filme encontra-se. Encontra um lugar, mesmo que não nos faça chegar à Lua, porque tem consigo a personagem de Neil Armstrong e a interpretação de Ryan Gosling. Com isso, First Man conta esta história da NASA e uma história da América.
“Isso” não é nada a trip de Kubrick, é menos o épico de Kaufman (embora haja “homenagens”, humildes referências aos monumentos por quem sabe que não chegaria ali mesmo que quisesse), é mais a intimidade: o espaço de Neil Armstrong, onde First Man ancora. Sem nunca violar, porque a personagem resiste, porque o homem resistia. Gosling é bastante delicado a viver essa reserva, sem fazer alarde do mistério que a personagem inegavelmente tem, que o homem, ao que se diz, tinha: alguém voltado para a sua missão e para as suas feridas, que se protegia dos holofotes.
Para chegar a esta estirpe de homem, que já era antigo naquele final dos anos 1960, o actor contou, em conferência de imprensa esta quarta-feira, que teve acesso a uma quantidade de informação e a ajuda de testemunhos, escritos e imagens, como nunca antes em outro filme — mais ainda se deve elogiar então a forma como Gosling protege o introspectivo Armstrong interpretando-o.
E Chazelle escolheu um actor que, segundo ele, mantém a reserva e a solidão de figuras do passado (nomeou, aliás, Gary Cooper), e mantém-se também ele próprio, realizador, fiel a uma contenção old school, coisa muito diferente do turismo nostálgico e vintage do famigerado La La Land: Melodia de Amor. Resiste a pactuar com o óbvio do state of the art do espectáculo actual. Pelo contrário, é como se com a personagem de Armstrong o realizador tivesse encontrado um modelo para o seu filme e, com isso, fizesse alguma coisa com... e para... o espectador “analógico” de hoje: como se ensaiasse colocá-lo na experiência de descoberta do mundo “manual” em que a viagem à Lua foi ensaiada e concretizada, em que rapazes fizeram avançar o conhecimento com o que hoje parecem brinquedos de lata.
Sejamos claros: está longe de ser um filme que experimenta ou que se desafia por fronteiras nunca antes ultrapassadas. Foi o próprio Gosling, aliás, que, ao referir-se à sua colaboração com o realizador, contou que La La Land: Melodia de Amor e First Man eram contemporâneos na cabeça de Chazelle enquanto projectos com “instinto” popular e com vontade de universalidade. Fez, aliás, um elogio a essa capacidade do realizador de perceber o que as pessoas querem ver numa sala. First Man está no espaço do conhecido, e algumas vezes pede apenas ajuda à convenção — por exemplo, a montagem paralela — em vez de a utilizar. Mas mesmo que não nos tenha posto na Lua, como filme de abertura no Lido, onde também está em concurso, foi uma maneira de continuar o sucesso de uma narrativa — os americanos que, de Gravidade a La La Land: Melodia de Amor, passando por Birdman, estreiam na Europa os seus produtos antes dos Óscares — sem pactuar com ela de forma mais óbvia.