"Cannes defende ideia de cinema do passado, Veneza abre-se às novas formas do cinema"
O director do Festival de Veneza, Alberto Barbera, tem razões para sorrir no início desta 75.ª edição: o estatuto do evento como rampa de lançamento para os Óscares está consolidado e o pragmatismo em relação aos serviços de streaming compensa.
Em Julho, havia um sorriso no rosto deste homem, Alberto Barbera, 68 anos, quando revelou o programa da 75.ª edição do Festival de Veneza, que dirige (pelo segundo mandato) desde 2011 – houve um primeiro, entre 1998 e 2002, quando transitou da direcção do Festival de Turim, mas foi interrompido por Silvio Berlusconi. Na ressaca da 71.ª edição do Festival de Cannes e das polémicas com o Netflix que colocaram a Croisette na posição de reduto do cinema tal como o conhecíamos, mas com uma programação de resultados menos tenazes do que os princípios, Barbera desenrolou então uma lista de potenciais acontecimentos dos próximos Óscares, de westerns e de comédias, revelou que eram agora seus autores que foram em tempos habitués do festival francês (László Nemes, Jacques Audiard ou Carlos Reygadas) e mostrou uma mão cheia de documentários de fazer inveja: Process, de Sergei Losznitsa, feito com material de arquivo sobre os processos estalinistas que começaram em 1931; Monrovia, Indiana, localidade fora da História e do mapa onde Frederick Wiseman encontra a explicação para Trump; e The Great Buster, de Peter Bogdanovich, sobre Buster Keaton.
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Em Julho, havia um sorriso no rosto deste homem, Alberto Barbera, 68 anos, quando revelou o programa da 75.ª edição do Festival de Veneza, que dirige (pelo segundo mandato) desde 2011 – houve um primeiro, entre 1998 e 2002, quando transitou da direcção do Festival de Turim, mas foi interrompido por Silvio Berlusconi. Na ressaca da 71.ª edição do Festival de Cannes e das polémicas com o Netflix que colocaram a Croisette na posição de reduto do cinema tal como o conhecíamos, mas com uma programação de resultados menos tenazes do que os princípios, Barbera desenrolou então uma lista de potenciais acontecimentos dos próximos Óscares, de westerns e de comédias, revelou que eram agora seus autores que foram em tempos habitués do festival francês (László Nemes, Jacques Audiard ou Carlos Reygadas) e mostrou uma mão cheia de documentários de fazer inveja: Process, de Sergei Losznitsa, feito com material de arquivo sobre os processos estalinistas que começaram em 1931; Monrovia, Indiana, localidade fora da História e do mapa onde Frederick Wiseman encontra a explicação para Trump; e The Great Buster, de Peter Bogdanovich, sobre Buster Keaton.
Em relação ao que se vai poder ver no Lido entre esta quarta-feira e 8 de Setembro, Barbera não mostrou complexos Netflix. Muito pelo contrário. O programa inclui seis filmes produzidos por aquele serviço de streaming, três dos quais em concurso, The Ballad of Buster Scruggs, dos irmãos Coen – western que começou por ser série e agora é filme em episódios –, 22 July, de Paul Greengrass, sobre os ataques na Noruega perpetrados por Anders Behring Breivik, e Roma, de Alfonso Cuarón, projecto pessoal do mexicano, "cenas" da sua memória, os anos 70. E há um título, fora de competição, com que Veneza faz o espectáculo da celebração do cinema: The Other Side of The Wind, de Orson Welles. O projecto de há quatro décadas do produtor Frank Marshall dar-nos-á a ver, respeitando um esboço de montagem original, o argumento e testemunhos, o que seria, se tivesse sido acabado, esse falso documentário sobre um realizador lendário que regressava a Hollywood, após um exílio europeu, para realizar a sua obra máxima. Welles deixou The Other Side of The Wind estilhaçado por vários formatos e agora o filme chega-nos com a ajuda do dinheiro Netflix. Afinal, é o salvador do cinema...?
Este, como os outros títulos, tinha sido retirado de Cannes pela empresa de Ted Sarandos durante o jogo de forças com o festival francês sobre a questão espinhosa da distribuição em sala, condição sine qua non, segundo a Croisette, para um filme produzido por uma plataforma de streaming se habilitar à competição. Cannes ficou refém dos seus princípios e das pressões dos distribuidores franceses, Veneza ficou com os filmes. A sorte protege os que têm sentido prático.
The Other Side of The Wind é um dos títulos mais aguardados do ano. Como serão dos mais falados o filme de abertura, e que também está a concurso, First Man, de Damien Chazelle, sobre os anos 1961-1969 de Neil Armstrong, da NASA e da América – Chazelle regressa ao Lido onde, em 2016, começou a carreira de La La Land – ou, fora de concurso, a estreia de Bradley Cooper como realizador e de Lady Gaga como actriz: A Star is Born, Bradley e Gaga interpretando a história que já foi de Janet Gaynor e Fredric March, de Judy Garland e James Mason, e de Barbra Streisand e Kris Kristofferson. É a confirmação de uma narrativa que, desde a edição 2013, em que o filme de abertura foi Gravidade, de Alfonso Cuarón, e depois com as carreiras de La La Land, O Caso Spotlight, Três Cartazes à Beira da Estrada ou de A Forma da Água, que começaram no Lido antes dos Óscares, passou a ser de Veneza: a rampa de lançamento em que Hollywood, outrora pouco crédula quanto à utilidade dos festivais europeus para promoverem os seus acontecimentos, passou a acreditar.
É por isso que se ri Alberto Barbera. Começámos a conversa por aí.
Na conferência de imprensa de apresentação do programa deste ano referiu-se à decisão “histórica”, nos anos 50, de transferir o Festival de Cannes para a Primavera. Veneza ficaria onde estava, no Outono. Acho que vi um sorriso nos seus lábios...
[risos]
... porque sabe que o seu festival está a tirar partido da ausência de concorrência no Outono, conseguindo aquilo que para Cannes é mais difícil: os filmes americanos que preparam nessa altura o seu lançamento mundial. Vi bem esse sorriso de triunfo?
Foi uma forma de dizer que tudo mudou no mercado. Mas tem razão quando diz que estamos a tirar partido do nosso timing, que coincide com a preparação, por parte dos americanos, da temporada dos prémios. Cannes, realizando-se em Maio, enfrenta alguns problemas. Os Óscares são muito importantes para o cinema americano e muitos dos filmes que querem ser nomeados têm de ser lançados no Outono. Maio é demasiado tarde e demasiado cedo. É uma situação que não criámos, mas que nos é favorável.
Mas não foi sempre assim, pois não? Hollywood entendia que os seus produtos não eram bem compreendidos em festivais europeus com o perfil de Cannes e Veneza, ou que a crítica estragaria a festa. Foi já durante este seu mandato que as coisas mudaram. O que aconteceu?
Há razões diferentes. Houve uma altura em que os americanos pensaram que ir ao Festival de Toronto era melhor e mais barato do que ir a Veneza. Preferiam fazer uma espécie de promoção doméstica em vez de gastar muito dinheiro com voos e hotéis na Europa. Perceberam depois que o que Toronto lhes oferece é mesmo só promoção doméstica: a presença de imprensa internacional é reduzida. Em Veneza temos três mil jornalistas de todo o mundo. Depois, tivemos sorte. Em 2013 abrimos o festival com Gravidade, que foi até aos Óscares [sete, entre eles o de melhor realizador, Alfonso Cuarón]. No ano seguinte abrimos com Birdman [Alejandro González Iñárritu], que receberia os Óscares de Melhor Filme e Melhor Realizador. E a partir daí os americanos perceberam que Veneza podia ser-lhes útil. Ao mesmo tempo, fizemos mudanças no festival. Renovámos as salas, melhorámos as condições de projecção e dos serviços que oferecemos às produtoras, e com isso reactivámos as relações com Hollywood. É para nós mais fácil hoje do que no passado conseguir um filme que esteja a fazer o seu plano de lançamento mundial. E temos o privilégio de poder escolher – nem sempre foi assim. Mas não somos só o festival dos americanos. Temos uma tradição de descobrir novos talentos e novas tendências e de encontrar um equilíbrio entre nomes estabelecidos e descobertas.
Em 2015, Veneza terá sido o primeiro festival a programar em competição um filme Netflix, Beasts of No Nation, que figurou no palmarés. Anos depois Cannes fez o mesmo [Okja, de Bong Joon-ho, e The Meyerowitz Stories, de Noah Baumbach]. Mas Cannes voltou atrás: devido à pressão dos distribuidores franceses contra a presença em concurso de filmes produzidos por uma empresa que não se preocupava com a exibição em sala, a competição passou a estar inacessível ao Netflix. Durante essa polémica alguma vez questionou a presença do Netflix em Veneza ou achou que devia ser pragmático?
Como sabe, o Festival de Cannes mudou de atitude devido à pressão dos distribuidores. Porque a situação francesa é muito específica, as leis são muito restritivas [os filmes só podem aparecer nas plataformas de streaming três anos depois da distribuição em sala]. Outros países europeus, é o caso de Itália, não têm essas leis. Digo-lhe já que me parece impossível sustentar a legislação francesa. Por outro lado, a Netflix ou a Amazon são novos operadores no mercado, não podemos ignorá-los, temos de os encarar; não é útil tentar agir como no século passado, até porque há cineastas consagrados que aceitam trabalhar com eles. Não sei, perante isto, por que é que teria de reequacionar as decisões iniciais.
A questão é que talvez não esteja em causa apenas uma diferente legislação. Se calhar há uma cultura diferente da experiência cinematográfica, logo uma decisão de um festival de cinema é um statement.
Tem razão. De certa forma, Cannes tenta defender uma ideia de cinema que pertence ao passado. Nascemos e fomos criados com essa experiência cinematográfica. Mas estamos num novo milénio, o cinema está a mudar rapidamente. Temos de enfrentar as novas regras de produção e de experiência dos filmes. A atitude de Veneza é ser completamente aberta às novas formas do cinema. Foi por isso, aliás, que no ano passado decidimos abrir uma secção de competição de realidade virtual. Sei que não é cinema no sentido clássico, nem é sequer a transformação do cinema, é provavelmente um novo meio. Mas temos de enfrentar a nova situação.
Não é irónico que nesta questão entre o velho e o novo, o que era e o que é o cinema, o Neflix surja como o salvador de Orson Welles?
[risos] Claro que pode ser irónico, mas é a demonstração de que o Netflix é um novo produtor e um novo distribuidor que não tenta impor a todo o custo um tipo de cinema. É simplesmente um operador comercial que trabalha para distribuir de maneira diversa um produto que pode ser um filme do passado, como no caso do filme de Orson Welles, ou de alguém como Martin Scorsese [The Irishman], ou dos irmãos Coen.
Mas não se trata só do aparecimento de novos operadores... Voltando à conferência de imprensa, foi o próprio Alberto Barbera que, ao referir-se ao facto de muitos dos filmes programados serem longos, perguntou-se se isso não seria consequência dos novos hábitos dos espectadores com as séries de TV. Continuo a sua elaboração, perguntando-me e perguntando-lhe se a experiência online não está já a condicionar e a determinar os formatos dos filmes...
Está a ter influência na maneira de contar histórias.
A sua selecção dá conta de um regresso aos géneros – western, comédias, filmes de samurais... Não é já consequência de uma formatação de experiências, de regresso a coisas conhecidas, ao espaço “doméstico” do espectador?
Aí não estou de acordo consigo – pelo que vi este ano e pelo que irá ver. Há filmes completamente diferentes e a apontar a direcções diferentes. Claro que, sim, há a sensação de que os filmes estão a aproveitar as convenções dos géneros do passado, westerns, musicais, comédias. Mas atrás disso há um autor, um cineasta, que tenta inovar o código narrativo, em termos formais. Não há facilidade na utilização dos códigos. Por exemplo, Roma, de Alfonso Cuarón [Netflix], é um relato muito pessoal e desafiador, Peterloo, de Mike Leigh [Amazon], é completamente novo em termos de storytelling se o compararmos com o tradicional “filme de época”.
Há cineastas em concurso, Lázló Nemes (Sunset), Carlos Reygadas (Nuestro Tiempo) e Jacques Audiard (The Sister Brothers), que eram “privados” de Cannes. Deve estar satisfeito.
Não sei o que aconteceu. Quando vemos os hipotéticos filmes para Veneza sei que eles também estão submetidos à escolha para Cannes. Sou amigo de Thierry [Frémaux, delegado-geral do Festival de Cannes], ele sabe que não estou a brincar às escondidas com ele. Digo sempre aos produtores: mostrem-me o filme, farei a minha oferta se estiver interessado, vocês são livres de escolher, não me queixarei. Foi assim que vi o filme de Reygadas e o de Nemes e outros que não ficaram em Cannes. Gostei deles, fiz a minha oferta. Preferiram esperar até à decisão final de Cannes. Não sei o que se passou, ou a razão por que Cannes os recusou – talvez não estivessem prontos.
Em 2004 Veneza deu o Leão de Ouro a um filme recusado por Cannes, Vera Drake, e ficou célebre o discurso de Mike Leigh, agradecendo a Frémaux por tê-lo recusado...
Isso acontece. É habitual. É preciso decidir “sim” ou “não” numa situação complexa, no meio de muitos filmes a ver, sem tempo para reflectir e discutir. É fácil cometer erros ao achar que um filme não se enquadra no resto da selecção.
Há algum título que lamenta não ter nesta selecção?
Sim, o novo e belíssimo filme de Harmony Korine [The Beach Bum, com Matthew McConaughey]. Passámos o filme anterior dele, Springbreakers, ainda gosto mais deste. Mas é um filme independente, sem contrato de exibição ainda, seria cedo de mais para eles virem a Veneza. Infelizmente.
Qual o Leão de Ouro de que mais se orgulha?
Meu Deus, difícil... Posso dizer-lhe que fiquei muito satisfeito no ano passado com A Forma da Água [Guillerme del Toro] porque é o filme perfeito para o Leão de Ouro. No sentido em que é um crowd pleaser e ao mesmo tempo a obra-prima de um realizador. É um dos casos em que tanto os críticos como os espectadores amam o filme. Gostaria de estar todos os anos perante esse tipo de situação, mas nem sempre é o caso.